Por Fernando Oriente
O cinema de Paul Verhoeven é movido por características e estruturas centrais Tudo é intenso, uma intensidade que se dá e se constitui a partir e pela mise-en-scéne. Verhoeven se interesse por personagens fora do padrão e neles introduz seus elementos discursivos básicos, as características com as quais vai desenvolver sua dramaturgia. O desejo (como energia de um afeto passional), os impulsos, a força e as ações do corpo sobre si e sobre os outros corpos, a violência atávica que funda a essência de homens e mulheres, as distintas realidades criadas e forjadas pelo ser humano, o sexo e suas manifestações distintas, as relações disfuncionais, os traumas e as obsessões. Para Verhoeven não existe normalidade no ser, não essa normalidade padronizada pelos costumes e a moral vigentes. Todo ser humano possui desvios, distorções de caráter, patologias emocionais e impulsos que tencionam sempre sair do controle. O mundo para o diretor é uma realidade criada e vivida por meio de imagens imaginativas, que não correspondem a uma verdade ou a certezas. São ideias que criamos a partir de imagens que cunhamos de nós mesmos, do mundo e dos outros, bem como imagens que os outros criam de nós mesmos e do mundo. Dentro dessa visão da imagem e do mundo fundado em imagens imaginativas, podemos afirmar que o universo de Verhoeven é o próprio cinema e sua propriedade de fabricação de realidades por meio de imagens. Para tanto, Verhoeven abusa dos artifícios da imagem, das falsificações do real encenado, da estilização visual, dos excessos grotescos, vulgares, caricatos e por muitas vezes, de um mau gosto proposital que funciona como elemento constitutivo da dramaturgia. Verhoeven não se preocupa com freios, com o aspecto autêntico da imagem ou com o bom gosto arrogante tão comum aos falsos “cineastas–autores”. Seu cinema é visceral, explosivo, é pulsão ininterrupta de sons e imagens; é paixão. E, como na ‘Ética’ do filósofo Baruch Espinosa, para Verhoeven a razão nunca irá vencer uma paixão. Só uma paixão ou uma ação mais forte e contrária são capazes de vencer uma paixão original.
‘Elle’ é, sem exageros, um filme excepcional, um dos melhores do diretor ao lado dos excelentes ‘Showgirls’ (1995), ‘O Quarto Homem’ (1983), ‘Tropas Estelares’ (1997), ‘Louca Paixão’ (1973) e ‘Robocop’ (1987), possui todas as características do cinema do diretor, mas podemos notar nesse seu último trabalho uma maior contenção nos artificialismos, no uso do grotesco e na estilização visual excessiva. Estamos diante de um filme que nos apresenta uma aparência da realidade ficcional mais próxima a nós. Seja na paleta de cores discreta e mais monocromática, no uso preciso e sutil (mas acentuado) do jogo entre sombras e claridade, entre foco e desfocamentos ou mesmo na maneira como o diretor registra os espaços e os personagens dentro de uma construção mais realista. A contenção de Verhoeven em ‘Elle’ também está presente na maneira como desenvolve suas cenas, no posicionamento das câmeras e na maneira como se detém a introduzir na narrativa diversas situações cotidianas que envolvem sua protagonista Michelle (Isabelle Huppert) e os vários personagens coadjuvantes que cruzam constantemente seu caminho e com ela estabelecem diferentes relações. Verhoeven sabe perfeitamente dominar o material dramático e os discursos de cada um de seus longas, e como excelente encenador que é sempre emprega o tom e os ritmos certos para extrair o máximo de seus filmes e encaminhá-los formalmente e dramaticamente para aonde ele deseja, tirar deles todos os efeitos que pretende. Essa maior contenção de ‘Elle’, essa valorização de um aparente naturalismo dos espaços filmados serve para esconder inúmeras questões que estão onipresentes por trás do que de normal o mundo nos apresenta em sua aparência corriqueira.
Um elemento extremo, um ato de violência abjeto abre o filme em sua primeira cena – Michelle é estuprada dentro de sua própria casa. Esse fato irá, além de condicionar as expectativas espectador pelo restante do filme, determinar as reações de Michelle a partir da violência sofrida e irá descortinar uma série de questões que envolvem seu passado, suas relações consigo mesma e com os outros, como também servirá para ir revelando aos poucos o que os demais personagens trazem e reprimem dentro de si: seus traumas, perversões, desejos, paixões, frustrações, inveja, fracassos, impotência e crueldade. Tanto por meio de Michelle como por meio dos demais personagens, Verhoeven irá compor uma teia, uma rede de afetos, afecções e ações que se entrelaçam entre si e se refletem em todos os personagens. O mundo da aparente normalidade vai se desfazendo e o filme vai entrando cada vez mais no universo Verhoveneano de patologias, falsidades, violência, disfunções, vinganças e crueldades.
Um fato crucial, que nas mãos de um diretor limitado cairia em psicologismo barato, torna-se uma potência fundamental na construção dramática de ‘Elle’. Um dia, quando Michelle tinha dez anos de idade, seu pai (um cidadão comum em meio a uma vida ordinária), armado de uma espingarda, um machado e duas facas de cozinha entra em várias casas da rua onde mora e mata 27 pessoas, entre crianças e adultos. Depois retorna para casa e encontra a filha sozinha. Os dois fazem uma grande fogueira no quintal e queimam tudo o que podem, até que a polícia e a imprensa chegam ao local. De todo esse trauma, de todas as consequências desse crime hediondo praticado pelo pai de Michelle, uma foto, uma imagem fica como símbolo da tragédia: uma foto de Michelle, uma criança de dez anos, vestida apenas com uma calcinha e uma blusinha de alças, suja de cinzas saídas da fogueira no quintal, encara a câmera com um olhar ausente, vazio. Após 39 anos passados do crime e da condenação do pai de Michelle à prisão perpétua, essa imagem da garotinha seminua, toda suja de cinzas e com o olhar vazio encarando a câmera persiste tanto no imaginário popular sobre os assassinatos como também é a imagem que persegue Michelle e a liga a esse trauma de seu passado. O ódio que ela sente por seu pai, o fato de nunca ter ido vista-lo na prisão e o desejo que ele sofra pode ser muito mais bem entendido não como uma reação por seus atos bárbaros, mas pelo fato de que ela foi envolvida neles e que uma foto, uma imagem de Michelle tenha se tornado o signo e o significante de uma tragédia. É por ter sido constituída e representada como indivíduo por uma imagem aterradora que Michelle tanto odeia seu pai, quanto revisita os fatos de seu passado.
A personagem vivida por Huppert que acompanhamos ao longo do filme é uma mulher fria em suas inter-relações, obstinada em seu trabalho, manipuladora e que tem uma constante necessidade de controlar e ter os outros sob seu jugo, exercer sobre eles suas vontades e seu poder e, aparentemente, é desprovida de afeto por qualquer um. Dona de uma empresa de vídeo games de última geração, especialista em jogos de extrema violência (simbolismo explícito de Verhoeven para a criação de imagens virtuais que dão vazão a nossa crueldade e nossos impulsos violentos), Michelle passa por cima de tudo e de todos para ter sempre o que quer. Suas pulsões e desejos, suas paixões têm que ser satisfeitas sempre que desejar. Ela faz questão de ferir emocionalmente os outros, de provocá-los e machucá-los. Seus objetos e pessoas de interesse variam, surgem e são descartadas conforme suas vontades momentâneas. Ela seduz e torna-se amante do marido de sua melhor amiga, humilha e ofende constantemente a mãe, trata o filho como uma criança e não aceita a sua mulher, insinua-se e tenta seduzir um vizinho casado, mostra ciúmes da namorada do ex-marido e organiza uma festa para levá-la até sua casa para assim tê-la sob seu poder. Verhoeven constrói Michelle como uma personagem extremamente complexa, que nunca somos capazes de conhecer em sua essência nem de saber suas motivações exatas. Sua força vem de diversos fatores, mas é inegável que o trauma dos crimes de seu pai e, principalmente, a imagem dela totalmente frágil, suja e com o olhar vazio presente na foto que representa visualmente uma atrocidade é um fantasma que a persegue assim como ela é incapaz de deixar de se levar por essa imagem. É contra essa foto, essa imagem que ela luta, foi a partir da presença constante dela (a foto, a imagem congelada) que Michelle construiu sua personalidade, sua nova imagem de si. Mas Verhoeven não cai em simplismos e faz de sua protagonista uma mulher que age por diversos motivos e pulsões, não são apenas os traumas do passado que a condicionam e a motivam.
Como Verhoeven é, antes de tudo, um cineasta da intensidade, ele constrói toda a narrativa e as soluções dramáticas a partir de uma encenação desconcertantemente vigorosa. Planos curtos com a câmera sempre em movimento, uma decupagem ágil nas transições, preferência por ângulos fechados com inserções de planos abertos pontuais, câmera inserida no interior das ações, uma variação entre planos subjetivos e de observação externa, uma crescente tensão na construção das sequências (um suspense que nos remete à ‘Instinto Selvagem’, grande e sub-valorizado filme do diretor realizado em 1992) e uma frontalidade explícita na representação das ações. Verhoeven usa os cenários, os deslocamentos dos tipos por eles e os agentes que agem sobre esses espaços como potencializadores dramáticos. Esse processo fica claro nas sequências em que o diretor registra a tensão constante de Michelle sozinha em sua casa após o estupro, com o medo de que a qualquer momento o criminoso possa surgir, bem como nas sequência em que ela, após começar seu processo de sedução do vizinho, se encontra sozinha com ele em sua casa em meio a uma tempestade de vento e os dois correm de janela a janela para fecharem as persianas e, no meio desse processo todo, um jogo de sedução, de perseguição e de entrega se sugere. E essa sugestão será crucial para a evolução narrativa do filme e das relações que irão se estabelecer conforme o filme for revelando seus personagens e suas ações, impulsos e motivações.
Sem revelar nada, é indispensável falarmos sobre a relação que irá se estabelecer entre Michelle e seu estuprador. Num primeiro momento, após o primeiro ataque, ela passa a se precaver, vai ao médico, faz exames, compra um spray de pimenta ultra potente e um machado e depois aprende a atirar com um de seus funcionários. Passa a querer saber a identidade de seu agressor e o procura tanto no bairro quanto no escritório de sua empresa. A partir do momento em que a identidade do estuprador é revelada para Michelle (e para o espectador), Verhoeven constrói uma relação extremamente dúbia, complexa, conflitante e patológica entre o agressor e a vítima. Um jogo de poder se estabelece em que não é o opressor original que sempre comanda, mas muitas vezes passa a ser comandado. Verhoeven não alivia a abjeção do ato nem tira a culpa do agressor, muito menos enfraquece a vítima – essa nunca seria uma de sua intenções. Essa relação disfuncional (com inversões radicais nas representações e vivências dos desejos e paixões) é central no cinema de Verhoeven e é construída de maneira notável em ‘Elle’, além de servir para dar mais texturas e camadas à personagem de Huppert, que por sinal atua em estado de graça.
Ao mesmo tempo em que Verhoeven trabalha nas intensidades, nas explosões dramáticas, ele usa de maneira preciosa pequenas sutilezas de encenação. Ao focar um rosto, uma simples mudança de expressão nesse rosto do personagem traz uma enormidade de significados e intenções. Gestos e silêncios acrescentam conteúdos fundamentais às soluções dramáticas e, notavelmente, falas curtas e isoladas, pequenas frases que não se desenvolvem em diálogos, acabam por revelar demais sobre personagens e situações – como em uma das últimas cenas de ‘Elle’, em que uma frase dita pela vizinha de Michelle e que concluí um breve diálogo entre as duas, dá um sentido desconcertante à personagem bem como a inúmeras das situações que vivenciamos ao longo do filme, além de potencializar diversos e trazer à tona elementos centrais do cinema de Verhoeven.
😍😉☺️😊😚😘. Valeu, Marcinha! Já tinha recebido do Fernando mas tinha lido meio com pressa. Agora, nessa madrugada insone, reli com atenção e grande prazer! Obrigadão e beijão!
Critica maravilhosa Fernando!
Muito obrigado, René