‘A Filosofia na Alcova’, de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Por Fernando Oriente

O conceito de “libertinos libertários”, busca nos atos, na ação e no fazer eróticos um processo de enfrentamento dos limites impostos ao gozo e aos prazeres humanos, um confronto contra a moral das instituições estabelecidas como Família, Religião e Estado. Erótico como algo que abrange não só a sexualidade, mas evoca relações e modos se ser, existir e sentir. É no sexo puro, na busca pelo prazer sem limites, na violência da carne, na dominação e na entrega ao outro, no gozo ligado a dor, que existe toda uma teia de possibilidades de autoafirmação, uma existência materialista que rompe com dogmas e leis e, por fim, uma real hipótese de se atingir a liberdade de ser. São esses aspectos da libertinagem, centrais na obra de seu mais famoso representante, o Marquês de Sade, que encontramos o enunciado central do segundo longa da trupe teatral Os Satyros.

‘A Filosofia na Alcova’, co-dirigido por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, chega como um manifesto contra o moralismo, uma ode à liberdade, mas em momento algum estamos diante de um filme que não problematiza as relações de poder, a opressão e as hierarquias estruturais envolvidas e mantidas nesse processo. É nesse paradoxo, apresentado (felizmente) de maneira celebratória e sem julgamentos morais, que o filme destaca e exalta primeiro as possibilidades de libertação e negação da moral e dos poderes estabelecidos. Mas, ao mesmo tempo, estão impressos no discurso do filme as relações de poder na sociedade que, mesmo na libertinagem, são sempre mantidas. São os mais poderosos que dominam, aniquilam, convertem e subjugam os mais fracos. Por mais que mulheres poderosas e libertinas sigam seus desejos, e se autodeterminem no gozo, existe sempre um homem (um macho, um falo) acima delas, mais poderoso, que as domina direta e indiretamente. Aqueles de classes dominantes vão atuar, usar e trazer para seu lado todos aqueles que estão abaixo na relação de classes. Mesmo na liberdade proposta, as relações de poder não se alteram, e opressores e oprimidos têm sempre seus papéis dados e estruturados. Sexo é poder.

‘A Filosofia na Alcova’ dos Satyros enxuga o romance homônimo de Sade, reduz os espaços de ação e centra-se basicamente nas relações e conflitos de três personagens: Dolmancé (poderoso aristocrata libertino), Juliette (a Madame de Saint´Ange, uma libertina famosa e convicta) e Eugénie (a jovem virgem filha de um burguês libertino e de uma mãe religiosa e moralista). A encenação segue entre a frontalidade das ações, dos corpos, da carne e do sexo, a erupção do gozo e da violência e um constante tom de ritual celebratório que condiciona a mise-en-scéne (algo notável na impressionante sequência da orgia narrada por Juliette durante as “aulas” de Eugénie, que entra como um flashback que desloca a ação para um campo ainda mais ritualístico e anti-naturalista). Apesar de irregular – muitas vezes presa a uma necessidade excessiva em negar a teatralidade na composição de imagens cinematográficas – a encenação de Cabral e Vázquez atinge a intensidade necessária para consolidar as exigências da dramaturgia postas na enunciação.

O desenrolar narrativo parte da chegada de Eugénie à casa de Juliette, onde ela será “educada” por Juliette, seu irmão e com a supervisão, o comando e o controle de Dolmancé.  A educação é consiste em uma jornada de sedução e entrega da jovem ingênua (mas repleta de energia erótica reprimida) ao sexo, aos gozos da carne, à liberação de suas pulsões, à violência e a sua crescente negação de qualquer moralidade que havia sido imposta ao longo de sua criação pela mãe religiosa, bem como pela sociedade. A entrada em cena da mãe de Eugénie é o clímax narrativo e o momento em que a jornada interna da jovem se consolida. Da frágil virgem, surge uma altiva libertina que se entrega de carne e mente aos prazeres libertários, à vingança e à violência. Um amadurecimento pelo gozo.

Os ambientes das ações são reduzidos aos espaços internos da casa de Juliette, com breve inserções de cenas externas filmadas na São Paulo de hoje, no interior de limusines e de um helicóptero e ainda cenas que se passam na casa do pai de Eugénie (em que esse é sempre visto cercado por amantes em meio a orgias). As soluções cênicas são bem resolvidas por uma criativa direção de arte, que cria num galpão o cenário das ações principais, tudo em meio a ferros, correntes e entulhos, passando uma impressão de claustrofobia e enclausuramento dos tipos. A fotografia trabalha bem ao usar as modulações da luz para criar climas e envolver os espaços com um jogo de sombras e claridade difusa e artificial.

A construção dos três personagens centrais atinge diferentes dimensões dramáticas. Dolmancé aparece desde o início como uma força bruta, um predador dominador e cínico, que por trás de seu poder e cinismo não esconde certo decadentismo de sua posição aristocrática, de sua classe, numa sociedade em transformação – algo muito bem-posto na sequência em que sobrevoa a cidade de São Paulo nos dias de hoje a bordo de um helicóptero e vemos as relações e tensões entre sua figura, a identidade/personalidade que carrega com uma paisagem diametralmente oposta àquela do mundo em que foi gerado). Mas, essas camadas (uma dialética colocada no interior de seu tipo) que seu personagem carrega em momento algum interferem em suas ações. Henrique Mello impressiona em sua interpretação de Dolmancé ao conferir força, sarcasmo, fúria e poder ao personagem. Juliette é potência pura pela impressionante presença física de Stephane Sousa, a beleza agressiva de seu rosto e de seu corpo conferem à personagem um poder cênico irrestrito. E, como não podia deixar de ser, é Eugénie que tem suas camadas e texturas desenvolvidas ao longo do filme. As transformações e o processo de empoderamento e força que a jovem vai adquirindo no desenvolvimento narrativo é modulado pela própria atuação de Bel Friósi, que consegue transmitir todas as etapas emocionais e físicas pelas quais Eugénie passa. Do deslocamento inicial da jovem em cena até o término de sua iniciação/libertação, vemos Bel Friósi sair da posição de desconforto e fragilidade até passar a dominar todo o espaço; e aqui a beleza e a energia de seu rosto, de seu corpo e de seus gestos seduzem não só aos demais personagens, mas também o espectador e vêm à tona num processo contínuo de desnudamento físico e emocional. Bel Friósi faz não só com que Dolmancé e Juliette se encantem por Eugénie, como também seduz a câmera e o olhar do espectador com uma presença em cena radiante.

Os problemas e acertos de encenação são, principalmente, de ordem da imagem. É na imagem que estão, ao mesmo tempo, os melhores e o piores momentos do filme. Se Cabral e Vázquez nos trazem potência ao colocarem os corpos e a nudez em cena de maneira frontal, ao filmarem o sexo e a as ações sem pudores e com isso construírem tensões e intensidades dramáticas, por outro lado, existe um excesso de cortes, um abuso de ângulos fechados e uma câmera tremida que se perde ao não conseguir transmitir a totalidade das ações ou aquilo que determinada situação de cena pede –  a narrativa no cinema pede sempre a imagem capaz de traduzi-la visual e sensorialmente. O filme se ressente de uma maior composição de quadro, que permita com que as ações sejam representadas num contínuo espaço temporal sem a fragmentação da imagem. Em alguns momentos, quando cenas em planos de conjunto, com maior afastamento e fixação da câmera surgem na tela, temos uma força dramática muito maior e o quadro composto com diversos personagens a ocupar o centro e as bordas da imagem, sem abdicar de uma frontalidade que achata a profundidade de campo para potencializar a superfície da imagem, elevam a intensidade do discurso. Os diretores conseguem, quando abandonam os enquadramentos fechados e a fragmentação do espaço, soluções de dramaturgia muito mais fortes que são resolvidas na própria maneira como a imagem nos chega. Um bom exemplo desses momentos de força do filme são os planos mais abertos, em que no mesmo quadro vemos a fúria, o prazer e a dor de diferentes personagens ao mesmo tempo, dentro de uma continuidade espaço-temporal. Uma cena ilustra bem o acerto desse tipo de composição: Dolmancé penetra a mãe de Eugénie com o auxílio de Juliette e, no mesmo plano temos Eugénie na lateral do quadro se masturbando em êxtase. Aqui a própria imagem, sem rupturas e numa distância focal justa, oferece toda a potência dramática e as texturas e desenvolvimentos da ação, assim como a narrativa se consolida e se resolve dentro do próprio quadro.

Uma outra passagem, em que se abandona o abuso do corte e um pequeno plano-sequência é posto, mostra como Cabral e Vázquez sabem usar bem a continuidade da ação dentro do espaço: nessa cena acompanhamos Eugénie se deslocando de um primeiríssimo plano até o fundo do quadro (em que sua mãe está amarrada e entregue aos jogos dos libertinos) e depois retornando a seu ponto de origem no início do plano. Nessa cena, que se desenvolve num continuum, temos de maneira objetiva a extensão em atos da transformação interna da persona de Eugénie. Sua fúria, seu erotismo transbordante, as vibrações de seu corpo em ressonância com seus desejos que vêm à tona já desprovidos de amarras são a consolidação de seu processo de entrega ao gozo, a materialização de suas pulsões em prazer e dor (dor imposta). É carne que fala mais alto, é gozo libertário que lhe confere poder e controle sobre suas vontades e subjuga aqueles que se punham como castradores de sua liberdade, ao mesmo tempo em que liberam a violência reprimida em uma forma de orgasmo.

E assim, o gesto libertário que se oferece nos princípios de ruptura possíveis dentro dos códigos da libertinagem torna-se um devir em que a jornada de entrega ao corpo e suas possibilidades são uma acesse em direção a uma tomada de poder materialista; violência, prazer e sofrimento se fundem. É poder para quem o exerce, mas um poder que vai além do próprio gozo, transborda e sublima-se na dominação e aniquilação do outro. Como escreve Simone de Beauvoir em seu ensaio ‘Deve-se Queimar Sade?’: “…a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como consciência através da carne (…) é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria carne”. E Beauvoir completa “é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da maneira mais dramática”.

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