Por Fernando Oriente
Em meio a um considerável número de ficções e documentários que abordam temas urgentes em seus enunciados e discursos, o longa ‘Câmara de Espelhos’, de Dea Ferraz, é um dos mais notáveis e bem-sucedidos. Trabalho de registro documental sofisticado, o filme trabalha as possibilidades múltiplas de tencionamento do dispositivo, tanto na realização como na montagem e no processo de recepção que é oferecido aos espectadores. O machismo atávico, endêmico e estruturante da sociedade brasileira é exposto de maneira complexa, ao mesmo tempo que direta e objetivamente. Um filme político em que o campo da cultura e dos costumes formam o campo de batalha.
Grupos de homens (todos voluntários para participarem do projeto) de diferentes idades, classes sociais e raça reúnem-se num cenário construído que se configura como um dispositivo cênico – uma “caixa” em que, sentados em sofá e poltronas são cercados por sugestivos objetos de decoração, espelhos e uma televisão que projeta vídeos sobre os quais eles devem comentar. Os vídeos têm sempre a mulher e o feminino como tema; a relação do feminino com o imaginário social, seja em esquetes de humor, telenovelas, vídeos do Youtube, reportagens jornalísticas, videoclipes, trechos de shows musicais, filmes e programas evangélicos, entre outros. A violência misógina explícita de algumas das imagens se articulam com trechos de falas de mulheres de destaque na sociedade – presidentas, chefes de estado ou intelectuais como Simone de Beauvoir -, além de fragmentos de passeatas de grupos feministas como a Marcha das Vadias.
O principal mérito do filme é fazer com que, ao comentarem as imagens e temas propostos pelos vídeos que assistem, esses homens se desloquem progressivamente entre a performance calculada de si que fazem por saberem que estão sendo filmados (e as micro-ficções que procuram encenar) para um constante desligamento da presença da câmera, o que os permite falarem e darem vazão sem freios a suas reais ideias e impressões sobre as mulheres; a espontaneidade e a banalidade com que encaram e reafirmam suas posturas passa dominar o tecido narrativo das conversas. É nesse ponto que o machismo vem à tona. Por mais que tentem se policiar, a misoginia, a posição de superioridade em relação à mulher que está presente na própria construção subjetiva de suas identidades passa a tomar conta dos discursos. Alguns pisam em ovos, desconfortáveis, outros se entregam abertamente à posição de opressor e dominador que define o homem na sociedade patriarcal que estamos mergulhados. Mas todos, sem exceção, revelam-se em seus diferentes graus de machismo.
As discussões, frases isoladas ou conversas descambam para um desnudamento que naturaliza as relações de poder estruturantes em que o homem sempre se acha superior à mulher. Moralismo, preconceito, desprezo, cinismo, violência, arrogância e intolerância são os pontos comuns da falação, bem como da performance de todos os personagens do longa. A montagem potencializa as relações de fala desses homens – ao deixar as discussões correrem soltas pela duração das cenas e pela total não interferência nos debates, ao mesmo tempo em que cortes pontuais nos levam a novas situações, discussões e temas.
Como não poderia deixar de fazer, aqui eu me coloco como homem em relação à matéria e ao discurso do filme. Por mais que tente (e tentar não é nunca o suficiente) a desconstrução de meu machismo, muito da misoginia desses homens também me acompanha e fazem parte de mim. Minhas boas intenções não são nada. O que me cabe, bem como aos homens que assistirem a ‘Câmara de Espelhos’ é nos questionarmos constantemente, nos projetando e sendo refletidos pelo que vemos na tela. Para as mulheres o longa é mais um explicitamento das relações de violência e dominação cultural, social e política que vivenciam e a que estão expostas diariamente. É esse processo, tanto de desnudamento da misoginia atávica quanto do confronto com a posição de superioridade do macho, que é o centro e a força do filme de Dea Ferraz. Um longa desconcertante, que escancara o óbvio que a grande maioria da sociedade finge não ver ou prefere jogar para baixo do tapete. ‘Câmara de Espelhos’ é um murro na hipocrisia de todos nós.