‘António Um Dois Três’, de Leonardo Moramateus

Por Fernando Oriente

Uma crítica sobre um belo filme brasileiro selecionado para o Festival de Roterdã 2017. Além de ‘António Um Dois Três’, o Brasil conta com mais um ótimo filme na seleção do festival holandês desse ano: ‘Arábia’, de Affonso Uchoa e João Dumans, filme que confirma o talento de Uchoa após o excelente ‘A Vizinhança do Tigre’ e que ao mesmo tempo mostra o diretor, dessa vez ao lado de Dumans, expandindo seu repertório fílmico – sem abandonar suas melhores características – e se dando muito bem. Em função de duas fraturas no ombro, duas cirurgias e a consequente imobilização de um dos braços desse crítico que aqui escreve, a análise de ‘Arábia’ será escrita e publicada em breve.

‘António Um Dois Três’, de Leonardo Moramateus

antonio-um-dois-tresEm seu primeiro longa – o primeiro trabalho realizado pelo diretor fora do Brasil, filmado inteiramente em Lisboa, Leonardo Moramateus parece ter se apegado às diversas qualidades de seus muitos (e bons) curtas e as ter condensado de uma maneira funcional e potente para fazer de ‘António Um Dois Três’ um filme extremamente interessante. Trabalhando em cima das possibilidades de múltiplas representações de seu protagonista, da realidade e de seu entorno. Moramateus divide o longa em três partes e nelas vemos diferentes Antónios: O António um, o António dois e o António três. Mas não são apenas as alterações de personalidade (mas que em momento algum anulam a essência do personagem) e de situações dramáticas que mudam a cada acentuada elipse que une de maneira sólida as três partes do filme. Tudo se altera, desde o papel dos personagens que cercam o protagonista, a realidade de seu cotidiano, as tarefas em que se envolve, as ações de cada um que cruzam seu caminho, os locais aonde mora e a maneira como, a cada nova sequência, sua personalidade vai se consolidando e tornando-se mais segura. Um filme que atinge o vigor como um todo pela força com que cada uma das partes se relaciona entre si, potencializando não só o conjunto, bem como cada sequência e cada plano isoladamente.

‘António Um Dois Três’ é um filme narrativo, mas que subverte a narração e cria zonas de deslocamento, se afastando das facilidades e clichês do cinema narrativo devido ao controle, a inventividade, os riscos que o diretor assume (e dos quais se sai muito bem), a precisão nas modulações dramáticas, a ótima montagem e a segura encenação de Moramateus. Não existe excesso de explicações para tornar as tramas mais palatáveis ou fáceis de entender, o diretor trabalha para evitar a preguiça do espectador, forçando o público a pensar, deduzir, associar e interpretar de maneira subjetiva. Diversas situações, ações, fatos, desfechos e conclusões narrativas são deixadas de fora – ou no extracampo ou simplesmente em aberto. Tudo isso condensa e dá o ritmo certo ao filme, carregando a narrativa de porosidades e possibilidades. Não se busca o óbvio, a câmera de Moramateus observa em fragmentos de espaço e de tempo. Um filme cujo discurso só existe e que se dá ao espectador pela mise-en-scéne, pelas imagens, planos, cenas e tensões, nunca por meio de truques de roteiro ou por sequências fora de tom. Um longa que existe pela e por meio da gramática cinematográfica. Tudo flui dentro de uma naturalidade notável. Cada nova realidade, cada novo António e cada novo rearranjo narrativo nos aparecem de maneira sutil, cadenciada e com múltiplas possibilidades de significação.

Basicamente temos um fio condutor – que também será subvertido ao longo do filme: António foge da casa do pai e se joga sozinho numa nova vida pelas ruas Lisboa onde irá encontrar a ex-namorada, uma turista brasileira, antigos e novos amigos e acabará se envolvendo na produção e encenação de uma peça de teatro. Uma jornada de auto-descoberta, de amadurecimento e de definição de sua identidade, bem como um percurso de procura e conhecimento de si próprio e uma maior valorização de seus desejos e de confrontamento com suas dúvidas e receios. O controle da dramaturgia e um domínio pleno da mise-en-scéne fazem com que os diversos rearranjos narrativos, os novos papéis assumidos pelos mesmos personagens após cada elipse e as diferentes realidades que se apresentam a António e aos demais tipos se materializem na tela de maneira harmoniosa, instigando o espectador a absorver esses diferentes momentos e automaticamente associa-los a constantes novas interpretações e possibilidades de leitura.

antonio-um-dois-tre%cc%82sO longa de Moramateus explora com intensidade questões existenciais, mas sem psicologismos ou arroubos dramáticos. Tudo flui com honestidade e veracidade fílmicas impressionantes. A leveza e a naturalidade com que as sequências são construídas só reforçam a força e a complexidade da dramaturgia. Desde a variação entre planos fixos e movimentos de câmera, as construções de quadro, a decupagem ágil e um preciso trabalho de posicionamento de câmera, além de uma fotografia que abusa das variações de luminosidade para potencializar os dramas, tudo funciona da maneira exata para fortalecer o filme, para consolidar uma estética complexa que se faz perceber por trás da total ausência de exibicionismos formais e da sinceridade com que o diretor trabalha a forma dentro de seu discurso. Um diretor seguro diante de seu material, personagens bem compostos e fundamentais para o discurso do filme, que não perdem nada de suas múltiplas texturas a cada nova realidade narrativa que se apresenta, o mesmo que pode ser dito sobre cada nova variante de modulação dramática.

‘António Um Dois Três’ é um dos melhores retratos da velocidade e da instabilidade do mundo, da fragilidade das relações, dos jovens adultos nos dias de hoje – com suas contradições, inseguranças e precariedades – mas ao mesmo tempo, uma afirmação da possibilidade da vida, de existir e de sempre (r)encontrar caminhos para seguir em frente. Um filme que aponta que podemos ser diferentes a cada momento, nos adaptarmos a cada nova situação, ou mesmo lidar de diferentes maneiras com as mesmas situações que a vida nos impõe. Um longa em que não existem vitimismos e que vai à contracorrente do cinema que tende a pesar a mão para retratar o mal estar de viver, ‘António Um Dois Três’ nos oferece ao longo de toda sua duração, sem em momento algum perder o fôlego, imagens pulsantes de energia, cenas preciosas, diálogos inteligentes e cheios de significantes, tempos de observação e momentos de ação, além personagens sólidos mesmo em suas fraquezas e um constante prazer em se fazer cinema que Leonardo Moramateus imprime em cada fotograma desse belo filme.

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2 comentários

  1. Excelente crítica, espero ver logo o longa do Mouramateus. Até hoje fico impressionado com a grandiosidade dentro da simplicidade de “Europa”, fiquei mais ansioso em conferir mais esse trabalho.

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