‘Moscou’, de Eduardo Coutinho (2009)

Por Fernando Oriente

É notável como Eduardo Coutinho busca, de maneira orgânica, a dissolução das linhas de separação entre o documentário e a ficção, como trabalha sua mise-en-scène em função da ética daquilo que procura registrar. São elementos de linguagem típicas do diretor que se tornam mais explícitos em dois de seus últimos longas: ‘Jogo de Cena’ (2007) e ‘Moscou’; este último uma bela incursão pelo registro documental do processo construtivo da encenação ficcional, do quão potente é o homem e sua relação com a palavra, com o dizer, com o interpretar e pensar o mundo pelo texto e suas muitas arestas. Coutinho acompanha o grupo Galpão durante os ensaios e a montagem de “Três Irmãs”, de Anton Tchekhov, e com sua habilidade para captar as múltiplas camadas de tudo aquilo que filma, enfoca a densa relação entre o ser humano e o poder da palavra; a força que se pode extrair de um texto pela construção dramática calcada na faculdade da palavra (essa tensão é mesma do processo de encenação usado por Coutinho em ‘Moscou’, uma encenação que busca o incerto, o tornar-se, que se abre a tudo que se oferece diante de sua câmera) . É o registro sensível desse texto, da construção e reconfiguração desse texto que vem à tona em meio ao gesto e aos corpos daqueles que o articulam. Coutinho busca registrar o processo, esse caminho que leva da ideia, do texto impresso a uma propulsão de energia, a criação de algo indefinido, mas que toma forma no fazer, no fazer do grupo Galpão, no fazer do filme e na mediação proposta entre filme, texto, atores, espaços, tempo e o espectador.

Em ‘Moscou’, Coutinho usa uma montagem teatral (e as potências da linguagem da teatralidade reconfiguradas para a encenação cinematográfica) que nunca irá ser encenada, e com apenas as três semanas dadas ao grupo de Belo Horizonte para trabalhar o texto, retira desse processo criativo fragmentado elementos da obra de Tchekhov em que as sensações de angústia do homem comum e o peso do tempo de espera chegam de forma plena ao espectador. São da ordem moral que esse processo constitutivo evoca que vem a força e a autenticidade das imagens de Coutinho. As angústias do texto se fundem as pulsões tensas de um processo criativo em que atrizes e atores buscam dar forma ao texto, ao universo complexo de uma das mais fundamentais peças do autor russo. Da sofisticação dramática de Tchekhov, o cineasta extrai o vazio intransponível que condena os personagens da peça. É um diálogo constante entre as limitações e possibilidades de homens e mulheres e as representações ficcionais dessas condições humanas tratadas no texto original e como isso se relaciona com as capacidades e entraves do cinema em registrar algo fugidio, incerto. ‘Moscou’ é um estudo do processo criativo e construtivo por meio de seus movimentos internos.

Coutinho alterna planos do ensaio com workshops e cenas de bastidores do Galpão. Ele trabalha dentro de condições de precariedade que estão no próprio enunciado de seu filme. Do precário se constrói a autenticidade do cinema, um cinema ético, que sabe de seus limites e dele traz o que de maravilhoso reside nas limitações impostas.  Novamente o cineasta adentra a construção fílmica do conflito entre realidade e ficção e, ao pôr os fragmentos do drama ficcional em primeiro plano pela intensidade da palavra, correlaciona no real as conseqüências e a penetração da ficção. Antes de tudo, ‘Moscou’ é um tributo ao ato da criação, ao poder da palavra e do texto de Tchekhov e como esse texto é universal ao representar a fragilidade do ser humano. Ao mesmo tempo, o longa é a tentativa de traduzir a força material daquele que fala, do emissário de um texto, de uma ficção, de uma realidade em processo de recriação. A opção em abordar “Três Irmãs” por meio da construção da encenação amplia ainda mais o aspecto sensorial, e ao mesmo tempo físico, da obra. Ao depurar e enxugar os elementos dramáticos e os recursos de encenação e deixar o texto apenas no discurso dos atores, na presença material destes, a força desse texto é sentida de maneira mais crua e objetiva. Os atores são identificados logo como portares, transmissores da palavra e, como a força da palavra vem de seus discursos, a identificação do público com o drama se torna mais complexa e difusa, abrindo possibilidades de interpretação e leituras sempre em construção e num jogo posto entre imagem, texto e a mediação do dispositivo que se constitui pela encenação de Coutinho.

As opções formais de Coutinho são destaque a parte. Planos médios intercalados a ângulos fechados nos atores, com seus rostos em primeiro plano, aumentam as texturas da relação do humano com a palavra (o devir dessa palavra num constante vir a ser da ficção) e com a significação das emoções contidas nos nuances do texto original. A câmera do diretor busca o ser-humano em estado natural, sua inserção nos espaços e as relações espaciais e temporais que surgem desse processo. É notável a preocupação do cineasta em buscar o gesto natural, a expressividade autêntica, as incertezas e a espontaneidade dos tipos que filma. O trabalho de luz, usando a iluminação artificial do teatro, forma uma moldura discreta para o registro das ações e dos discursos. A simplicidade desses recursos esconde um conceito estético radical que caracteriza a obra do diretor. A câmera não se preocupa apenas com a captação dos atores e atrizes e seus movimentos. O cenário, o ambiente onde o processo de construção de “Três Irmãs” está em andamento, também é destaque e a relação entre espaço físico e atuação ganha tratamento primoroso pelos posicionamentos de câmera.

Outra característica presente em ‘Moscou’, e que também pode ser comprovada por meio dos últimos trabalhos de Eduardo Coutinho, é a preocupação do diretor com a memória. Uma memória que surge da palavra, das imagens e sensações que são resgatadas e materializadas por essas palavras, pelo ato de falar, por tudo que evocam. Um exercício de afirmação da memória em um mundo que força o homem a um eterno presente impessoal e congelado, em que a memória e as imagens não têm mais espaço e se perdem (em valor, em afeto e em subjetividades esmagas) em meio a aceleração brusca de uma sociedade imediatista que destrói o Eu em detrimento da alienação do consumo e da promessa de satisfação imediata dos desejos mais rasos. Esse enfoque é nítido dentro da obra de Coutinho, bem como nos textos de Anton Tchekhov e a releitura extremamente atual desse conceito elaborada por Coutinho eleva seu filme a um patamar ainda mais complexo. É na abordagem feita na convergência de múltiplos elementos que o cineasta ergue as estruturas de seu cinema ímpar.

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