‘O Cheiro da Gente’ (The Smell of Us), de Larry Clark

Por Fernando Oriente

'O Cheiro da Gente'Com seu novo longa, ‘O Cheiro da Gente’, Larry Clark retoma o melhor de seu cinema, a potência formal e a estética vistas em seus melhores trabalhos como ‘Bully’ (2001) e ‘Ken Park’ (2002), além de atualizar sua pesquisa do universo dos adolescentes, iniciada com seus trabalhos como fotógrafo livro ‘Tulsa’ (publicado em 1971). Em nenhum momento Clark procura explorar os aspectos abjetos de jovens que vivem à margem do padrão social capitalista, ele não quer o choque pelo grotesco raso, de apelo fácil. Larry Clark busca as imperfeições, as incertezas, a sujeira, as pulsões de vida e de morte de adolescentes que se encontram em um universo fragmentado de ações compulsivas, movimentos bruscos, dúvidas, prostração, desejos e frustrações. E Larry Clark mostra tudo, seu cinema e seu trabalho como fotógrafo buscam desnudar, expor o explícito de corpos, dos movimentos, do sexo, dos ambientes, dos conflitos. A nudez, o sexo, o confronto e a violência estão sempre em primeiro plano, ele busca as superfícies incertas das coisas, da matéria.

Em ‘O Cheiro da Gente’ Clark desloca seu olhar sobre o universo dos jovens americanos, de subúrbios, cidades pequenas ou mesmo Nova York (no caso de ‘Kids’, de 1995) e vai para Paris. Na capital francesa, a cidade mais bonita do mundo, o centro da cultura, das artes e do luxo, ele coloca seu olhar sobre os adolescentes de lá (vindos de diferentes etnias, classes sociais e formações familiares), seus cotidianos que oscilam entre prostração e ação, entre andar de skate pelas ruas ou nos jardins do Museu de Arte Moderna, fazer sexo, fumar baseados, cheirar cocaína, beber, jogar videogame, dançar em shows e festas ou simplesmente sentar ou deitar e deixar seus corpos e mentes vagarem em momentos de descanso em que são dominados pela desilusão, a melancolia, a frustração e a fugacidade de um presente cheio de ações, mas repleto de incompletudes, de dúvidas, além da constante presença de uma sensação de que o futuro não lhes reserva nada a não ser a finitude, a decadência dos corpos, as limitações e o esgotamento de suas energias. Não existem planos de vida, projetos, apenas a urgência de se viver o aqui e o agora antes que seja tarde demais.

O conflito central em ‘O Cheiro da Gente’ é entre a juventude e a velhice, entre as potências do corpo e da mente no auge da força física dos adolescentes e as limitações, a decadência da carne e do espírito dos velhos. Larry Clark provoca esse conflito ao fazer alguns de seus personagens se prostituírem. São meninos cheios de beleza, com corpos jovens e frescos que se colocam diante de velhos que pagam para fazerem sexo com eles. Eles compram seus corpos jovens, suas presenças cheias de vigor para realizarem suas fantasias. Possuem os meninos, são possuídos por eles, além de praticarem seus fetiches, como na impressionante cena em que um velho chupa os dedos e todo o pé de Math (um dos principais personagens do filme) em uma fúria sexual que se materializa numa sequência frontal de podolatria. Clark constrói os personagens dos velhos clientes dos garotos em cima de arquétipos muito funcionais tanto para a encenação quanto para o discurso do filme. Vemos os velhos e velhas nus, suas carnes flácidas, seus corpos em decadência física. Eles se empoderam pelo dinheiro e por um sarcasmo decadentista, pela capacidade de comprar a juventude dos prostitutos adolescentes e os manipularem. Aqui o filme faz uma clara abertura ao mundo como movido pelo consumo, seja pelo consumo dos corpos belos e jovens praticado pelos velhos e velhas, seja pelos adolescentes que se vendem para ganharem dinheiro e poderem comprar seus objetos de consumo desejados, sejam roupas, sapatos, skates ou que mais acham que precisam para se auto-afirmarem num mundo onde possuir as mercadorias determina as subjetividades.

Outro elemento fundamental usado pelo diretor nesse conflito do jovem ante o velho (do presente perante o futuro que os aguarda) é o personagem que o próprio Larry Clark interpreta: um morador de rua, velho e bêbado que frequenta a região do Museu de Arte Moderna de Paris e seus arredores, locais onde os jovens se reúnem, andam de skate e convivem entre si. O personagem de Clark, ironicamente chamado de Rock Star, representa a decrepitude e a decadência física da velhice, que mais uma vez entra em conflito com o esplendor da juventude dos garotos e garotas. Numa das cenas mais emblemáticas, enquanto jovens tocam violão, fazem tatuagem, fumam e bebem, Rock Star, bêbado e semi-desmaiado mija nas calças sujas. A câmera de Clark enquadra em close as calças de Rock Star se molhando e a urina escorrendo pelo chão. Essa sequência é de uma melancolia profunda, no que poderia ser uma cena meramente escatológica, o diretor tira uma expressão fortíssima desse conflito do jovem com o velho, da decadência corpórea e da condenação a decrepitude da carne e das funções do corpo.

O Cheiro da GenteAs expressões dos rostos dos personagens formam um discurso interior que expõe as camadas existenciais dos tipos. Seja no olhar prostrado, inerte, desanimado e melancólico de Math, ou mesmo nos closes dos demais personagens em momentos de silêncio e contemplação, Clark forma um conjunto de rostos que exprimem um estado de estar no mundo, um interior; monólogos incapazes de serem traduzidos em palavras. Um rosto é um mapa, essa afirmação de Edgard Morin é perfeitamente cabível a construção das texturas dos tipos feitas pela captação frontal das faces dos jovens que Clark filma com ternura e melancolia.

Os corpos nus são parte essencial da proposta estética e do discurso de Larry Clark, desde seus anos como fotógrafo. É a nudez posta na superfície da imagem que dá peso e valor à presença carnal, física desses corpos. É dessa maneira que Clark constitui a identidade de seus personagens, é na nudez que eles expressam suas subjetividades. A câmera de Clark busca sempre a essência física e material dos corpos, em movimentos constantes que pararam sobre as mais diversas partes desses corpos, em closes de genitais, bundas, peitos, coxas (tanto de personagens masculinos quanto femininos) ou em ângulos mais abertos, em que os corpos aparecem por inteiro (nus ou seminus), seja fazendo sexo (com closes de penetrações ou no registro dos movimentos da plasticidade corpórea do sexo), se deslocando pelos espaços e ambientes ou prostrados em momentos de descanso ou quando simplesmente já não tem mais forças para se movimentarem. O diretor filma o suor, as sujeiras, as texturas epidérmicas e as formas desses corpos. Nada disso é gratuito, tudo faz parte do processo identitário dos mecanismos formais de Clark, o que sempre levam em direção à construção de seus discursos.

A imagem suja, crua, sem maquiagens artificializantes de Larry Clark assume em ‘O Cheiro da Gente’ ingredientes potencializadores. No filme vemos constantemente imagens registradas por celulares, câmeras digitais, webcams e transmitidas via internet, com sua baixa resolução, sujeitas as deficiências de nitidez, captação de luz e expostas a uma reprodução precária, em que essas cenas surgem craqueladas, fragmentadas e com as imagens borradas e que travam devido ao pixalemento da transmissão via web. São nas formas da captação e reprodução toscas de imagens sujas, nessa modernidade borrada e imperfeita dos novos formatos do registro imagético do mundo que Clark encontra a imagem representativa desse real contemporâneo e multifacetado. Nas imperfeições e na sujeira dessas cenas estão as limitações da clareza em se representar, compreender e apreender o mundo pelos adolescentes, bem como por todos nós.

Se câmera de Larry Clark é uma presença física, um olhar diegético do universo, dos ambientes e dos personagens que ele registra, essas imagens de celulares e câmeras digitais de baixa resolução tornam esse processo material da presença física das imagens ainda mais intenso, repleto de movimentos, falhas, descontinuidade e rupturas abertas aos aspectos orgânicos do filme.

‘O Cheiro da Gente’ é possivelmente o melhor filme de Larry Clark, em que salta aos olhos sua total entrega como cineasta à matéria e a forma que constroem os discursos do longa, uma entrega plena de coerência artística e impressa pela subjetividade do diretor, na forma com que ele se debruça com vigor (aberto aos acertos e erros desse processo) aos personagens, ações e dramas.

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