Por Fernando Oriente
Existem cineastas que marcam a vida de um apaixonado pelo cinema desde o primeiro contato com uma de suas obras. O cinema de Tsai Ming-Liang causou esse fenômeno na minha vida. Assim como diretores que descobri por meio de sessões na Cinemateca (quando ainda era na Rua Fradique Coutinho em São Paulo), em cineclubes, em retrospectivas, festivais, na Mostra Internacional de Cinema em SP ou mesmo em VHS ou na televisão. Essa lista de cineastas que literalmente mudaram minha vida, meu jeito de ver e pensar o mundo e que, por muitas vezes, falavam e pensavam por mim por meio de seus filmes pode ser vista nesse link do site. Mas esse breve texto é sobre a obra de Tsai, que conheci na primeira metade dos anos 90, ainda adolescente, no filme ‘Vive L’ Amour’ (1994).
Rever a obra de Tsai Ming-Liang completa, de ‘Rebels of the Neon God’ (1992) até ‘Cães Errantes’ (2013) – para ficarmos apenas nos longas feitos exclusivamente para o cinema (sem nunca deixar de lado a força de vários de seus curtas e filmes-ensaio) – é uma experiência que abala os sentidos. É uma oportunidade de penetrar um universo visual e material extremamente rigoroso em que conteúdo e forma se moldam em imagens particularíssimas compostas por um cineasta que constrói cada um de seus filmes a partir da força que imprime a cada plano. A dor crônica da existência e a incapacidade da construção de relacionamentos interpessoais estão presentes em todos os longas do cineasta malaio radicado em Taiwan. Esse aspecto ganha força extra pela constante opressão que os espaços (ambientes, cenários, extra-campo) exercem sobre os tipos.
Essa opressão da existência está fisicamente presente nos gestos e nas imobilidades dos personagens, no minimalismo recorrente da mise-en-scéne e no uso de elementos matérias como água, o calor e a seca, sempre em conflito com os elementos humanos. O desejo sexual reprimido, que quando se concretiza é de forma obsessiva, maquinal e dolorosa, torna o universo de Tsai ainda mais angustiante. Seus filmes estão diretamente ligados uns aos outros. Cada novo trabalho do realizador evolui a partir de sua obra anterior e remete ao todo de seus longas. É como se ele realizasse um mesmo filme, em que novos capítulos se somam, aumentando e diminuindo a importância de elementos em relação uns ao outros.
O que mais chama atenção no cinema de Tsai Ming-Liang são o rigor na construção das cenas e o impacto que ele extrai delas. Isso é notável na composição dos quadros, no posicionamento primoroso da câmera, na ação dos personagens dentro da cena e no pouquíssimo uso da palavra. No cinema de Tsai, é a partir da construção de cena que podemos apreender um discurso coerente que sugere a opressão dos personagens, sempre mergulhados em sentimentos como, apatia, amargura, melancolia, solidão e desilusão e esgotamento emocional. Essas sensações se encontram representadas nas atitudes e na sensação de claustrofobia provocada pelos ambientes fechados e pela maneira como as cenas de exterior são compostas para refletir os estados de espírito dos personagens por meio dos elementos presentes nos quadro. Nos espaços abertos, os personagens são como que objetos minúsculos que borram um cenário caótico em sua desordem e movimento, ainda mais oprimidos pela amplitude urbana.
Tsai Ming-Liang desenvolve sua mise-en-scéne com a intenção de ressaltar o peso da presença material e do movimento físico de seus personagens, bem como as sensações internas de seus tipos por meio de suas expressões faciais e seus gestos. Ele busca a densidade do tempo nessas ações, o que fica impresso nos deslocamentos e ao mesmo tempo na estagnação dos personagens no espaço do quadro, e a enorme relação que existe entre eles e tudo o que está no fora de campo. Tsai decupa seus filmes e compõe suas cenas organizando minuciosamente os deslocamentos das figuras dramáticas e suas ações. Ressalta sempre por meio desse processo as atitudes, os gestos, as poucas falas e o silêncio. As cenas são compostas dentro de um espaço global coerente, claramente lembrado a cada instante.
Tsai utiliza-se de uma possibilidade característica da mise-en-scéne contemporânea: o encerramento de seus personagens através do olhar da câmera para condicionar o peso da opressão dessas figuras dramáticas. Essa reclusão imposta pelo cineasta aos seus personagens permite a exploração de muitas possibilidades significantes desse encerramento espacial e existencial, principalmente a exposição dos estados de espíritos e dos sentimentos desses tipos. Esses elementos são orquestrados pelo diretor com o destacado uso do som, onde ruídos e silêncios dão espessura e densidade às cenas. A longa duração de planos, cenas que se estendem ao máximo da temporalidade dramática das ações encenadas, o posicionamento criativo e funcional da câmera, os ângulos fechados e os closes que penetram a alma dos personagens; tudo na estética de Tsai é composta para que seu cinema seja um catalisador de sensações, um registro do humano em estado bruto, um inventário sobre a angústia e a melancolia contemporâneas.
O impacto que Tsai Ming-Liang obtêm de cada sequência que constrói provoca um mal-estar no espectador, o arranca de sua passividade e de sua posição de conforto. Seus planos são contaminados por uma sensação de angústia que transborda a tela e atinge o público de forma sensorial. Os personagens de Tsai esvaziaram-se objetivamente; sofrem mais da ausência de si próprios do que da ausência de um outro, vivem um paradoxo entre o desejo reprimido de suas almas e o cansaço físico de seus corpos.
Influenciado por cineastas seminais do cinema moderno europeu, como Michelangelo Antonioni e Robert Bresson, bem como pela crueldade com que Maurice Pialat trabalhava o realismo dos dramas de seus personagens, além de nomes de peso do cinema asiático contemporâneo (Hou Hsiao-Hsien principalmente), Tsai constrói filmes que vão muito além de simples retratos do mal-estar da sociedade. Sua obra apresenta a complexidade da existência por meio das muitas camadas e texturas de seus tipos e de suas relações com o mundo. Um humor particular, ácido e cínico está presente na obra do diretor, que vai fundo nas dores humanas sem abandonar a sensibilidade do olhar e a delicadeza de situações banais, delicadeza essa que pode surgir do sofrimento, do patético e do grotesco. Um registro naturalista (sem cair nos artifícios e muletas de um certo gênero de cinema naturalista já saturado) e sensorial do mundo, impressos no rigor da construção estética, na complexidade e possibilidades dos significados, na materialidade presente impregnada em cada plano é o núcleo da obra desse que é um dos maiores autores surgidos no cinema nos últimos 40 anos.