‘Top Girl ou A Deformação Profissional’, de Tatjana Turanskyj

Por Fernando Oriente

Top Girl ou A Deformação ProfissionalSegundo longa da cineasta alemã Tatjana Turanskyj, ‘Top Girl ou A Deformação Profissional’ pode ser encarado como um pequeno estudo sobre a coisificação da mulher dentro de um mecanismo de anulação do indivíduo pela rotina do trabalho, onde um cotidiano mecanizado transforma as ações, sejam elas as mais banais, em gestos vazios de significação e fazem da vida uma ininterrupta repetição incessante de movimentos, atos, deslocamentos e tarefas em que a subjetividade não existe; viver para não viver, agir só dentro da passividade da aceitação de que o mundo é cumprir compromissos que não se pode evitar. Rotina essa que aliena, que depura o ser humano de qualquer possibilidade de gestação de afeto e esvazia a alma a ponto de tornar o indivíduo em um ser autômato. Um filme sobre o papel insignificante do sujeito dentro de um mundo ultra capitalista em que não existe mais escapatória para a autodeterminação de identidade.

Helena, a protagonista do filme, trabalha como prostituta. A câmera de Tatjana acompanha de perto sua personagem, por meio de pequenas elipses, em seu cotidiano de atender clientes, satisfazer suas fantasias e desejos sem julgá-los, se deslocar entre sua casa onde mora com a filha de 11 anos (e com quem mal tem tempo de se relacionar), seus encontros com as colegas de profissão na casa da cafetina para a qual trabalham e onde treinam e pensam em estratégias de marketing para melhorar o faturamento da empresa e em seus encontros com a mãe, que eventualmente cuida da filha enquanto ela passa dias e noites se dirigindo de um cliente a outro, de um trabalho ao próximo compromisso profissional.

Um dos grandes méritos de Tatjana Turanskyj é encenar tudo com um a naturalidade fria, mecânica e depurada de sentimentalismos. A diretora não julga nada do que seus personagens fazem, apenas registra seu cotidiano com a frieza calculada de quem disseca um trabalhador em suas tarefas. Esse mundo homogeneizado do trabalho, onde a prostituição é apenas mais um emprego, onde trepar por dinheiro é igual qualquer outra ocupação profissional é a base do discurso de Tatjana. Tudo é reduzido ao trabalho, a gerar lucro, a fomentar as rodas do mundo da produtividade, em que os bens de consumo são commodities de grande potencial financeiro e simbólico.   A mulher, nesse universo capitalista regido pelo machismo e a misoginia, tem na exploração da sua força de trabalho um agente de transformação de suas subjetividades em commodities de alto valor de mercado.

As cenas de sexo são gélidas, mecânicas e sempre fragmentadas, interrompidas. O que vemos são recortes, pedaços das sessões de Helena com seus clientes. A expressão em seu rosto não se altera em nenhum momento durante seus encontros com os clientes, seu olhar é sempre vago, desprovido de emoção. Tanto seus gestos como sua postura são de alguém que já se encontra vazio em sua essência, em que a aceitação da mecanização da vida já foi assimilada e nunca é questionada. Helena segue em frente, trabalha, não vive, não pensa, não deseja nada além do que seu cotidiano lhe oferece. O trabalho, a inserção, a transformação definitiva do ser humano em peça da engrenagem do capitalismo, é normatizada. Na sociedade da produtividade, não existem mais possibilidades para questionamentos, nem para alternativas de enfrentamento da precarização da existência. ‘Top Girl ou A Deformação Profissional’ é um retrato do mundo contemporâneo, uma visão cética e sóbria de uma sociedade que evolui a passos largos para a total anulação do sujeito como indivíduo capaz de se auto determinar, um universo onde cumprir tarefas profissionais é a única ação legitimada pela sociedade. Por isso afetos, relações sólidas, trocas interpessoais, desejos são objetivos que simplesmente parecem não mais existir. É o trabalho como mecanismo de negação do desejo.

Na sequência final do longa, Tatjana Turanskyj se permite criar uma alegoria, fugir da objetividade crua do registro material do mundo que constrói ao longo do filme. Helena organiza uma performance para um grupo de executivos em meio a um fim de semana de bônus por sua boa produtividade na empresa. Essa performance é um presente que o chefe desses funcionários dá como recompensa pelos bons serviços profissionais prestados por seus empregados. A performance, encenada de maneira direta e sem sentimentalismos ou apelações piegas, consiste em colocar prostitutas nuas a correr por um bosque para serem caçadas pelos executivos como se fossem animais. Tudo não passa de uma brincadeira para esses homens, uma possibilidade de relaxar em meio à rotina de seus empregos. Mas o que a diretora explicita com muita competência por meio de uma rigorosa encenação e uma decupagem ágil, é um estágio ainda mais degradante na vida profissional dessas mulheres, que além de já terem se tornado objetos, agora são reduzidas a simulacros de bichos. Não só um comentário sobre a degradação do trabalhador, mas sim uma maneira de afirmar que se o mundo do trabalho já é degradante para um homem, para a mulher essa degradação é ainda mais abjeta.

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