‘Deixa Ela Entrar’, de Tomas Alfredson (Suécia) – 2008

Por Fernando Oriente

Deixa Ela Entrar‘Deixa Ela Entrar’ (o longa original, sueco, de 2008, não a refilmagem feita anos depois nos EUA) é um filme impossível de se denominar dentro de um gênero específico. Nesse minucioso trabalho, o diretor sueco Tomas Alfredson usa de maneira original os elementos sempre fascinantes que envolvem as histórias de vampiro ( e as múltiplas possibilidades de leitura e simbolismos características ao mito do vampiro) e faz um filme em que o horror é uma solução para a subversão de uma ordem social desgastada e que, necessariamente, acaba condenando a todos aqueles que vivem dentro de suas regras salutares falaciosas de convivência pacífica. Essa condenação implica em existências melancólicas em que o conformismo resulta sempre em desilusão, egoísmo e falta de perspectivas. O mundo certinho dos adultos é um verdadeiro pesadelo de emoções congeladas e resignação consentida.

O universo social que aguarda o jovem protagonista do filme (Oskar) ao entrar na adolescência é frígido e não reserva nem um fio de esperança para um futuro minimamente feliz. A estranheza da entrada na puberdade não é fruto das expectativas por uma vida plena de autodeterminações de personalidade e possibilidades de conquista, mas uma promessa ameaçadora de um porvir resignado em torno da mediocridade coletiva que nem mesmo a sexualidade e as demais relações interpessoais podem aliviar de um fardo já anunciado.

Tudo muda quando Oskar conhece Eli, uma garota de 12 anos que, além de ter a mesma idade que ele, carrega a mesma tristeza colada à sua figura aparentemente frágil. Os tormentos de Eli são de outra ordem do que aqueles que afligem o menino, mas a identificação entre suas almas e a inevitável atração que surge entre eles irá uni-los de forma intensa (e o eterno tema do florescer da sexualidade ganhará tratamento sensível e diferenciado por parte de Alfredson). Eli impressiona Oskar não apenas pelos fatores que os assemelham, mas porque a jovem emana uma força e uma postura em relação ao opressor ambiente que os cercam que acaba por servir de guia para o garoto, não só em seus primeiros passos na puberdade, mas também nas alternativas que passa a cogitar em como lidar com tudo aquilo que o incomoda. É aqui que ‘Deixa ela Entrar’ começa a impor-se em sua originalidade. Eli é uma vampira e a abordagem do lado bestial que um vampiro representa na sociedade ganha, além de um distinto tratamento cênico, outras repercussões e significações graças à maneira preciosa como Alfredson desenvolve o tema, compõe as texturas dos personagens e cria as situações dramáticas.

Tudo parte do conflito criado entre o já descrito mundo adulto e as possibilidades de rejeição desse meio. Os jovens passam ater uma possibilidade de negar a entrada no círculo condenatório da vida responsável desses adultos exatamente pela rejeição desse estilo de vida que é representada no caráter “monstruoso” do vampirismo de Eli.

O monstro aqui é aquele que rejeita a melancolia, a passividade e a prostração dos mecanismos de existência considerados normais. Ao contrário da maioria dos filmes de terror, em que a monstruosidade e a degeneração são sintomas que perturbam a norma correta e estável da boa vida burguesa, ‘Deixa Ela Entrar’ imprime a essa aberração um discurso resistência e de negação do verdadeiro estado abjeto em que a sociedade normal está condenada a viver. Os personagens mais velhos do filme são tipos reprimidos, amargurados e frustrados. Arrastam-se em meio ao nada, são espectros que perambulam sem ter algo minimamente interessante para fazer ou dizer. A frieza com que Oskar é tratado pela mãe e pelo pai, ambos ausentes e desumanizados em suas concepções cênicas, contrapõe-se com o crescente afeto que surge em seu relacionamento com Eli. A ligação entre os dois é muito bem construída por Alfredson, que vai aprofundando a cumplicidade entre eles ao mesmo tempo em que se envolvem afetivamente com cada vez mais intensidade.

Para se combater esse estado de coisas é necessário que os dois garotos consumem suas pulsões violentas. Seja em questões de sobrevivência para Eli ou em termos de autodeterminação para Oskar. Alfredson não nega, muito pelo contrário, a necessidade do uso da agressividade como ferramenta de sobrevivência, como mecanismo de defesa e como forma de consolidação de personalidade. A violência no filme é traduzida em cenas elegantemente filmadas, em que a brutalidade ou é sugerida, ou é mostrada com distanciamento por meio de ângulos abertos, sempre ressaltando a densa atmosfera e o forte potencial imagético que Alfredson impregna em seu longa. ‘Deixa Ela Entrar’ é um filme de climas muito bem definidos em que se sobressai a constante sensação de suspense e a desconfortável tensão que tipos diferentes do padrão representam em meio a um ambiente que se pretende tão normativo e previsível, bem como irremediavelmente enfadonho.

A mise-en-scéne é rigorosamente orquestrada pelo diretor, que abusa de enquadramentos criativos, funcionais movimentos de câmera e uma decupagem sóbria e funcional, além de usar com maestria as potencialidades dos cenários onde ocorrem as ações. Trata-esse de um filme político e de confronto, cujo discurso é traçado nos subtextos, na estética e nas nuances e ambivalências propostas pela da encenação, que fazem com que cada cena seja trabalhada e construída minuciosamente usando os elementos estruturais e apropria matéria fílmica como significantes que vão se somando a um intrincado processo de codificação e sugestão de signos que retiram o espectador da passividade e o força a um processo dialético de absorção daquilo que está contido no desenvolvimento dramático-narrativo do filme.

Além de compor um drama cheio de camadas e forte densidade, Alfredson capricha no caráter formal de seu filme. A luz branca e chapada do sol de inverno e as luzes artificiais das sequências noturnas ou internas compõem um interessante contraste com a brancura do cenário nevado e as cores sóbrias e desbotadas do cenário. Esse recurso potencializa o paradoxal registro das situações, que é ao mesmo tempo terno e distanciado, sem nunca cair em sentimentalismos baratos. ‘Deixa ela Entrar’ é um desses filmes que chegam sem alarde, impressionam por sua originalidade e tornam-se imperdíveis.

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