Por Fernando Oriente
Diante de um filme como ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é impossível não enaltecer certos elementos que, trabalhados com maestria pelo diretor George Miller, tornam o filme uma experiência prodigiosa. Estamos diante de um longa que põe na cara do espectador duas horas ininterruptas de imagens espetaculares, sequências de ação criativas e viscerais, um movimento delirante e ininterrupto dentro do quadro, cenários e ambientes arrebatadores, personagens estranhíssimos (em construções visuais poderosíssimas) e de forte apelo visual e uma alta dosagem de tensão e adrenalina. ‘Estrada da Fúria’ é um filme de ação, de deslocamentos, de conflitos físicos, de explosões, de exploração imagética de corpos e máquinas. Trata-se de um grande tour de force visual em que discursos e simbologias (que claramente existem no filme) são mantidos em segundo plano diante da espetacularidade da força das imagens em movimentos, da ação e da magnificência da evolução narrativa simples e direta que conduz a história.
‘Estrada da Fúria’ remete diretamente ao segundo filme com o personagem Mad Max, cujo título original em inglês é ‘The Road Warrior’. Nesse longa de 1981, George Miller já aborda um mundo pós-apocalíptico, seco, que sofre com a falta de combustível e que é habitado por gangues de psicopatas, sádicos e tipos que beiram a animalidade. ‘The Road Warrior’ tem na sua longa sequência final uma perseguição de carros, caminhões, motos e outros tipos de veículos exóticos em que o personagem Max (já transformado em um homem perturbado e solitário após a morte de sua família) lidera um grupo de rebeldes em uma corrida para fugir de uma gangue de vilões alucinados e salvar os poucos mantimentos e combustível que ainda possuem. É como se George Miller tivesse pegado essa forte sequência final de seu filme de 1981 e adaptado ela para as possibilidades visuais do cinema de hoje e transformado todo esse seu novo filme, ‘Estrada da Fúria’, em uma única e extenuante perseguição de veículos. No novo Mad Max o que conta é se livrar de seus perseguidores e se manter vivo; é sobreviver com a parca esperança de encontrar um novo e idílico lugar onde se possa recomeçar a vida com o mínimo de recursos e longe da demência coletiva que contamina e aprisiona todos os personagens.
George Miller dá uma verdadeira aula de como se dirige um filme de ação, de como se encena perseguições, batalhas e lutas e de que forma pode-se construir, em meio a uma evolução narrativa frenética movida pela força das imagens, tensões, suspense e climas. A câmera de Miller é ágil, mas sempre em busca do registro preciso e potente da ação, suas sequências sequem uma velocidade acelerada, mas não omitem nada que prejudique a grandiosidade e o significado explícito das cenas. Cada sequência é construída a partir da montagem de diversos planos que se intercalam com naturalidade em função de potencializar o espetáculo. É notável o uso dos movimentos de câmera, dos longos e velozes travellings que re-organizam as ações dentro do quadro, que fazem personagens, objetos, veículos e cenários entrarem e sair de cena sempre dentro do ritmo alucinante que Miller emprega às suas sequências. Os belíssimos planos abertos aumentam a sensação de amplitude dos cenários bem como sugerem os conflitos que se anunciam por meio do uso preciso da profundidade de campo. A montagem é outro destaque do filme. Cada corte serve para ampliar a força do plano anterior, seja ao completá-lo, comentá-lo, confrontá-lo ou preparar para o plano seguinte. Os poucos momentos de calma (de respiro) em ‘Estrada da Fúria’ funcionam como preparações para a reorganização dramática que irá pautar e provocar a próxima avalanche de sequências de ação.
Os cenários, os carros, os veículos, a estranheza dos tipos, os figurinos, os ambientes, em suma, tudo em ‘Estrada da Fúria’ é construído com o intuito de criar um espetáculo visual em sua máxima potência catártica. A fotografia, a engenharia de som, a direção de arte e a cenografia, bem como a atuação dos atores, estão no filme para servir de agentes a essa ode ao grandioso, ao cinema como potência visual e rítmica que é ‘Estrada da Fúria’. George Miller faz um filme direto cujas as imagens, por mais fantásticas que sejam, não se deixam contaminar por efeitos visuais exagerados ou sejam carregadas por truques digitais que banalizam a aspereza com que o diretor compõe suas cenas. Cinema de ação puro, criativo, brutal e desconcertante, que traga o mais pacato espectador para dentro de suas engrenagens.
É fundamental deixar uma coisa bem clara: ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é um filme para ser assistido em 2D, sua grandeza visual, rítmica e sonora não precisa em nada de truques visuais em terceira dimensão, que servem apenas para atrapalhar a total absorção das construções de plano e dos recursos imagéticos criados por Miller.
Estamos diante de um filme de imagem e de movimento, um filme de deslocamentos em que os tipos humanos são peças que conduzem máquinas. Mas isso não impede Miller de dar texturas a alguns de desses tipos e de criar simbolismos e analogias por meio de seus personagens.
A mulher, o feminino é uma presença muito forte em ‘Estrada da Fúria’. Tudo acontece por que mulheres decidem tomar atitudes drásticas, buscam liberdade e se livrar da opressão masculina a que estão condenadas. Furiosa (Charlize Theron, cujo olhar, desde a primeira cena em que aparece no filme, carrega toda a opressão e o medo causado pelo massacre machista sofrido pela mulher, não só no universo fantástico e artificioso do filme, mas exatamente como ocorre no nosso mundo, dentro da misoginia de cada dia que controla o estado de coisas na nossa sociedade) lidera um grupo de cinco mulheres que servem de reprodutoras para o tirano Immortan Joe em uma fuga que irá provocar toda a ação do filme e que irá envolver o personagem de Max na história. Quem manda é Furiosa, não Max. Por mais que ele ajude, o cérebro de tudo, a personagem mais forte de todo o filme é Furiosa. Todas as outras mulheres que entram em cena são fortes (mesmo que dentro de suas limitações), determinadas e lutam com as mesmas armas e com a mesma fúria dos homens.
E essa é uma das melhores escolhas de Miller, fazer um filme ação frontal e intenso que, ao mesmo tempo em que remete ao machismo, à exploração sexual e simbólica e à opressão da mulher, dá poder de ação a suas personagens femininas. Em momento algum faz do longa uma obra feminista (já que as mulheres têm que adotar – por desespero de causa – posturas e comportamentos masculinos pra sobreviver e batalhar), mas sim coloca a mulher em situação de agir, de lutar, pensar e tomar decisões. Se ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é um filme sobre a sobrevivência, ele é também um longa sobre a busca da liberdade e quem conduz essa busca, essa luta, é a mulher.
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