Por Fernando Oriente
Raros são os filmes que conseguem penetrar o universo que recriam, com seus personagens, cenários, seus tempos próprios e todas as relações que surgem entre eles, de maneira visceral e plena. Incursões essas que geram imagens e dramas carregados de uma sinceridade cinematográfica que permite a esses filmes extrapolarem a mera recriação de uma realidade e transformarem-se em registros orgânicos de um universo característico. Essa organicidade é um dos dois principais fatores que conferem a força de ‘Amor, Plástico e Barulho’, longa de Renata Pinheiro.
O outro fator é a atuação magistral (sem nenhum exagero) de Maeve Jinkings como uma das protagonistas. Embora Nash Laila (que vive a outra protagonista) esteja muito bem no papel, ‘Amor, Plástico e Barulho’ é um filme que pertence a Maeve Jinkings, que tem alguns momentos em que sua presença em cena chega a um verdadeiro estado de graça.
O longa de Renata retrata duas cantoras da música brega de Pernambuco, um universo que tem seus códigos próprios, onde estrelas, sucessos, galãs e musas surgem e desaparecem em uma velocidade incrível. Esse fragmento do mundo das celebridades, que tem sua força isolada na cena musical das periferias do Recife e de outras cidades pernambucanas, serve como uma metáfora para a fugacidade da vida, para a maneira caótica com que o sucesso e a realização de sonhos surgem e evaporam da noite para o dia, deixando seus protagonistas perdidos em meio ao desgaste de tudo aquilo que viveram (de maneira meio capenga) e que não voltará a se repetir. A fragilidade dessas mulheres (bem como a força enorme que elas têm), a solidão em meio a um fracasso que não tardará a tomar conta de suas vidas, contamina os dramas bem como as ações e inações das protagonistas. Esse sucesso fugaz que elas vivem nunca chega a completar ou afirmar seus desejos de autodeterminação. Tudo é precário, como os lugares onde elas se apresentam, os programas toscos de TVs regionais, os videoclipes de vinculação no Youtube e os alojamentos onde moram e ensaiam.
Os espaços em que o filme se passa retratam bem a precariedade de um glamour pobre, improvisado. Tudo é um simulacro despojado daquilo que seria o verdadeiro mundo das estrelas. Dessa forma, a opção de Renata Pinheiro em se concentrar na rotina das protagonistas (suas viagens, o antes e o depois das apresentações, a morosidade da vida no alojamento onde moram bem como suas idas à praia ou a bares) e não nos shows e nas músicas, confere um aspecto humano e frágil ao filme. ‘Amor, Plástico e Barulho’ é sobre essas mulheres, os homens que circulam de maneira etérea em suas vidas, seus deslocamentos, seus silêncios carregados de uma frustração que não tardará a se concretizar. É um filme sobre corpos, sobre o suor, sobre desilusão, sobre a fragilidade de existir e tentar de auto-determinar como sujeito.
A câmera de Renata está sempre em ângulos fechados que aprisionam suas personagens nas limitações de suas vidas. Closes, imagens de pernas, seios, rostos cansados com suas maquiagens borradas dão o tom dá mise-en-scéne da diretora, além do forte destaque para as cores que pintam o cenário de suas existências como promessas de uma vida de brilho. As pequenas elipses que conduzem a narrativa levam de uma cena a outra sem deixar de intensificar a sensação de melancolia que conduz a existência das protagonistas.
‘Amor, Plástico e Barulho’ é um filme irregular, que não tem medo de se atirar naquilo que retrata e, com acertos e erros, mostrar um envolvimento orgânico com seus personagens e ambientes. São dessas imperfeições e das oscilações de intensidade entre as sequências que muitas vezes nasce aquilo de mais sincero e visceral do filme. Renata não tem medo de se envolver até a medula com suas protagonistas e seus dramas e tirar deles momentos passionais e humanos de grande força.
Não existe em ‘Amor, Plástico e Barulho’ efeitos rasos para seduzir o espectador, a diretora se mantém fiel as suas personagens e a relação delas com tudo que as cerca. É daí que Renata Pinheiro tira seu discurso sólido sobre um Brasil atual, esse dos anos 2000 e pouco, em que a realização de sonhos de consumo e estrelato passou a fazer parte do dia a dia de milhões de pessoas que antes apenas se resignavam na falta de oportunidades de suas vidas. Esse processo não esconde as carências da vida dessas pessoas e o filme é cruel em relação ao destino de seus tipos, mas sem jamais cair em pieguice e lamentos elitistas, nem tirar a energia e a força da personalidade de suas protagonistas. Renata vê suas cantoras, os dançarinos, DJS e demais personagens de igual para igual, sem filtragens classistas ou comiserações elitistas.
Uma cena antológica pode ser vista como a síntese do filme. Nela, a personagem de Maeve Jinkings, já sentindo a decadência de sua carreira, expulsa todos os membros da banda para afinar sozinha o microfone antes de um show em algum precário clube de periferia adaptado em casa noturna. Em apenas três planos, dois abetos e um com Maeve em close, a cantora, com lágrimas nos olhos e uma expressão de dor e raiva canta a capela o refrão de uma consagrada música brega. A decupagem mínima de Renata Pinheiro, os posicionamentos de câmera e a atuação monumental de Maeve Jinkings, que com a variação das expressões de seu rosto, sua voz (cansada, com alta carga de erotismo e raivosa ao mesmo tempo) e com olhares que trazem um universo de sentimentos, simbologias e sensações à tona, fazem da cena, além do ponto alto do longa, a materialização de todo o discurso do filme.
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