Por Fernando Oriente
Após ‘Os Donos da Noite’ (2007), ‘Amantes’ (2008) e seu mais recente filme, o ótimo ‘Era Uma Vez em Nova York’, não é exagero considerar James Gray um dos maiores diretores surgidos nas últimas décadas e um dos melhores cineastas em atividade hoje. ‘Amantes’ (Two Lovers) parte de situações prosaicas envolvendo pessoas sem nenhum glamour e consegue se desenvolver como uma obra sobre o amor e suas muitas manifestações, possibilidades e negações como há muito não se via no cinema. ‘Amantes’ é um filme de personagens e seus dramas interiores, ou melhor, de Leonard (Joaquin Phoenix, ótimo). Por mais que a narrativa ofereça momentos de impacto pela sucessão dos acontecimentos, a força central do longa está nos tipos e em como eles reagem ao que acontece ao seu redor. A sutileza e a densidade das relações contidas no filme, as reflexões sobre o desejo e a carência, tudo gira em torno da complexidade que Gray injeta em seu protagonista e nos que o cercam.
O interior, a alma atribulada de Leonard faz com que o drama, elegantemente encenado e filmado com um domínio impressionante na composição de cada plano, ganhe dimensões incapazes de serem atingidas se não fossem orquestradas por um cineasta que consegue fazer o que quer do material oferecido pelo argumento. James Gray dá a intensidade exata, nada a mais e nada a menos, à dramaticidade das situações. As emoções complexas que envolvem Leonard e aqueles à sua volta são retratadas em planos sofisticados, decupados com criatividade e sutileza e sem que exista o menor resquício de sentimentalismos ou pieguice.
Leonard ganha vida em cada detalhe da impressionante composição de Phoenix. Gray sabe como poucos revelar as camadas mais profundas de seus personagens por meio de gestos, olhares, posturas em cena e na forma e na intensidade como cada frase é dita. Não é só o protagonista que atinge essa densidade existencial. As duas mulheres com quem se envolve (sua paixão, Michelle – Gwyneth Paltrow – e seu amor-refúgio, Sandra – Vinessa Shaw -) são tipos que permitem com que o diretor desenvolva seu discurso sobre as inter-relações de uma maneira original e que foge aos padrões saturados que o cinema contemporâneo usa para discutir o tema.
Os pais de Leonard também são figuras bem compostas, fundamentais para o desenvolvimento da dramaticidade proposta no roteiro; principalmente a mãe vivida por Isabella Rossellini, que transparece seus sentimentos em meio à ternura e à resignação em relação ao que pode fazer seu filho menos infeliz. A direção dos atores é notável, os deslocamentos dos personagens no quadro em relação ao preciso posicionamento da câmera constituem a base da mise-en-scène envolvente de Gray, que domina o espaço fílmico com muita inventividade e funcionalismo estético.
‘Amantes’ é um filme adulto. Algo raro em meio a tantas produções voltadas para pré-adolescentes e dramas que abusam de fórmulas requentadas de desenvolvimento engessado. O longa de Gray transpira as sensações que aborda, cria identificações sinceras com o espectador e faz com que seus personagens e aquilo que vivem na tela passem a ser refrações de um cotidiano atual e verossímil.
Leonard é um típico representante do desconforto que cerca as pessoas no mundo atual. Seu tipo pode ser visto em qualquer grande cidade do mundo, onde pessoas trombam nas impossibilidades de estabelecer um contato mais seguro com o próximo, onde a consumação do desejo e a certeza da consolidação do amor parecem tarefas inatingíveis; se adaptar ao insucesso, reprimir sentimentos e seguir adiante com o pouco que o outro pode nos oferecer virou uma espécie de regra que conduz as relações humanas em um mundo desencantado. É esse estado das coisas que Gray registra, mesclando o distanciamento analítico com a ternura que dispensa aos seus personagens.
O amor, o desejo e a necessidade de compartilhamento, temas centrais de ‘Amantes’, são abordados por meio da necessidade que as pessoas têm de serem cuidadas e de cuidarem dos objetos de seus desejos, da ânsia que move o ser humano pela ternura máxima que o amor pode assumir e que serve de porto seguro, de refugio aconchegante em meio à desesperança e a falta de rumo que impulsionam suas vidas solitárias. É um amor que protege e que chega a assumir um caráter maternal, como na resignação consentida do amor de Sandra por Leonard.
A maneira precisa com que Gray controla as emoções encenadas faz das reações dos personagens um termômetro do paradoxo que impulsionam suas ações. A contradição entre se atirar à força do que sentem e reprimir o desejo e resistir à quase certeza do fracasso em detrimento de uma segura proteção contra a dor da desilusão parece ser a tônica em um ambiente de incertezas. A tenacidade do olhar com que Leonard procura Michelle através da janela de seu quarto na esperança de captar sua imagem ecoa na obstinação com que ele a segue até a estação de metrô. Por mais que fique claro a não-consumação de sua crescente paixão, o personagem de Joaquim Phoenix é incapaz de resistir ao amor e ao desejo que o dominam de maneira cada vez mais intensa.
São os fluxos dessa paixão, contrapostos com os desígnios deixados claros pelo destino, que o atormentam ainda mais. A grandeza de ‘Amantes’ está em oferecer múltiplas possibilidades para seus protagonistas. A significação de um personagem para o outro se transfere entre os tipos. Michelle é para Leonard o mesmo que seu amante casado é para ela. Esses papéis duplos que eles assumem ganham força em Sandra, que representa para o Leonard a mesma segurança e o mesmo amor terno e protetor que ele deseja oferecer para Michelle.
Toda essa complexidade dramática é atingida por meio de premissas ordinárias. Da aparente simplicidade das situações, Gray é capaz de desenvolver uma narrativa envolvente, personagens densos e situações de beleza pungente. A cena em que Leonard se declara para Michelle na cobertura do prédio onde moram é primorosa. Os poucos planos, emoldurados pela luz azulada do dia que nasce, captam a intensidade desesperada com que ele escancara seus sentimentos. Ângulos fechados registram a intensidade desse encontro, em que as palavras se perdem nos olhares incertos e na visceralidade com que Leonard a toma em seus braços, contraposta à tristeza com a que a jovem se entrega; não a um amante consentido, mas a alguém capaz de abrigar um coração despedaçado.