38ª Mostra

38ª mostra de SP: outras duas pequenas críticas e alguns comentários

Por Fernando Oriente

‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, de Daniel Aragão. (Brasil, 2014)

Prometo um Dia Deixar Essa Cidae_Bianca Joy PorteMais um trabalho interessante de Daniel Aragão, ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’ é um filme melhor que o anterior do diretor, ‘Boa Sorte Meu Amor’ (2012). Em seu novo longa, Aragão se mostra mais passional com seu material, se arrisca ao extremo e não teme cometer excessos e se atirar junto com o filme na fúria dramática que conduz a narrativa. O resultado é um filme intenso, irregular, muito subjetivo, mas com camadas de interpretação variadas.

Toda a força do filme vem da atriz Bianca Joy Porte e da relação que se estabelece entre ela, a câmera e a encenação do diretor, que constrói tudo na relação visceral com sua protagonista. Tudo no longa passa pelo filtro da percepção e dos sentimentos da personagem Joli, vivida por Bianca. As angústias, as incertezas, a loucura, a força brutal, as fragilidades e a sensação de não pertencimento da personagem conduzem o tecido dramático e a evolução da narrativa.

Bianca Joy Porte realiza um trabalho excelente em ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’. Sua entrega física, emocional e psicológica ao filme fazem de sua atuação uma das melhores não só do ano, mas como dos últimos tempos. Bianca é uma verdadeira atriz de cinema, no nível das nossas melhores como Maeve Jinkings, Djin Sganzerla e Caroline Abras. São atrizes que vivem de forma precisa, em múltiplas texturas, qualquer personagem. Não carregam vícios de atuação em TV e nem interpretam a si mesmas, como acontece com muitos atores e atrizes consagrados, principalmente no Brasil.

‘Prometo Um Dia Deixar Essa cidade’ é um filme intenso, que tira o espectador da posição de conforto e que sabe que dramas são potencializados e se tornam mais poderosos dentro de uma relação aguda entre direção e atuação. Méritos para Aragão e, principalmente, para Bianca Joy Porte.

‘Anna’, de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi. (Itália, 1975)

AnnaFilme impressionante (no sentido de maravilhamento provocado no espectador) dirigido por Massimo Sarchielli e Alberto Grifi, ‘Anna’ é um belo exemplo da forma como o cinema da primeira metade dos anos 70, depois do advento do cinema moderno dos anos 60 e dos cinemas novos na mesma década, lida de maneira radical com o processo de recriação e reconstrução do real como mecanismo central.

O longa é um extenso processo de aproximação, reconhecimento e compartilhamento entre a personagem central (a jovem Anna, de 16 anos de idade, grávida e moradora de rua) a câmera e a mise-en-scène orgânica e direta dos cineastas. Temos um filme em que o suporte – a gravação em vídeo transferida para 16 mm – torna o filme sensível em sua matéria, em sua estrutura física de registro e processamento de imagens. Um filme em que as imperfeições da captação em vídeo (uma novidade com poucos recursos no início dos anos 70), as texturas desse formato ampliadas e misturadas com a granulação do 16 mm torna o processo fílmico em um objeto físico de apropriação do real.

O tempo todo somos lembrados dessa existência física, material das imagens dentro do suporte. Os diretores partem desse fator e criam dispositivos distintos dentro do filme que expõem e questionam a apropriação que fazem da realidade e dos dramas que encenam e recriam. A agilidade dos movimentos de câmera permitida pelo uso do vídeo, sua capacidade de zoom e seus closes extremos dão uma inquietude constante na evolução do filme.

Os longos planos em que os personagens (Anna, os diretores, a equipe do filme e pessoas do círculo de amizade deles) discutem os mais variados temas, como nas impressionantes cenas captadas de maneira frontal dos debates políticos e sociais na Praça Navona em Roma, as cenas em que a intimidade de Anna é explorada em seus mínimos detalhes pela câmera (planos de seu corpo nu, de sua barriga de grávida, de seus seios de gestante) como na notável sequência em que a garota toma banho e um dos diretores caça piolhos em sua cabeça, bem como as passagens em que se discute o próprio processo da feitura do filme (com exposição dos microfones, falsos racccords e os debates sobre como serão rodadas uma sequência) tudo isso faz de “Anna’ uma explosão de realidade bruta na tela.

É interessante notar a relação que ‘Anna’ tem com o monumental filme de Robert Kramer ‘Milestones’ (1975), rodado e lançado na mesma época. O filme de Kramer tem proporções continentais e uma infinidade de personagens, enquanto ‘Anna’ se restringe a um universo bem mais fechado de espaços e personagens. Mas a relação de desnudamento e exposição de um momento sócio-político e cultural (tanto na Itália de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi quanto nos EUA de Robert Kramer) atinge a mesma intensidade nos dois longas. E, ambos os filmes, remetem ao tratamento que o diretor francês Jean Eustache dá a apropriação do real, principalmente em filmes como ‘Les Mauvais Fréquentations’ (1963) e ‘A Mãe e a Puta’ (1973). Tudo isso, e muito mais que só se percebe ao assistir a o filme, faz de ‘Anna’ uma obra-prima.

 Mais alguns comentários sobre destaques da 38ª Mostra internacional de Cinema em São Paulo

Do Que Vem AntesDentro da programação da Mostra em 2014, vários filmes merecem críticas e análises. Entre esses, o excelente novo filme do filipino Lav Diaz, ‘Do Que Vem Antes’ (na foto ao lado), em que temos um trabalho impressionante de encenação, construção de planos e um tratamento primoroso do tempo. Um longa que elabora uma sofisticada reconstrução da memória dentro da história recente das Filipinas. Em um filme de 5 horas e 40 minutos, Lav Diaz constrói uma narrativa sólida, ancorada no poder das imagens, na força autônoma de cada sequência e em que nada é supérfluo. Nem um minuto sequer do longa existe sem uma razão e uma função. Sua duração é exata, o filme dura o tempo que precisa durar. Um dos grandes filmes de 2014.

‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do americano Thom Andersen traça um painel da maneira como a cidade foi representada no cinema ao longo da história. A primeira parte é usada por Andersen para construir um painel sobre identidade, representações, espaços urbanos, arquitetura e evolução histórica de Los Angeles. Na segunda parte, o cineasta entra em análises complexas sob um viés político, social, simbólico, cultural e crítico da relação entre a cidade e os filmes que a retratam.

Outros longas merecem destaque: o uso originalíssimo e complexo que o mestre norte-americano do cinema experimental Ken Jacobs (com 82 anos de idade) faz do 3D em ‘Os Convidados’. Jacobs parte de um curta de 1896 dos irmãos Lumière para, por meio do uso de fotogramas desse curta em sobreposições de imagens que geram o efeito em três dimensões, fazer um estudo sobre perspectivas de quadro, função das imagens, profundidade de campo e da própria evolução da relação entre imagem e cinema ao longo dos tempos. ‘El Mudo’, filme peruano dirigido pelos irmãos Daniel e Diego Vega, faz um retrato seco e direto dos dilemas ético-morais que assolam as sociedades latino-americanas por meio da história de um juiz obcecado pelos valores do trabalho, da justiça e do direito. ‘Jauja’, do argentino Lisandro Alonso e com ótima presença de Viggo Mortensen como protagonista, é o melhor filme de Alonso desde ‘Los Muertos’ de 2004.

E ainda um destaque especialíssimo para a antológica sessão com três curtas (‘Lacrimosa’_de 1970, ‘O Porto de Santos’_de 1978 e ‘O Tigre e a Gazela’_de 1977) e o seminal longa ‘Noites Paraguayas’ (1982) do cineasta e fotógrafo Aloysio Raulino. Uma sessão toda em cópias 35 mm restauradas pela Cinemateca Brasileira.

 

Pequenas críticas de filmes da 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (1)

Por Fernando Oriente

‘A Vida Invisível’, de Vítor Gonçalves (Portugal, 2013)

A Vida InvisívelSem dúvida, um dos melhores filmes dentro da Mostra desse ano. O longa de Gonçalves é um primoroso tratado sobre o tempo suspenso, a solidão e a incapacidade de agir. O protagonista Hugo vive imerso nesse tempo suspenso. Na inação e na solidão em que passas seus dias ele carrega o peso de um passado de memórias mal resolvidas, desencantos, rupturas e experiências deixadas por viver. Em meio a isso, ele enfrenta questionamentos existências sobre sua vida incerta como um foragido do mundo e receios em relação ao seu próprio futuro, que se refletem na morte iminente de um amigo de trabalho e nas impossibilidades de se relacionar com a mulher que ama.

Esse complexo tecido dramático é construído por Gonçalves por meio da força dos planos, em que a composição radical do quadro, a autonomia das sequências e as elipses narrativas gradualmente tecem uma carga dramática sensorial que se infiltra por toda a matéria do filme. Filme de sensações, em que tudo é sugerido pelo poder do discurso das imagens, pelo rigor como o quadro é geometricamente composto e na maneira como os planos são compostos como representações dos tumultos existenciais de Hugo.

‘A Vida Invisível’ traz um dos mais sofisticados tratamentos de luz vistos no cinema recente (comparável a ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa – não acaso, os dois filmes são fotografados por Leonardo Simões). As sequências com luminosidade subexposta, a relação entre os focos de luz em meio a penumbras e sombras, o uso dramático dos ambientes escuros como reflexos da alma do protagonista, as diferentes texturas de luminosidade do quadro e as sequências em que a luz é abundante (seja no fundo do plano através de janelas ou em sequências a beira mar) são um dos pilares fundamentais da grandeza estética do filme.

Muitas das questões existenciais e dos elementos dramáticos (tratados com alto teor de sofisticação) e as opções estéticas de ‘A Vida Invisível’ remetem a temas caros para o cinema e a arte portuguesa, bem como lembram o rigor do quadro e o uso dos planos como agentes significantes presentes no cinema de Michelangelo Antonioni.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierComo era de se esperar, conhecendo o cinema de Paul Vecchiali, seu novo filme ‘Noites Brancas no Pier’ se confirma como mais um ótimo trabalho na carreira do diretor. Feito com orçamento baixíssimo, essa adaptação da novela curta de Dostoievski usa estruturas básicas de mise-en-scène, uma montagem enxuta feita a partir de elipses curtas e se apóia na força e nos sentidos paradoxais da palavra.

São várias cenas noturnas, em que um casal se conhece, tornam-se amigos e contam suas vidas um para o outro, noite após noite. Ele é um solitário que se encontra em fase de recolhimento, ela é uma jovem que aguarda o retorno do grande amor de sua vida. Na evolução do relacionamento entre os dois, em meio às vivências compartilhadas, ele se apaixona por ela e ela passa ver nele uma salvação para caso seu amado não regresse.

Tudo isso é encenado de maneira frontal e epidérmica por Vecchiali, com os personagens sempre em primeiro plano, dividindo a tela, ou com apenas um dos dois no quadro, enquanto o outro escuta próximo, mas fora de campo. O diretor trabalha esses primeiros planos pra dar ênfase ao texto falado, por vezes desfoca o ouvinte para deixar a nitidez naquele que fala e em outros momentos deixa quem está proferindo o discurso sob a luz enquanto aquele que ouve fica um passo a trás, na penumbra. Os diálogos são ditos em ritmo lento, ressaltando a sonoridade e as significações das palavras. Principalmente o personagem masculino diz seus textos de uma maneira antinaturalista (muito próxima ao estilo de Straub e Huillet) ao mesmo tempo em que ele evita demonstrar seus sentimentos por meio de gestos, expressões ou olhares. Os planos de fundo estão sempre fora de foco, aparecem como blocos de escuridão, luzes em flou, ou meras massas de cores opacas em meio à escuridão.

Trata-se de uma história de encontros e desencontros, recheada por vivências e experiências que os personagens carregam. São tipos frágeis, que vivem na incerteza do presente e nas dúvidas do que está por vir. Pessoas solitárias que projetam em seus sonhos uma variedade de esperanças tímidas, de possibilidades precárias. O que Vecchiali faz, com sua encenação direta e a força que coloca na palavra é oferecer dois seres humanos que representam toda uma humanidade que sonha, sofre, teme, mas sempre espera por algo que os tire da banalidade. Um verdadeiro banho de humanidade.

‘Salto no Vazio’, de Marco Bellocchio (Itália, 1980)

Salto no VazioUm dos melhores filmes da carreira de Bellocchio, o que já faz dele um dos imperdíveis da 38ª Mostra. Em ‘Salto no Vazio’, o cineasta italiano aborda um tema caro em sua obra: as relações tensas dentro do seio da instituição familiar e o caráter político que elas assumem. Temos no longa uma das mais radicais incursões de Bellocchio nesse terreno, um filme que trata a família burguesa como patologia e suas estruturas de dominação como expressão primal dos impulsos reacionários que comandam a sociedade. Além disso, ‘Salto no Vazio’ é um cruel retrato dos efeitos abjetos do machismo e do massacre psicológico e castrador sofrido desde sempre pela mulher.

Com uma encenação fortíssima, que carrega na complexidade das camadas narrativas para elevar as texturas dramáticas a extremos de tensão, Bellocchio usa estruturas alegóricas de sobreposição de tempos, referências à tragédia grega e ainda compõe um painel sobre os papéis políticos das classes sociais na Itália do final dos anos 70 e início dos 80, com o pano de fundo do choque (sempre fora de quadro e pouco mencionado na diegese) entre o conservadorismo democrata cristão, a presença de valores de anarquismo libertário e os ecos das ações das Brigadas Vermelhas e demais grupos de extrema esquerda, além da derrocada da representatividade dos partidos comunistas e socialistas tradicionais. Ao situar um drama íntimo em meio a uma instabilidade político-social de alta magnitude, Bellocchio faz de seu microcosmo dramático um fragmento que representa e amplia os valores e a significação da situação nacional italiana da época.

‘Winter Sleeps’, de Nuri Bilge Ceylan. (Turquia, 2014)

Winter SleepsCeylan é um caso raro no cinema. Após três filmes muito ruins – ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008) – em que fazia emulações embusteiras do cinema moderno europeu, principalmente Antonioni, o diretor turco fez o bom ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011). ‘Winter Sleep’, seu último longa em cartaz na Mostra desse ano, é mais um bom filme (embora inferior ao anterior), o que mostra que o cineasta encontrou uma maneira e um estilo de fazer um cinema sólido e autêntico em que faz fluir seus discursos e idéias.

Em seu novo trabalho, Ceylan volta ambientar todo o longa na região da Anatólia na Turquia. Seus dois últimos filmes mantêm um forte diálogo entre si. Se em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ tínhamos elementos do cinema policial, em ‘Winter Sleeps’ Ceylan já dirige seu discurso para o terreno do drama familiar e social. Mas a relação entre as ações de tipos carregados pelo peso do passado, os conflitos reprimidos no interior dos personagens que rompem em tensões dramáticas cheias de ressentimentos e uma situação de confronto insolúvel entre classes sociais estão presentes de maneira epidérmica nos dois filmes. É notável como em fazer filme com duração maior (2hora e 37 minutos em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ e 3 horas de 20 minutos em ‘Winter Sleeps’) Ceylan encontrou a maneira certa para desenvolver com firmeza suas narrativas e trabalhar bem as questões dramáticas dentro de uma relação mais bem construída com o tempo e os espaços dos planos e sequências.

‘Winter Sleeps’ chega a ter momentos fortíssimos, em que uma encenação sólida e uma decupagem funcional criam cenas marcantes, como as discussões cheias de crueldade e violência reprimida entre o protagonista e sua irmã e depois com sua mulher. As tensões familiares, a força dos conflitos entre os irmãos, a família afastada em um lugar atemporal no interior de um país dialogam diretamente com o universo de Anton Tchekhov, com quem o filme faz referências explícitas que merecem destaque até nos créditos finais. Nuri Bilge Ceylan virou um bom diretor, ‘Winter Sleeps’ é a prova que ‘Era Uma Vez em Anatólia’ não foi um acaso, e sim o momento em que Ceylan encontrou a força de seu cinema.

‘Non-Fiction Diary’, de Jung Yoon-Suk. (Coréia do Sul, 2013)

±¤ÁÖ ÁöÁ¸ÆÄÀÇ ÇöÀå°ËÁõEsse documentário sul-coreano faz um belo painel da história político-econômica e social recente da Coréia do Sul (sem deixar de contextualizar com épocas mais antigas na história do país) por meio de um fato principal (os assassinatos em série cometidos por um grupo de fanáticos) e dois paralelos (os desabamentos de loja de departamentos e de uma ponte). As três tragédias ocorreram entre 1993 e 1995, período em que a Coréia saia de um regime militar e entrava em uma democracia de orientação neoliberal. Outros assuntos são levantados durante o longa, como o perdão aos ditadores e seus crimes cometidos, questões envolvendo a exploração religiosa dos acontecimentos, a pena de morte na Coréia bem como os caminhos que o desenvolvimento acelerado trouxe para o país. É impossível ver o filme e não pensar no atual momento coreano, com sua economia inchada em meio à mega-corporações como Samsung e Hyundai, entre outras

O tema central no discurso do diretor Jung Yoon-Suk são os efeitos contraditórios e muitas vezes nocivos que o desenvolvimento capitalista traz para um país de terceiro mundo que se encontra em fase de crescimento econômico. Esses efeitos são sentidos por todos os lados e parecem ser inevitáveis consequências de imposições inerentes ao capitalismo, como as desigualdades sociais, a obsessão pelo lucro o descaso com a população em geral e a ausência de uma presença regulatória e protetora do Estado.

O filme é construído por meio de muitos depoimentos, mas ao contrário de inúmeros documentários que apenas acumulam testemunhos de forma rápida demais, esses depoimentos de ‘Non-Fiction Diary’ se relacionam entre si, ampliam as questões e os questionamentos levantados bem como sempre retomam temas e os aprofundam ainda mais. Imagens de arquivos bem editadas, textos impressos e imagens feitas nos dias atuais potencializam o caráter dialético do filme. ‘Non-Fiction Diary’ serve muito bem a nós brasileiros, principalmente se lembramos das políticas neoliberais insanas aplicadas por FHC no Brasil nos anos 90, na relação conivente que a Justiça brasileira tem com os criminosos da nossa ditadura que continuam impunes e nos conflitos que surgem decorrentes de desigualdades sociais aberrantes.

 

38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo: dicas e apostas

38 MostraPor Fernando Oriente

A Mostra de 2014 começa com uma seleção bem forte. Vários cineastas de peso têm seus novos trabalhos na programação, vencedores de quase todos os principais festivais internacionais do ano serão exibidos nos 15 dias do evento em São Paulo e algumas pérolas do cinema poderão ser conferidas em cópias restauradas. Tudo isso a Mostra traz ano após ano, então vamos aos filmes recomendados pelo Tudo Vai Bem dentro dessa 38ª edição (alguns já assistidos e outros que chegam cercados de boas credenciais). Seguem pequenas críticas de filmes vistos, links para crítica de outros longas aqui mesmo no site e breves comentários sobre as apostas e os filmes que tem tudo para se confirmarem.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierPaul Vecchiali é um dos grandes cineastas vivos. Seus filmes foram pouquíssimo assistidos no Brasil, principalmente em cinema. Seu novo longa estar na programação da 38ª Mostra é motivo de celebração. Autor de filmes belíssimos como ‘Femmes Femmes’ (1974), ‘Corps à Coeur’ (1979) e ‘Rosa la Rose, Fille Public’ (1986), Vecchiali traz nesse seu ‘Noites Brancas no Pier’ uma adaptação da curta novela ‘Noites Brancas’, de Dostoievski. O livro já rendeu duas ótimas adaptações para o cinema feitas por nomes como Luchino Visconti e Robert Bresson. Vecchiali é um diretor do mesmo nível desses dois e seu filme já chega a Mostra como um dos mais imperdíveis do evento.

‘Acima das Nuvens’, de Olivier Assayas (França, 2014)

Acima das NuvensEm seu novo longa, Assayas recupera a força que tinha perdido um pouco em ‘Depois de Maio’, seu irregular trabalho anterior. Em ‘Acima das Nuvens’ temos novamente a encenação visceral do diretor francês, sempre com uma câmera inquieta e uma decupagem ágil. A intensidade narrativa e a carga dramática do filme se relacionam o tempo todo com uma sobreposição entre o tempo presente dos personagens e suas ações e a relação que eles mantêm com o passado e o que trazem desse passado, num jogo entre tempos distintos em que o processo de envelhecer (amadurecer) e encarar as marcas do que foi vivido (e deixado de viver) implica em escolhas e enfrentamentos num presente incerto cujas certeza são postas em dúvida por sensações de incompletude e uma falsa estabilidade emocional.

Esses conflitos são colocados por Assayas dentro da relação entre as cenas que vemos na tela e o peso que o extracampo traz (sejam as memórias, as relações mal resolvidas, as imaturidades e o medo de envelhecer da personagem de Juliette Binoche; bem como o que o diretor apenas sugere, deixando a complexidades dos tipos ainda mais abertas). No filme, a atriz interpretada por Binoche aceita participar de uma peça que fez quando tinha 18 anos. Só que dessa vez, ela interpretará a personagem mais velha do texto (uma mulher de 40 e poucos anos que se destrói por amor e obsessão por uma jovem que a seduz). Aqui Assayas faz da relação da protagonista com as duas mulheres da peça uma projeção sobre suas texturas emocionais: ela é as duas ao mesmo tempo, uma se projeta na outra, e a vivência da personagem de Binoche faz com que sua relação com as duas protagonistas da peça ganhe novos contornos constantemente e se projetem sobre o momento em que vive.

Ao fazer Binoche ensaiar a peça com sua jovem assistente vivida por Kristen Stewart (muito bem no papel) a relação entre as personagens da ficção e da vida real se sobrepõe e muitos conflitos são sugeridos, mas Assayas também os mantém no fora de quadro, seja por elipses ou por cortes bruscos. Ao lerem o texto, Binoche e Stewart projetam as relações ficcionais do texto no cotidiano em que vivem, e as relações de poder que estão na peça são subvertidas em um jogo em que dominadora e dominada invertem papéis. Mas o grande mérito de Assayas é compor toda essa dramaturgia densa de uma maneira sugestiva, evitando excessos emocionais e indicando caminhos muito mais do que os explicitando. A presença sempre ótima de Binoche em cena aumenta ainda mais a força do filme. Não é o melhor Assayas, mas ‘Acima das Nuvens’ está dentro da lista de belos filmes assinados pelo diretor.

‘Anna’, de Alberto Grifi e Massimo Sarchielli (Itália, 1975)

A cópia restaurada dessa obra-prima pouco conhecida do cinema italiano é um dos programas imperdíveis da 38ª Mostra. Os diretores Alberto Grifi e Massimo Sarchielli acompanham a vida de uma jovem dependente química grávida de 16 anos que eles tiram das ruas e trazem para morar com eles. As relações entre a câmera dos cineastas, sua personagem e os espaços e ações a que ela está inserida são de uma força poucas vezes vista no cinema.

‘Falstaff – O Toque da Meia Noite’, de Orson Welles (Espanha/França, 1965)

Um dos filmes mais pessoais de Welles e considerado seu melhor trabalho por muitos, ‘Falstaff’ será exibido em cópia recém restaurada. Essa obra-prima do cineasta norte-americano, rodada na Espanha, utiliza-se de vários textos de Shakespeare para refletir sobre questões existenciais do homem e os próprios processos criativos que marcaram a carreira de Welles.

‘Os Convidados’ de Ken Jacobs (EUA, 2014)

Um longa em 3D em que o formato é o principal elemento na composição do filme. Jacobs parte de um dos trabalhos dos irmãos Lumière ‘Entrada de Um Casamento na Igreja’ (1896) para construir cenas fragmentadas em 3D que refletem elementos da construção de imagens e das relações entre planos e sobreposições de representação imagética.

Os três longas de Victor Erice

Com apenas três longas em uma carreira que teve início em 1961, com o curta ‘En La Terraza’, o cineasta catalão Victor Erice dirigiu um dos filmes seminais do cinema europeu moderno, ‘O Espírito da Colméia’ (1973). Além desse filmaço, a 38ª Mostra exibe os outros dois longas do diretor, ‘O Sul’ (1983) e ‘O Sol do Marmelo’ (1992). Três filmes poderosos que fazem parte dos obrigatórios da Mostra desse ano.

‘Um Cão Andaluz’ (1929) e ‘A Idade de Ouro’ (1930) de Luis Buñuel

Também em cópias restauradas, os dois curtas de Buñuel representam marcos do cinema que influenciaram questões estéticas e materiais do próprio fazer cinema. Filmes indispensáveis.

‘O Segredo das Águas’, de Naomi Kawase (Japão, 2014)

O Segredo das ÁguasO cinema pessoal e cheio de características particulares da diretora Naomi Kawase está representado em quase todos os seus elementos centrais em ‘O Segredo das Águas’. O longa, o melhor da diretora desde ‘Floresta dos Lamentos’ (2007), trata dos temas principais de sua obra: uma busca constante pelos aspectos metafísicos da Natureza (tanto física, quanto existencial), o deslocamento constante em direção a uma ascese espiritual do mundo, a relação orgânica entre os ciclos da vida e um tratamento muito característico que a diretora dá à questão da morte e suas implicações, sempre de forma sensível, em que a passagem da morte, por mais que possa ser dolorida, assume aspectos transcendentais que vão além da finitude dos indivíduos.

No filme, que se passa em uma ilha do Japão em que os espaços da Natureza tornam-se personagens dos dramas e contrapontos do interior dos personagens, temos dois jovens protagonistas, um garoto e uma garota de 16 anos de idade. A adolescência, o descobrir dos fluxos da vida e da finitude dos seres a que os dois estão inseridos são contrapostos com o desabrochar do erotismo e a relação que eles mantêm com a natureza, principalmente o mar. Mar e sexo são elementos constitutivos do que de mais básico a vida traz, são formas de estar no centro das pulsões da existência.

A câmera de Naomi se mexe constantemente, mas sempre em busca de um enquadramento revelador, que posiciona e reposiciona seus tipos em cena e contextualiza suas presenças dentro do espaço físico das ações. A presença constante de imagens da Natureza (o mar, árvores, florestas, morros) serve para reforçar o discurso da diretora. Acrescentam e dialogam dialeticamente em imagens silenciosas (recheadas de ruídos ou suaves melodias) com o que os personagens pensam, sentem e falam, bem como suas dúvidas diante um universo que transcende a materialidade dos ambientes em que vivem. O belo trabalho de luz serve para ampliar a significância das imagens, ressaltam elementos e pontos do quadro. Não existe no cinema de Naomi Kawase a busca pelo belo vazio, seus filmes são densos em sua simplicidade, não tem nada a ver com a inércia tão comum em filmes contemplativos e rasos que a cada ano tomam o circuito com a frouxidão ancorada no esplendor de sequências publicitárias da beleza de paisagens que nada dizem.

O domínio da natureza dos espaços de Kawase não fica restrito a paisagens naturais, a sequência em que o jovem protagonista vai a Tóquio encontrar o pai mostra como a diretora tira o máximo de densidade de espaços construídos e caóticos como as ruas de uma das maiores metrópoles do mundo. ‘O Segredo das Águas’ não é a obra-prima da diretora, título que fica com o longa ‘Shara’ (2003), mas é sem dúvida um dos mais belos filmes na seleção da Mostra desse ano.

‘Com os Punhos Cerrados’, de Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti (Brasil, 2014)

Um dos melhores filmes brasileiros do ano, em que os diretores retomam o vigor, as questões estéticas e o discurso de seus filmes anteriores, os poderosos ‘Estrada para Ythaca’ (2010) e ‘Os Monstros’ (2011). Leia crítica do Tudo Vai Bem para ‘Com os Punhos Cerrados aqui

Vencedores dos principais festivais de 2014

Do Que Vem AntesEntre os vencedores de grandes festivais internacionais desse ano que estão na programação da 38ª Mostra, o Tudo Vai Bem aposta mais em ‘Do Que Vem Antes’ (foto ao lado), novo longa do cineasta filipino Lav Diz e vencedor do Festival de Locarno 2014. Diaz é um belo cineasta, teve uma retrospectiva completa de seus filmes na Mostra do ano passado e seu novo filme chega a São Paulo após vencer filmes fortíssimos que estiveram na seleção do festival suíço desse ano. Já o ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2014, Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência’, do diretor sueco Roy Andersson, pode ser uma boa pedida, já que Andersson é um cineasta interessante, mas longe de ser brilhante. Em seu currículo ele tem dois filmes bons ‘Songs from the Second Floor’ (2000) e, principalmente, ‘Vocês, os Vivos’ (2007).

O vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2014, ‘Winter Sleep’, do turco Nuri Bilge Ceylan, pode ser uma boa escolha dentro da programação da Mostra, já que as informações que nos chegam é que o longa está mais próximo do interessante trabalho anterior do diretor ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011) do que de seus fraquíssimos filmes mais antigos: ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008).

Longas do Festival de Brasília 2014

Cinco filmes, dos seis que competiram no Festival de Brasília desse ano, serão exibidos pela 38ª Mostra. Dois deles são muito bons, ‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais e ‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós. Os outros três ‘Brasil S/A’, de Marcelo Pedroso, ‘Pingo D’Água’, de Taciano Valério e ‘Ventos de Agosto’, de Gabriel Mascaro vão de irregulares a medianos. Leia críticas do Tudo Vai Bem para todos os filmes do Festival de Brasília 2014 aqui

Mais algumas dicas e apostas

A retrospectiva com três filmes do cineasta japonês Noboru Nakamura é bem recomendada pelo amigo, crítico e professor Sérgio Alpendre, o que já vale para conferir os filmes. Outro crítico e professor com gosto de primeira, o amigo Filipe Furtado indica o filme ‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do diretor americano Thom Andersen, um longa que faz uma viagem pela forma como a cidade foi representada durante a história do cinema.

Entre outras apostas do Tudo Vai Bem estão ‘As Noites Brancas do Carteiro’, o novo trabalho do cineasta russo Andrei Konchalovskiy (diretor do ótimo ‘Expresso para o Inferno’ de 1985), e ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, o mais recente filme do diretor pernambucano Daniel Aragão, que tem a atriz Bianca Joy Porte em uma atuação poderosa.