Por Fernando Oriente
Se ao longo de 2014 o cinema independente brasileiro viveu entre impasses que apontavam certo saturamento do novo cinema praticado no país, com o surgimento de fórmulas, cacoetes e repetição superficial de alguns temas (deslocamentos, afeto, mal estar de viver, fusão ente ficção e documentário, excessos de metacinema e do uso do dispositivo como finalidade e não meio para o desenvolvimento dos filmes) ao mesmo tempo em que belos filmes apontavam caminhos interessantes a serem seguidos e afirmavam a qualidade de alguns realizadores, o ano de 2015 começou de maneira muito promissora. A 18ª Mostra de Tiradentes (principal plataforma para difusão e discussão do cinema independente contemporâneo no país ao lado da Semana dos Realizadores no Rio) teve em sua curadoria uma seleção de filmes fortes, que priorizaram a liberdade criativa, a inovação, o experimentalismo e exibiu filmes originais, dos mais diferentes estilos, que indicam que o cinema brasileiro independente está forte e não se encontra preso aos impasses citados acima e que tantas discussões levantaram ao longo dos último ano.
A Mostra de Tiradentes 2015 teve um recorte de sua programação exibido na cidade de São Paulo pelo terceiro ano consecutivo. O Tudo Vai Bem assistiu cinco longas e um curta desse recorte na capital paulista e podemos afirmar que a seleção de Tiradentes 2015 foi muito feliz. Com bons filmes, alguns irregulares, mas sempre com elementos interessantes, o cenário apontado por esses filmes traz uma injeção de vigor e consistentes provas de que o cinema contemporâneo brasileiro tem muito a oferecer.
Esse texto traz brevíssimas análises dos filmes assistidos pelo site em São Paulo.
‘Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer’, de Allan Ribeiro
O filme de Allan Ribeiro aborda a solidão de uma maneira extremante original. Dentro dos códigos do documentário, e da relação complexa construída entre Allan e seu documentado, o artista plástico e vídeo-maker amador Darel, o longa penetra na casa e na intimidade do Darel para, por meio de depoimentos, imagens do cotidiano do artista, depoimentos e falas isoladas dele para a câmera e trechos dos vídeos gravados por Darel, construir um painel em forma de mosaico do cotidiano de um velho que vive das reminiscências de sua vida, de seus trabalhos como pintor, de suas imagens captadas e de suas memórias.
A fusão entre os tempos filmados por Allan, com as imagens produzidas por Darel aliados às memórias do artista, o amplo destaque que o filme dá ao ambiente de isolamento em que Darel vive e as lembranças da vida do personagem são construídas por meio de uma evolução narrativa livre, não-linear e que vai ganhando força ao desenrolar do filme e acaba por produzir um filme em que nada é explícito, tudo é sugerido, insinuado.
Imagens e depoimentos, bem como o registro dos silêncios, dos pequenos gestos e dos espaços formam um complexo conjunto visual e sonoro em que a passagem do tempo, as tragédias, a solidão, as perdas, as realizações de uma vida e as incertezas em relação ao futuro se fundem em uma matéria fílmica de rara originalidade e que conferem um caráter subjetivo e cheio de arestas para o discurso proposto por Allan Ribeiro. Um filme de detalhes e sutilezas, triste e melancólico, em que não se julga nada, em que tudo é transformado em reflexão e sensações. Um longa sofisticado no melhor sentido da palavra e que pede revisões constantes para que o espectador possa imergir nos diversos detalhes e camadas compostos pelo diretor.
‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’, de Rodrigo de Oliveira
Em seu segundo longa, Rodrigo de Oliveira realiza um filme extremante pessoal (com uma sólida segurança em fazer um trabalho exatamente de seu jeito e sem concessões), em que com grande liberdade narrativa e de mise-en-scène (ao mesmo tempo em que impõe rigor e funcionalidade a essa encenação), constrói um jogo de representações por meio de personagens e situações dramáticas que nunca são o que aparentam ser. Tipos se desdobram, dramas se redefinem, novos conflitos surgem em meio à evolução narrativa. Passado e presente são colocados na tela dentro de um rigoroso processo dialético em que as significações se multiplicam e se abrem dentro das múltiplas capacidades de percepção das representações e simbologias que são o centro e a matéria de ‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’. Um filme que se desdobra em uma gama de tecidos interpretativos e possibilidades de leituras.
Um filme que respeita o tempo das ações e dos dramas, que permite o espectador absorver aquilo que vê na tela de maneira livre. Um belo trabalho de composição de planos, com precisa construção de quadros e bom uso de profundidade de campo dão mais densidade ao filme. Sequências marcantes como o longo plano sequência em que os amigos acertam suas contas com o passado, cenas carregadas de simbologia e força visual, um uso fortíssimo e dramático da música e uma cena de sexo de extremo vigor e urgência são alguns dos inúmeros destaques desse que é um dos grandes filmes de Tiradentes 2105.
‘O Animal Sonhado’, de Breno Batista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto e Victor Costa Lope
Irregular como todo filme coletivo, embora mantenha uma coerente unidade entre suas partes, o filme tem um grande mérito por abordar o sexo de maneira frontal. As trepadas, a nudez, corpos em conflito direto e o desejo em estado puro são os temas do filme. Não existe a preocupação em se aprofundar nas situações dramáticas. O que os realizadores querem é abordar seus temas e as cenas de maneira frontal, direta; e isso o filme consegue.
Uma mesma simbologia do homem como animal sexual marca cada fotograma do filme. Com momentos fortes e algumas passagens mais fracas, ‘O Animal Sonhado’ cumpre o papel de sua proposta de maneira honesta. Abordar e colocar em primeiro plano o sexo direto, com a nudez dos corpos e o desejo escancarado é algo que anda em falta no atual cinema brasileiro. Só por isso, ‘O Animal Sonhado’ já tem méritos suficientes e merece ser visto como ele é, sem pretensões e com uma frontalidade bruta, em que os realizadores se entregam ao seu material de forma passional e sem medo do erro.
‘Medo do Escuro’, de Ivo Lopes Araújo
Um ensaio, um filme experimental, um estudo de imagens, sons e texturas para compor um painel metafórico da condição do homem contemporâneo em meio a um mundo apocalíptico. Com complexa construção formal, uso constante de diferentes registros de captação (e a variação constante de texturas resultante desse processo), montagem ágil e muito movimento dentro dos quadros, Ivo Lopes Araújo faz de ‘Medo do Escuro’ uma experiência estética vigorosa, com situações de intensidade pulsante e algumas passagens em que o longa perde um pouco da força.
Um filme que se entrega e abraça com vigor elementos do experimentalismo, mas que não deixa de tecer comentários ácidos sobre a visão de mundo do diretor. Uma experiência estética rica (no sentido complexo e filosófico do termo estética, não apenas uma questão de forma). ‘Medo de Escuro’ pede a imersão total do espectador para atingir seus objetivos, e a trilha sonora executada ao vivo na sessão do filme em São Paulo potencializou ainda mais essa experiência. Imagens de grande impacto, simbolismos em primeiro plano e uma tensão constante e crescente que acompanha toda a evolução do filme fazem de ‘Medo de Escuro’ um exercício de cinema livre intenso e sensorial.
‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’, de Dellani Lima
Dellani Lima mostra em seu novo longa uma notável maturidade como encenador, constrói um filme em que o centro dramático está naquilo que é sugerido, nas entrelinhas e subtextos, na distância calculada que ele mantém daquilo que encena. Por meio da história de um foto jornalista e professor de fotografia, incapaz de se adaptar as novas tecnologias do digital, ao mesmo tempo em que vive uma fase de impasses existenciais em que revê sua história de vida, ‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’ é uma reflexão sobre a imagem, sobre a relação do que é registrado em oposição aos fatos e ao que é vivido pelo ser humano, bem como um tratado sobre o peso do tempo e da força das memórias no presente de um homem angustiado.
O filme de Dellani não cai em pieguices nem em discursos banais. Trata das emoções de maneira objetiva, em que o que está fora do quadro dialoga constantemente com as ações e a inércia dos pequenos dramas encenados. O destaque dado às significações, as possibilidade e limitações de imagens captadas (instantes congelados e eternizados em reproduções) ajudam a tecer um discurso sólido sobre o próprio papel do cinema no mundo. A distância que a câmera mantém das emoções e dos personagens, bem como a encenação sugestiva e controlada, que evita os arroubos sentimentais, tornam o filme ainda mais forte. Os momentos metafóricos são autênticos e as relações e analogias criadas por Dellani atingem uma força autêntica.
‘Filme Selvagem’, de Pedro Diogenes
Em um dos melhores curtas dos últimos anos, Pedro Diogenes faz de ‘Filme Selvagem’ uma pequena obra-prima. Um filme godardiano com ecos de Walter Benjamin, Rogério Sganzerla e muito mais.
Com imagens belíssimas, um uso primoroso das texturas variadas dessas imagens (que dialogam dialeticamente com os textos narrados), uma montagem impressionante e um discurso extremamente complexo e urgente. Filmaço.
O que seriam ecos de Walter Benjamin?
No caso de uma crítica curtíssima como a que escrevi, é uma maneira de salientar que no curta existem várias referências e possíveis leituras ao que Benjamin desenvolveu dentro de suas teorias sobre a Indústria Cultural e de como isso evoluiu para os dias de hoje, com uma hiper-exposição de informações, imagens, sons e como é isso imposto, nos dias de hoje, como mercadoria de consumo.