‘Mapas para as Estrelas’, de David Cronenberg

Por Fernando Oriente

Mapas Para As Estrelas“Sabe o é o inferno? Um mundo sem narcóticos”. Essa frase dita logo na primeira parte do novo longa de David Cronenberg nos diz muito sobre o que é ‘Mapas Para As Estrelas’. O longa constrói, por meio de diversos personagens e situações paralelas que vão se inter-relacionando, o retrato de um mundo em que a condenação já é um destino garantido na vida de qualquer pessoa, só a alienação, seja por meio dos mais variados narcóticos possíveis (químicos, simbólicos ou emocionais) podem adiar ou aliviar o desfecho trágico da existência. O mal já foi feito, os pecados já foram consumados, a falácia da salvação só existe em ilusórios programas de auto-ajuda barata e na tentativa sempre insuficiente de se obter sucessos fugazes, pequenas conquistas narcísicas de auto-exposição da própria imagem como mercadoria de consumo. No mundo das aparências, do capital que transforma tudo e todos em objetos desse mesmo consumo, o individualismo tornou-se regra básica para se viver. As relações não passam de jogos de poder, de tentativas de se fazer do outro um meio para a consagração do eu cego.

Cronenberg retrata tudo isso de maneira cirúrgica. Escolhe como ambiente pra seu filme Hollywood, suas estrelas mirins, suas atrizes decadentes, seus agentes, produtores e todo um grupo de aspirantes ao sucesso, além de subempregados do showbiz que vagam em círculos em meio ao vazio existencial. Um mundo cheio de cores e com visual asséptico onde a superficialidade dos contatos humanos e a falta de sentido são as únicas coisas reais. Como também é real a presença constante de fantasmas que literalmente ganham presença física no filme e vem cobrar dos vivos a lucidez que eles tentam a todo custo manter reprimidas em seus devaneios egocêntricos. Mas não é apenas ao mundo do cinema, da indústria do entretenimento que Cronenberg se restringe. O discurso do filme é universal. Os personagens do filme são pessoas comuns, que apesar do meio em que vivem , são idênticos a qualquer homem ou mulher da sociedade contemporânea; pelo menos dentro desse mundo da aparência, do consumo e da alienação compulsivas que conduzem as sociedades capitalistas em que nada tem importância fora da sua capacidade de troca, de seu potencial de uso, de seu valor como mercadoria e espetáculo e em que a aparência anulou a essência.

David Cronenberg é um cineasta direto. ‘Mapas Para As Estrelas’ é construído por meio de uma mise-en-scène e uma decupagem extremamente frontais. O diretor retrata as mais complexas situações, compõe um painel cheio de camadas sobre a sociedade contemporânea mantendo os dramas, as texturas dos personagens, a evolução narrativa e as próprias ações na superfície de sua matéria fílmica. A naturalidade com que a câmera de Cronenberg registra tudo chega a ser desconcertante. A frontalidade do filme é tão objetiva que tira o espectador de sua posição de conforto e amplifica o potencial de tudo aquilo que é encenado. Cronenberg disseca o universo que aborda sem truques, tudo é colocado na cara do espectador. O confronto é proposto por meio da clareza com que o diretor encara a diegese e o discurso que dela surge.

‘Mapas Para As Estrelas’ é um filme que dá sequência natural a obra monumental que David Cronenberg vem construindo no cinema desde os anos 70. Se o diretor encaminhou seu cinema para uma maior interiorização das degenerações da condição humana desde ‘Marcas da Violência’, isso não significa que as deformidades, as transformações da carne e da alma não estejam mais presentes em seu cinema. Elas apenas passaram do exterior para interior dos personagens. Os corpos continuam em mutação e sendo mutilados e reconfigurados, só que esse processo se dá no interior dos tipos, em suas almas, naquilo que os leva a agir de forma brutal mesmo com seus corpos aparentemente sadios. As próprias situações dramáticas encenadas pelo cineasta são reflexos constantes dessa condição mutante do homem, mutação essa existencial e condicionante do estar no mundo e do agir de cada personagem.

Corpos continuam em primeiro plano no cinema de Cronenberg. Em ‘Mapas Para As Estrelas’ isso aparece na exposição da personagem Julianne Moore, que se despe para câmera em sessões de massagem, em uma bizarra cena de sexo a três em que ela sai da cama em meio à uma trepada frustrada e pede desculpas ao parceiro alegando ser uma “péssima lésbica” ou mesmo quando conversa com sua assistente sentada na privada cagando e peidando em meio a um diálogo banal. Corpos, fluídos, odores e a carnalidade do ser humano nunca abandonam os filmes de Cronenberg. Para completar ainda temos a personagem da jovem desfigurada por um incêndio, talvez a única personagem do filme capaz de levar a cabo um plano, a única que parece distante da alienação patológica em que todos os outros tipos do filme estão mergulhados, por mais paranóicas que possam parecer suas intenções. Mas a sofisticação de Cronenberg é a de naturalizar essas intenções e fazer delas uma saída conclusiva natural para a vida dos personagens envolvidos, nem um pouco menos paranóica que as existências aparentemente normais dos demais tipos que vemos em cena.

Outro ponto da acidez sarcástica do discurso de Cronenberg é sempre colocar os personagens de ‘Mapas Para As Estrelas’ como vítimas de relações familiares doentias, em que abusos sexuais, incesto, filhos que se anulam para se tornarem um duplo de seus próprios pais como solução para relacionamentos enfermos, ou a banalidade com que o ser humano transfere seus transtornos de personalidade a possíveis atos abusivos por parte de uma mãe ou um pai disfuncional, são fatos corriqueiros na vida contemporânea pós-psicanalítica. Cronenberg tece uma crítica à instituição familiar (não diminui o verdadeiro efeito destruidor das degenerações incrustadas no seio da família) ao mesmo tempo em que usa da transformação dessa disfuncionalidade em clichê e muleta para se justificar qualquer possível transtorno emocional na idade adulta, bem como uma forma de se auto-promover a imagem fazendo do papel de vítima de traumas de criação um elemento causador da empatia de um público ávido por conhecer e compartilhar com comiseração os sofrimentos das personalidades que admiram e consomem.

A família para Cronenberg carrega a sordidez da sociedade, é microcosmo de um mundo patologicamente doente, mas não faz disso um discurso moralizante ou piegas e usa a própria transformação dessa patologia em elemento de banalização da vida, em que a demência dos conflitos familiares apenas irão se estender para a base de ação do ser humano dentro da sociedade como um todo.

Como em vários de seus filmes e talvez mais ainda se pensarmos em ‘Marcas da Violência’ e ‘Senhores do Crime’, em ‘Mapas Para As Estrelas’ as explosões de brutalidade inerentes ao ser humano, bem como a ebulição e exteriorização dos instintos mais primários, virão sempre à torna e se tornarão atos físicos e violência pura que Cronenberg registra com a mesma frontalidade e dentro do mesmo processo direto de mise-en-scène com que constrói todo seu filme. A transparência da encenação, da construção dramática e da evolução narrativa tornam o filme ainda mais perturbador. Cronenberg, como um cirurgião, abre o os corpos de seus personagens para expor as entranhas de uma sociedade que ele sempre viu como doente.

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