Críticas

‘A Academia das Musas’, de José Luis Guerín

Por Fernando Oriente

A Academia das Musas, de José Luis GuerínUm filme como ‘A Academia das Musas’ surge como algo desconcertantemente original, uma obra direta em que tudo funciona, se dá e se tenciona pela palavra. Raramente um filme colocou a palavra de maneira tão acentuada como seu objeto central como nesse novo trabalho do catalão José Luis Guerín. Mas o que torna o filme notável é que a palavra, os diálogos onipresentes e seus desdobramentos só atingem a força arrebatadora que vemos em ‘A Academia das Musas’ por meio dos elementos cinematográficos. É o cinema que potencializa a palavra. A construção formal radical que Guerín utiliza é que eleva a palavra às potências que ela assume no longa. Podemos tecer aqui comparações com o cinema de Straub e Huillet e de Eugène Green, mas a encenação que esses utilizam para promover a força da palavra são totalmente distintas dos meios formais e estéticos que Guerín usa em sua mise-en-scéne. Enquanto tanto Straub e Huillet quanto Green trabalham a palavra de maneira anti-naturalista, com as falas proferidas de maneira cadenciada, recitadas, discursivas e, como já dito, ausente de qualquer naturalismo, Guerín impõe aos diálogos e às falas de seus personagens uma naturalidade extrema e orgânica à diegese e às estruturas de encenação, nada que tenha a ver com o naturalismo forçado que muitos cineastas se apegam para tentar conferir um realismo excessivo aos seus filmes.

A estrutura de documentário direto que condiciona a construção ficcional de ‘A Academia das Musas’, presente na construção formal e estética, é implicado na maneira como seus personagens conversam, falam e debatem de maneira natural, coloquial; são verborrágicos, interrompem um ao outro, são ansiosos no querer constantemente verbalizar seus sentimentos, desejos e interpretações que fazem daquilo em que estão inseridos. Isso provoca uma constante sensação que estamos em meio de tudo o que ocorre em cena, como se câmera de Guerín estivesse sempre presente fisicamente registrando fragmentos de uma realidade próxima a nós. Tanto que muitas cenas e diálogos são registrados através de vidros de janelas e portas de casas, bares, cafés, carros, como se a câmera estivesse ali para captar a qualquer custo o encontro dos personagens nos momentos em que conversam e verbalizam. Uma câmera que precisa captar a palavra, nem que seja como uma intrusa, uma espiã, que registra por trás desses vidros a intensidade do que é dito e como é dito.

‘A Academia das Musas’ assume o papel de um estudo de tese. Todo o filme gira a partir das teorias do professor de filosofia Raffaele, que em seu projeto acadêmico e de pesquisa elabora um curso em que pretende resgatar o valor e o papel que tinham as musas tanto na antiguidade como no Renascimento – indo da mitologia grega, passando pelo romance entre Lancelot e Guinevere até a poesia de Dante Alighieri – para formular uma tese que esse papel exercido pelas musas, pelas mulheres de provocar nos homens a admiração, o amor e a inspiração artística foi na Antiguidade e no período clássico fundamental para que poetas e escritores fossem capazes de produzir obras sublimes e imortais. Raffaele quer resgatar o valor da mulher como musa para se aplicado nos dias de hoje, promover uma salvação da sociedade por meio da capacidade das mulheres contemporâneas assumirem o papel ativo de musas inspiradoras dos homens para que esses possam criar obras que recuperem o valor do belo que foi perdido. Seria pelo resgate da beleza, promovido por meio da inspiração das mulheres/musas, que se tornaria possível trazer o conceito pleno de beleza de volta a um mundo desencantado.

'A Academia das Musas'A força que os debates do professor provocam em suas alunas, e acompanhamos na primeira parte do filme aulas e mais aulas em que ele expõe sua teoria em meio a acalorados debates em sala, se desdobra na vida dessas alunas e também na relação entre Raffaele e sua mulher. As discussões saem dos debates teóricos em classe e passam a tomar conta do cotidiano de todos. As alunas conversam entre si e passam a situar e interpretar suas vidas, relações amorosas, desejos, expectativas e ideologias a partir das teorias de Raffaele. Mas o primeiro confronto é entre o professor e sua mulher (personagem que pode ser vista como a grande antagonista das ideias dele), um casal que está chegando à velhice e que após décadas de casamento, entra em conflito pela maneira como a mulher de Raffaele rebate enfaticamente suas teorias, anulando os aspectos teóricos metafísicos e sublimes do que ele diz em sala e desloca a discussão para um conflito de gênero. Ela o acusa de manipulador e reduz sua teoria a uma forma de idealizar, desvalorizar subjetivamente as mulheres e reduzi-las meras agentes responsáveis por fazer com que homens assumam o protagonismo, se inspirem e tomem para si o papel de poetas, pensadores e artistas capazes de salvar o mundo usando o feminino para se inspirar, o que acaba por reduzir o valor da mulher, as impondo a meros objetos idealizados de pureza, beleza, fonte de desejo e amor (amor que para ela é visto pelo marido como algo utópico, como mero fruto de criações literárias e não um sentimento real capaz de unir duas pessoas materialmente no mundo). Ela é racional, pensa no mundo de hoje, não aceita essa caricaturalização da mulher como um ser irreal, inatingível, colocada em um pedestal e desprovido de protagonismo. Esse conflito entre o casal irá acompanhar todo o filme.

Mas Guerín não se restringe a ele e coloca as alunas, as relações entre elas, a forma como vêem suas vidas afetivas e seus papeis dentro da realidade a que estão inseridas por meio das teorias de Raffaele. São diálogos notáveis, em que elas discutem o valor da palavra, da linguagem como forma de expressão maior de suas existencialidades. Por meio da história de cada uma delas a teoria de Raffaele se reproduz, se refrata e se desdobra num caleidoscópio de sensações, dúvidas e reformulações subjetivas. O professor passa a se encontrar com as alunas fora da sala de aula, ele interage com cada uma delas e novamente temos diálogos primorosos em que a partir do que é posto em sala elas o questionam, concordam, desaprovam e completam suas teorias com aquilo que sentem e com o que ocorre em suas vidas. Raffaele chega a acompanhar duas alunas a viagens a Itália, onde buscam, tanto nos pastores de ovelha da Sardenha – e como suas relações com a natureza e com ancestralidade os tornam poetas próximos à ideia clássica que o Raffaele defende – bem como nas catacumbas, museus e locais históricos de Nápoles, as fontes históricas e os mitos formadores da poética ligada a Natureza e a inspiração, sempre mediada pelos indícios e presença do papel das musas ao longo da história, valor esse que o professor quer resgatar por meio de suas alunas.

Impressiona como Guerín constrói essas personagens femininas de maneira complexa, confere a elas protagonismo, com texturas, ações, discursos e personalidades que faz com que cada uma seja distinta da outra e ao mesmo tempo essas diferenças provoquem constantes discussões em que o choque das diferenças acaba por dialeticamente construir e potencializar discursos e possibilidades de fala que se completam, desdobram e ampliam a novas possibilidades de leitura e interpretação do mundo e também de cada individualidade, além de levantar sempre novos questionamentos. Tudo permeado pelas teorias de Raffaele, mas a força do que pensam as alunas (bem como suas experiências, desejos e histórias de vida) e como elas interpretam e reorganizam essas teorias confere às ideias de Raffaele essas novas possibilidades de significação. Todo o poder da palavra presente em ‘A Academia das Musas’ serve para promover choques, debates e questionamentos que fazem surgir novos conflitos. A dialética no filme é onipresente, conduz a narrativa e é pelo confronto promovido pela força da linguagem que essa dialética atinge uma dimensão enorme.

Tudo gira em torno da palavra, dos diálogos e da constante construção de tensões por meio da linguagem. Mas como foi apontado antes, é pelo cinema e seus elementos estruturais que Guerín confere força e complexidade a esse processo. A composição do filme é preciosa. O diretor decupa seu filme de forma radical, não usa racccords de transição, trabalha constantemente com cortes secos, fragmenta os diálogos e depura seu filme de qualquer excesso formal, sem planos descritivos, sem música e usa constantemente a tela preta para unir sequências. A construção da encenação é toda baseada em elementos do documentário direto, com uma câmera leve, ágil que está sempre no interior das ações as registrando de perto e acompanhando os movimentos internos dos planos. Esse recurso da composição ficcional ser baseado em dispositivos do documentário só valoriza a força das cenas, ressalta os diálogos, a captura da significância dos gestos, dos rostos – tanto dos que falam quanto dos que escutam – além de elevar a palavra, o que é dito ao cerne da dramaturgia. ‘Academia das Musas’ é um filme em que o diálogo está praticamente em todas as cenas, são pouquíssimas as sequências em que não vemos dois ou mais personagens constantemente falando e escutando o que é dito, conversando e externando seus pensamentos e discursos interiores em linguagem falada. É a tentativa de dominar a linguagem para consolidar o discurso. Temos aqui uma concepção estruturalista dessa linguagem, mas que não se prende apenas aos conceitos do estruturalismo e sim os transborda e os questiona.

A Academia das MusasUma comparação se faz necessária entre ‘A Academia das Musas’ com o filme mais famoso de Guerín, aquele que chamou a atenção dos críticos e cinéfilos mais atentos ao talento do diretor, ‘Na Cidade de Sylvia’ (2007); um belíssimo longa em que o diretor trabalha exclusivamente os deslocamentos dos personagens pela cidade (e a forte relação desses com os espaços, trajetos e ambientes), quase sem diálogos, em que a força vem do movimento constante dos tipos, de seus olhares, expressões e gestos e principalmente pelo que não é dito. É como esse seu novo filme que analisamos aqui seguisse sentido contrário a ‘Na Cidade de Sylvia’. Lá havia os planos de ligação como centro, sendo eles a promoverem a força dramática e se estabelecendo como matéria principal. ‘A Academia das Musas’ segue caminho totalmente oposto. É o diálogo, a palavra, a montagem fragmentada, a ausência de planos contemplativos de ligação, a decupagem radical que conferem a potência imensa do filme.

‘A Academia das Musas’, além de todos esses elementos fascinantes, também pode ser apreciado como uma grande experiência intelectual. O espectador é posto como um observador que divide com as alunas a experiência das teorias de Raffaele, projetando dentro de suas próprias expectativas e repertórios uma jornada intelectual que parte de uma tese acadêmico-filosófica em construção que se desdobra no cotidiano dos personagens, mas também no público. Guerín faz de ‘A Academia das Musas’ uma obra ímpar, verborrágica, direta e de um vigor impressionante. Um filme fantástico.

‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’, de Rodrigo de Oliveira e ‘Ralé’, de Helena Ignez

Por Fernando Oriente

‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’

Teobaldo Morto, Romeu ExiladoEm seu segundo longa, Rodrigo de Oliveira realiza um filme extremante pessoal (com uma sólida segurança em fazer um trabalho exatamente de seu jeito e sem concessões), em que com grande liberdade narrativa e de mise-en-scène (ao mesmo tempo em que impõe austeridade e funcionalidade a essa encenação), constrói um jogo de representações por meio de personagens e situações dramáticas que nunca são apenas o que aparentam ser. Tipos se desdobram, dramas se redefinem, novos conflitos surgem em meio à evolução narrativa. Passado e presente são colocados na tela dentro de um rígido processo dialético em que as significações se multiplicam e se abrem dentro das distintas capacidades de percepção das representações e simbologias que são o centro e a matéria de ‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’. Um filme que se desdobra em uma gama de tecidos interpretativos e possibilidades de leituras.

‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’ respeita o tempo das ações e dos dramas, expande as questões temporais dentro da concepção dos planos e da encenação, permite o espectador absorver aquilo que vê na tela de maneira livre. Um belo trabalho de composição de planos, com precisa construção das cenas, boa utilização e variação entre a profundidade de campo e os ângulos fechados de câmera dão mais densidade ao filme. Sequências marcantes como o longo plano sequência em que os amigos acertam suas contas com o passado em um confronto físico e verbal – todo filmado a distância, em que os personagens entram e saem de quadro, se distanciam da câmera e suas ações se projetam na amplitude do espaço -, cenas carregadas de simbologia e força visual, um uso fortíssimo e dramático da música e uma cena de sexo de extremo vigor e urgência são alguns dos inúmeros destaques dessa obra singular.

Um filme sobre o pertencimento. Sobre estar no mundo em relação a si mesmo e aos lugares, em relação aqueles que amamos e construímos um relacionamento baseado em múltiplos conflitos de sentimento e em relação ao passado e aqueles que deixamos lá, nesse tempo já vivido, mas cuja existência retorna em tormentos de memória, em rancores, em situações mal resolvidas, em assombrações que se materializam para nos enfrentar e questionar. Um filme sobre retornos e o peso da ausência que esses retornos reintroduzem em vidas já marcadas pela carência, o rancor e o deslocamento provocados por essas ausências.

Filme incontornável devido às inúmeras aberturas significantes que compõe seu discurso, ‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’ trabalha de maneira originalíssima a questão da identidade (e como a identidade se relaciona com as questões do pertencimento), sempre ligada à presença simbólica que um personagem representa para o outro. Como essas existências se tencionam nesse outro e se consolidam e se moldam a partir das relações divididas e projetadas, daquilo que é compartilhado bem como do que fica quando esse outro passa a ser uma ausência, uma presença isolada na imaterialidade do tempo ou mesmo uma lembrança idealizada – seja no resgate memorial do passado vivido em comum ou no presente em que ela se projeta como ausência física, mas que se mantêm onipresente pelas marcas fundadoras que ela deixou enraizadas no interior das essências de cada um -, bem como nas possibilidades do retorno material ou simbólico desse outro e dos valores identitários que um possível retorno, real ou imaginado (esperado), podem trazer para afirmar ou redefinir essas identidades multifacetadas.

‘Ralé’

RaléO novo longa de Helena Ignez é, antes de tudo, uma celebração, uma cerimônia de afirmação da vida pelas diferenças, pela arte, pelo desejo, pela força dos corpos, da Natureza, dos gestos e dos sentidos e pela utopia de uma realidade possível no deslocamento físico de sues personagens. Um filme libertário, construído de cenas isoladas, com autonomia de significação, que se ligam pelo discurso festivo de rejeição do mundo como espaço castrador e pela busca da autodeterminação dos sujeitos como corpos, mentes e espíritos livres. Um filme de movimentos, de cores, com muitas músicas e textos que propõem constantemente a reflexão, que procura situar o sujeito como agente de seu próprio destino, em comunhão com o espaço, as sensações e os desejos.

Helena se concentra na força da palavra, na presença pulsante dos corpos e na constante celebração da existência fora das regras, na negação dos valores morais conservadores. ‘Ralé’ começa e termina em São Paulo, com uma presença fortíssima do concreto, dos espaços urbanos e da relação entre eles e os personagens e de lá se desloca para uma fazenda no meio da Amazônia, onde um vasto grupo de personagens de diversos tipos participam da gravação de um filme manifesto, se encontram para conversar e discutir a vida, onde se unem para criar um espaço utópico de liberdade. Na fazenda mora o personagem de Ney Matogrosso, o Barão, que vai se casar com Marcelo, um dançarino. ‘Ralé’ usa da força simbólica dos atores, temos em cena verdadeiros ícones da arte no Brasil, que além de interpretarem personagens, trazem suas próprias histórias de vida como elemento de força simbólica ao longa. Temos mitos como a própria Helena Ignez, Ney Matogrosso e Zé Celso Martinez Corrêa. Ao lados deles, temos a força física, agressivamente libertária e auto determinante da mulher por meio da presença poderosa em cena das belíssimas Simone Spoladore, Djin Sganzerla e Barbara Vida, entre várias outras mulheres visualmente e conceitualmente fortes. Helena também promove uma celebração da diversidade sexual, colocando em cena personagens gays, trans e naturalizando com muita leveza a libertária presença simbólica da auto-afirmação das orientações sexuais como algo atávico ao ser humano. O prazer dos corpos e o desejo não podem jamais seguir regras, ‘Ralé’ aborda com muita leveza e organicamente o potencial revolucionário das liberdades sexuais.

A câmera de Helena é leve, sempre em movimentos ritmados se aproximado, contornando, recuando e reenquadrando personagens e suas relações entre si e com o espaço que os cercam. A imagem em digital cristalino potencializa a clareza dos movimentos internos do quadro, ressaltando gestos e cores em uma transparência de texturas que tornam o filme ágil, colorido, musical, em que tudo está claro para ser visto e sentido. ‘Ralé’ dialoga constantemente com elementos e movimentos fundamentais para arte brasileira. Temos trechos de filmes de Rogério Sganzerla, mais precisamente duas obras-primas do diretor feitas na época da Belair: ‘Sem Essa Aranha’ e ‘Copacabana Mon Amour’. Vemos Helena Ignez como Sonia Silk no filme de 1970 e ao mesmo tempo vemos Helena hoje. Ela usa as referências dos anos 60 e 70, mas as atualiza para o mundo de hoje, Helena Ignez traz ao mesmo tempo todo um repertório encravado no melhor da arte feita no Brasil e se mostra coerente com os dias de hoje, sabe aproximar épocas e referências para discutir o presente com o peso das referências do passado. Textos de Brecht lidos por Zé Celso, Ney Matogrosso cantando com todo o peso simbólico que sua presença em cena representa, são esses fatores icônicos que Helena mescla com as questões atuais, com a presença dos jovens, das mulheres que exalam poder na beleza de seus corpos e mentes, na força de seus olhares e gestos, nos casais gays, na juíza trans que celebra o casamento.

‘Ralé’, com sua liberdade de encanação e sua estrutura dramática fragmentada na montagem de cenas independentes (mas que dialogam constantemente entre si) mantém-se sempre no campo do simbólico, nas forças significantes de suas cenas, seus tipos e na frontalidade transparente das imagens. Um filme leve, despojado em sua complexidade e que busca sempre “descolonizar o pensamento”, como é dito pela própria personagem de Helena numa das cenas fundamentais do longa.

‘Certo Agora, Errado Antes’, de Hong Sang-soo

Por Fernando Oriente

Certo Agora, Errado Antes“Procure por algo novo a cada segundo. Olhe sempre para tudo que está a sua volta e encontre sempre algo novo”. Essa frase, dita pelo protagonista de ‘Certo Agora, Errado Antes’, último filme de Hong Sang-soo, pode muito bem resumir todo o cinema do diretor. Hong é um cineasta único, seus filmes têm características próprias que se repetem em todos os seus longas, com maior ou menor intensidade. Um dos grandes autores do cinema contemporâneo, que filma desde os anos 1990, Hong Sang-soo segue formas, discursos e mecanismos de maneira obsessiva em todo filme que dirige. Já se cansou de escrever como ele repete ao extremo as mesmas situações, tipos de relacionamentos, cenas, características emocionais de seus personagens, estruturas narrativas, processos de montagem, cenários, além de recursos e técnicas constantes em seu modo de filmar e encenar, desde posicionamentos e movimentos de câmera, estruturas dramáticas a opções de decupagem. Repetir isso no texto acaba sempre necessário quando se aborda uma obra assinada por ele. Porque o que mais impressiona é que é na repetição, na exaustão sempre criativa dos mesmos processos que Hong consegue a cada filme nos encantar com a originalidade e a fluidez como ele extrapola as situações corriqueiras, a banalidade e a rotina do dia a dia e traz para a centralidade da matéria de seus filmes discursos de extrema sensibilidade sobre a fragilidade humana, a solidão, a fugacidade dos relacionamentos, as inseguranças emocionais, a carência afetiva e como tudo isso é transformado pelo diretor em constantes afirmações da vida, que se mostram presentes no mistério dos encontros, na melancolia das subjetividades, na precariedade do presente, no humor dos pequenos eventos e na imensa maravilha que existe em cada ser humano imerso nessa gigantesca multidão anônima e solitária. Ele, a cada filme, encontra sempre algo de novo por meio do simples ato de olhar ao entorno, perceber o mundo a sua volta.

O cinema de Hong Sang-soo é o cinema dos encontros fortuitos, do acaso, do que surge e seus personagens são incapazes de compreender totalmente, dos pequenos gestos, das emoções que brotam repentinamente e tomam conta mulheres e homens e na maneira como eles tentam reprimir ou redirecionar seus desejos, sem nunca saberem em que direção a vida os levará. Existe uma sensação de fracasso, de frustração nos seus tipos, eles podem ser bons e reconhecidos por algo que fazem, mas suas essências estão sempre incompletas. São tipos que se movimentam constantemente, caminham pelas ruas, se encontram em cidades que não conhecem e estão apenas de passagem, entram e saem de bares, cafés e restaurantes. Bebem demais, falam demais (e muitas vezes se atrapalham com aquilo que querem dizer e a maneira como formulam suas idéias e desejos em discurso), usam a bebida para deixarem fluir os tumultos internos de suas almas, o que muitas vezes gera mal entendidos, situações cômicas (mas sempre com traços de melancolia – o humor em Hong Sang-Soo vem sempre acompanhado de sentimentos difusos que misturam um mal-estar, um desconforto e uma tristeza latente) ou acabam por redimensionar e potencializar relacionamentos recém iniciados. Mas ao mesmo tempo, os filmes do diretor são sempre sobre partidas, despedidas, rupturas e reafirmam a impossibilidade de total autodeterminação de seus personagens, bem como a incapacidade de solidificação de seus desejos e de como nunca conseguem manter uma relação com aqueles que realmente desejam estar juntos.

‘Certo Agora, Errado Antes’ é talvez o filme mais romântico do diretor, um verdadeiro filme de amor. Uma de suas obras mais sensíveis pela forma com que o diretor trata os sentimentos que surgem entre o protagonista do filme, o cineasta Ham Chunsu e aspirante a pintora Yoon Heejung. Como em todos os filmes do cineasta, os dois se conhecem por acaso, passam o dia e a noite juntos e acabam se apaixonando. Se apaixonar não é algo comum no cinema de Hong. Geralmente seus personagens sentem atração, desejo ou algo próximo de um sentimento forte como o amor, mas em ‘Certo Agora, Errado Antes’ podemos afirmar que o que Ham e Heejung passam a sentir um pelo outro é amor, no sentido pleno do termo. Esse caráter sentimental dá muita força ao filme pela maneira como Hong Sang-soo conduz a narrativa e os dramas. Não existem sentimentalismo nem romantismo caricato no filme, existe uma abordagem complexa e sofisticada de um amor intenso que surge desse acaso, movido pelas incompletudes dos protagonistas.

'Certo Agora, Errado Antes'E é exatamente por reproduzir uma característica constante em seu cinema, que ‘Certo Agora, Errado Antes’ ganha mais força. O filme é encenado duas vezes, algo que o diretor fez em diversos de seus longas desde ‘A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários’ (2000). As mesmas cenas, os mesmo cenários, os mesmo encontros, as mesmas ações centrais que acontecem na primeira parte do filme se repetem na segunda. É um filme contado duas vezes, mas com situações, detalhes, diálogos e desfechos distintos em cada uma delas. Se na primeira parte as ações, escolhas e falas de Ham levam a um fracasso completo da insipiente relação entre ele e Heejung, na segunda o protagonista toma atitudes, posturas, diferentes escolhas e se abre de maneira muito mais sincera, o que encaminha a relação dos dois para a solidificação e afirmação da força dos sentimentos que surgem entre o casal. A ruptura final, a partida de Ham da cidade e sua volta a Seul é inevitável, mas na segunda parte do filme estamos diante de uma típica história de amor que não irá vingar, mas que a sensibilidade com que concebida a construção narrativa e dramática dos eventos e a primorosa encenação de Hong Sang-soo faz com que os sentimentos, a força do que surgiu entre seus protagonistas se projete tanto em Ham e em Heejung, bem como no espectador, para além da separação final. O amor é algo que acontece, que é forte demais e que deixará marcas indeléveis em quem vivenciou e sentiu suas intensidades, por mais que a distância do objeto amado venha a se impor. O sentimento é muito intenso para ser esquecido. É algo que todos nós carregaremos dentro da alma, no coração, na mente e na memória. Como diria Godard em alguns de seus filmes: “o amor não acaba, ele vai embora”.

Toda essa força dramática, o poder discursivo da narrativa, esse funcionamento perfeito em dividir o filme em duas partes, em contar a história duas vezes só funciona porque Hong Sang-soo é um diretor extraordinário. Dentro de sua aparente construção minimalista e naturalista, a mise-en-scéne de Hong é de uma funcionalidade e precisão assombrosas. Seus elementos centrais: o uso discreto da câmera, sempre inserida no interior e a serviço do registro dos dramas com distanciamento calculado (mantendo e seguindo o ritmo das ações e prostrações em função dos personagens), o uso constante dos planos longos reorganizando o quadro, a valorização dos gestos, a força física e material da presença dos atores em cena, o fato de nunca usar o campo e contracampo nos diálogos – fazendo os enquadramentos inserirem os personagens que conversam ao mesmo tempo no quadro, ou deslocar a câmera em sutis aproximações ou movimento laterais para enquadrar um personagem enquanto o diálogo continua com o outro fora de campo -, as pequenas e marcantes elipses que unem as seqüenciais, o uso lento do zoom que provoca uma aproximação da ação, mas que sempre parece ser interrompido de maneira brusca para permitir que ação prossiga com o mínimo de influência possível e não dilua sua intensidade, tudo isso está presente em ‘Certo Agora, Errado Antes’.

As variações narrativas e dramáticas entre as duas partes do filme são acompanhadas e construídas não só por distintas situações dramático-narrativas, diálogos e suas consequências, mas também pela encenação. As sequências que se repetem são filmadas por Hong Sang-soo de maneira claramente díspares, usando em cada uma delas diferentes enquadramentos, novos movimentos de câmera, outras decupagens e cortes, além de alterar as elipses, bem como o início e o término das cenas, omitindo pequenas passagens que estavam presentes na primeira e inserindo novos elementos de cena e situações na segunda. É preciso muito talento e domínio completo da forma e da estética para se conseguir a potência que Hong Sang-Soo atinge por meio desses processos.

Certo Agora, Errado Antes, de Hong Sang sooEnxergar as múltiplas possibilidades que existem na vida, que são possíveis a partir das mesmas premissas, dos mesmos encontros, perceber que nada tem um percurso ou um destino pré-determinado. Entender que pequenos gestos, novas atitudes, diferentes palavras e discursos podem surgir a qualquer momento e fazer de encontros, afetos, relações e de como se ver e se posicionar diante do outro podem mudar completamente o percurso dos acontecimentos, suas consequências e desfechos. Tudo isso é afirmar a complexidade da vida, é ressaltar como estamos sempre sujeitos ao acaso e aos encontros, que nada é certo, é explicitar as possibilidades ilimitadas de cada homem ou mulher, alargar a própria existência humana e nossa relação com o mundo, o espaço e o tempo. Hong Sang-soo faz isso como ninguém, é a essência de sua estética e de seu discurso.

‘Certo Agora, Errado Depois’, esse lindo filme amor, sem nunca deixar de estar totalmente inserido no universo ímpar da obra de Hong Sang-soo, é um longa de um cineasta que amadurece sem jamais abandonar a criatividade, a fidelidade ao seu estilo, a sinceridade de seu discurso e a sua visão de mundo. Ao lado de ‘A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários’, ‘A Mulher é o Futuro do Homem’ (2004), ‘Conto de Cinema’ (2005), ‘Mulher na Praia’ (2006), ‘O Dia em Que Ele Chegar’ (2011) e ‘‘Filha de Ninguém’ (2013), ‘Certo Agora, Errado Depois’ é mais uma pequena obra-prima na carreira do diretor.

‘A Assassina’, de Hou Hsiao-Hsien

Por Fernando Oriente

A AssassinaHou Hsiao-Hsien é um dos maiores cineastas vivos. Essa frase é fundamental para tentarmos penetrar em ‘A Assassina’, seu último longa, um projeto que ele cultivava há décadas e levou nove anos para realizar, entre pré-produção, filmagem, montagem e pós-produção. Se Hou é um dos maiores nomes que o cinema já teve e sua obra está repleta de obras-primas e filmes maravilhosos desde que iniciou sua carreira nos anos 1980 em Taiwan, algumas características de seu cinema são notáveis para consolidá-lo num posto tão alto em meio aos grandes autores. A mise-en-scéne de Hou Hsiao Hsien é sempre primorosa, sua encenação (esse elemento central na arte a que se dedica) é de um preciosismo e de uma perfeição que assombram o espectador, é por meio desses procedimentos que seus dramas, suas narrativas, as texturas de seus personagens e as relações entre os tipos, os espaços e o peso do tempo atingem potenciais máximos de percepção e sensorialidade. Um artesão da encenação que usa todas as estruturas formais do cinema para dar força, sentido, complexidade e abrir um imenso espectro de possibilidades de leitura e de representação. Nada em seus filmes é gratuito, tudo tem um sentido, uma funcionalidade, uma razão do porque estar presente em cada fotograma.

‘A Assassina’ é um filme em que o depuramento é chave e elemento central de tudo. Temos um filme que baliza sua matéria e seu enunciado no wuxia, gênero tipicamente chinês (mas muito mais presente fora da China continental, sendo Taiwan e Hong Kong os locais onde mais se trabalha esse gênero tanto na literatura quanto no cinema). O wuxia traz toda uma mitologia própria, aborda períodos históricos da China na Idade Média, na era das dinastias e da consolidação do enorme território como nação. São histórias de lutas, de combates, de conflitos entre guerreiros, assassinos, traidores onde se proliferam os combates de artes marciais, lutas de espadas, sabres e adagas. Todo um reino em que geralmente a figura central é um guerreiro/guerreira solitário, muitas vezes um assassino(a) guiado por estreitos códigos de conduta, dever e moral. Um universo em que esses protagonistas solitários enfrentam conspiradores, tiranos, corrupções e tentativas de golpe e desestabilização da ordem social e política

Admirador e consumidor de livros e filmes de wuxia desde sua infância, Hou usa esse gênero para fazer de ‘A Assassina’ um filme que honra toda essa tradição, recria todo seu universo simbólico ao mesmo tempo em que realiza uma obra ímpar e personalíssima, em que o mais valorizado é a imagem e como dela surge a relação da protagonista e dos demais personagens com o peso enorme do tempo, daquilo que trazem como marcas definidoras de suas personalidades e de como a relação de tudo o que foi vivido entra em conflito com as urgências das ações que devem ou podem ser tomadas, ou por necessidade de manutenção do poder e evitar traições ou apenas para cumprir ordens e respeitar os códigos morais nos quais estão inseridos e são obrigados a seguir.

A narrativa de ‘A Assassina’ é simples, ao mesmo tempo em que é o fator menos importante do filme. Essa narrativa nos é apresentada por Hou Hsiao-Hsien por meio de detalhes, fragmentos, de pistas, pelos cenários e pela forma como são captados, pelos movimentos tanto os de câmera quanto os internos aos planos, e muitas vezes mais por gestos ou posturas físicas e expressões do que por palavras – sempre algo diretamente ligado às imagens que elabora e nos apresenta em doses precisas durante o encadeamento do filme. Essa narrativa nos é oferecida como um quebra-cabeça, em que juntar suas partes, amarrar suas pontas torna-se uma tarefa que forçosamente se dilui na exuberância das imagens isoladas, dos planos por si só, na maneira como o diretor constrói os climas e os momentos de ação e conflito e os interrompe, deixando sempre a tensão presente e num crescente. Não interessa a Hou dar explicações, criar reviravoltas clássicas nem momentos de clímax. Todo o filme é um enorme clímax dos sentidos e dos signos que faz o espectador ser tragado pelo esplendor da encenação para um espaço sensorial, mítico em que as percepções e o poder das imagens falam muito mais aos instintos e às projeções do que à razão.

‘A Assassina’ é um filme em que a força dos planos, o poder significante das cenas e a beleza imagética de cada sequência surgem soberanos graças à primorosa mise-en-scéne (calculada e esculpida com apuro e detalhamento impressionantes) e por uma depuradíssima decupagem. Uma obra de um cineasta maduro, que detem o domínio total da forma e da matéria de seu filme. Hou Hsiao-Hsien constrói um espetáculo visual suntuoso e ao mesmo tempo minimalista, em que personagens extremamente complexos vivem situações em que a justaposição das experiências vividas por eles e as ações que foram tomadas no passado e determinaram de maneira impiedosa seus destinos se opõem às opções, limitações e oportunidades de escolha que se oferecem a eles no presente e em relação às consequências que ecoarão no futuro. Tudo em meio a esse peso que carregam, às necessidades individuais e coletivas, às regras morais que devem seguir e em como isso irá implicar no outro e naqueles a que são ou foram próximos, bem como nas possibilidades de se projetar novos destinos. Tudo é sugerido, o cineasta aponta caminhos e possibilidades, trabalha dentro do que é visto e as inúmeras relações, reações, codificações, interpretações e análises que podem surgir a partir de um simples fotograma, de um ruído, de um movimento.

A protagonista do filme, a assassina Nie Yinniang (interpretada de maneira preciosa pela belíssima Shu Qi) é uma personagem riquíssima em texturas, que vive em meio aos rígidos códigos em que foi criada para se tornar uma assassina perfeita e letal é obrigada por uma ordem da monja que a treinou desde a infância (quando foi afastada de casa pelos pais para ser iniciada na ordem das assassinas) a regressar a sua terra natal e matar seu primo Tian Ji’na (Chang Chen, também preciso no papel), que agora se tornou o poderoso senhor da região e provoca receio na corte imperial. O reencontro, as emoções reprimidas, o que se guardou e fez se projetar pelo passar dos anos, as expectativas, ressentimentos e frustrações, além das incertezas em detrimento ao que possa vir a ser, aos conflitos que devem ocorrer ou se evitar e o que se fará tanto por meio de ações como por meio de inações passam a surgir na tela a cada instante.

'A Assassina'O que promove toda a tensão é o fato de Tian Ji’na ter sido noivo de Nie Yinniang antes de ela tornar-se uma assassina. Mas a grandeza de Hou Hsiao-Hsien está em ampliar e aprofundar a dramaticidade e suas possibilidades ao fazer da personagem de Shu Qi uma assassina perfeita, mas que desde que nos é apresentada no prólogo do filme (todo esse em preto e branco) mostra-se uma pessoa que vive constantemente em conflito entre seus deveres e compromissos e seus sentimentos, sua noção de bondade, de certo e errado. Esse conflito a consome e faz com que seus deveres como eficaz matadora sejam postos em risco mediante a sua incerteza em fazer prevalecer os códigos de conduta e a rigidez com que deve sempre executar suas ações e nunca julgá-las a partir de seus sentimentos. ‘A Assassina’ pode ser visto como um filme em que os sentimentos e a própria identidade dos personagens é constantemente subjugada e reprimida, eles são obrigados a suprimir qualquer manifestação de afeto, qualquer possibilidade de seguir seus próprios instintos e desejos. Esse conflito é filmado de maneira sublime por Hou, ele não usa nenhum sentimentalismo, não cria nenhum diálogo ou situação que possa fazer com que essa tensão se torne uma narrativa que ocupe a superfície do filme. Toda a tensão existencial e individual da protagonista e dos demais personagens é posta sobre diversas camadas, nunca se sobrepõem à centralidade da força e da beleza das imagens que dominam o filme. Trata-se de uma obra centrada e devota a força autônoma das imagens, ao peso da construção estética dos espaços, da relação dos personagens dentro desse espaço e da noção onipresente da força do tempo que se impõe em cada plano.

Logicamente temos (poucas, mas fundamentais e belíssimas) cenas de ação. São por meio dessas cenas, em lutas e combates físicos que os personagens dão mais vazão a suas identidades, suas pulsões, seus desejos, intenções, medos e força. Mas essas sequências de ação são pontuais, quase sempre interrompidas, o que permite Hou distender as tensões dramáticas, aumentar as sugestões significantes sem nunca criar conclusões fáceis e jamais abandonar o eixo central da construção do filme: a relação tempo-espaço e como essa se manifesta por meio da extensão e do prolongamento máximos da significância das imagens e de todo um contexto que se exprime e se permite ler pela e na construção da beleza dos planos. Durante todo o filme é mantido o clima de tensão, como se a qualquer momento a violência possa romper na tela. Hou Hsiao-Hsien constrói seus dramas muito mais na força dos climas, nas sugestões, nas presenças físicas, nos movimento internos do quadro, nas expectativas criadas e articulações que constrói a partir da relação dos personagens entre si e com os espaços, os objetos e os cenários do que em arroubos dramáticos ou embates físicos. É notável a elaboração dos ambientes, o detalhe e a relevância que cada objeto cênico tem, desde roupas, móveis, utensílios domésticos, armas, jóias, tecidos, bem como a disposição dos cômodos e como os personagens se movem e deslocam por esses espaços, sempre seguidos a uma distância milimetricamente calculada pela câmera de Hou, que em suaves movimentos laterais, reorganiza e rearranja o quadro dentro de um mesmo plano, promovendo novas possibilidades cênicas sem nunca perder o controle absoluto que tem do encadeamento dos dramas, gestos, falas e expressões faciais de seus tipos e a relação deles com tudo que os cerca bem como com as emoções que carregam reprimidas dentro de si mesmos.

Não se constrói um filme tão complexo e cheio de camadas como ‘A Assassina’ por meio de estruturas estéticas se a forma e a plasticidade não forem totalmente adequadas e estiverem o tempo todo ao serviço dos enunciados e do discurso, assim como as modulações dramáticas que o cineasta deseja impor à obra. A beleza existe por uma razão específica, exprimir visualmente o que Hou Hsiao-Hsien quer atingir e sugerir por meio de imagens e planos. São nas lutas entre Nie Yinniang e Tian Ji’na que os dois personagens – que se amaram e foram prometidos um ao outro no passado – se encontram fisicamente mais próximos. É por meio da modulação das luzes e do surgimento de imagens embaçadas – seja por serem filmadas por trás de cortinas que estão presentes inúmeras vezes nos ambientes internos do filme ou pelo gradual aparecimento de brumas nos espaços ao ar livre e ainda por desfocamentos criados a partir da distância dos enquadramentos e a relação com as profundidades de campo – que sentimos o quanto de tensão, de sentimentos reprimidos e de incertezas estão corroendo os personagens, incapazes de verem ou sentirem qualquer coisa com nitidez ou razão.

A Assassina, de Hou Hsiao HsienNie Yinniang é uma personagem condenada à solidão bem como a anular seus sentidos e afetos em função daquilo que lhe foi destinado (algo típico de um personagem clássico de wuxia). Mas a jornada da personagem está incompleta quando a vemos ao longo do filme e Hou irá conduzir as ações, as modulações dramáticas e a narrativa em uma direção incerta na qual possam surgir possibilidades para ela redirecionar sua jornada em uma consolidação de sua individualidade em que irá negar algo que lhe estava previsto e imposto e permitirá que peregrine em uma direção que encaminhe essa consolidação de sua persona não a um desfecho lógico ou algo já pré-determinado, mas num possível processo libertação e empoderamento e até mesmo em um novo recomeço, em que sua solidão permanecerá constante, mas muito mais sintonizada com suas pulsões e desejos do que ela mesma poderia imaginar. Escapar do destino de solidão é impossível, mas Hou cria sugestões para que seu fado tenha novas significações e oportunidades. Esse possível processo dramático com a ressignificação da construção interior da personagem, bem como toda a narrativa e suas modulações que surgem na tela ao longo do filme, é formatado em imagens e é apenas sugerido por meio da força de um discurso sempre colado e formulado na beleza e nas múltiplas probabilidades significantes de cada plano, de cada cena e das expectativas que o diretor constrói e manipula em relação ao porvir.

‘A Assassina’ é um filme em que o discurso, os dramas e a narrativa são compostos somente e a partir das potências da imagem, ou seja, das possibilidades e elementos estruturais exclusivos do cinema. Hou Hsiao-Hsien constrói uma obra rica em significantes e significados, mas deixa tudo fluir e até mesmo existir única e exclusivamente pelo poder das cenas, pela beleza visual, pela construção dos planos, pelo depuramento evolutivo da dramaticidade imposto na montagem, pela presença dos atores, pelos gestos, pelos movimentos, pelas modulações da luz, pelas intensidades das cores, por tudo que é sussurrado ou mesmo não dito. Com seu novo filme, o diretor atinge o ápice da capacidade da linguagem cinematográfica, faz o cinema ser uma arte que se constrói dentro de códigos lhe são exclusivos e só podem ser articulados por mecanismos e técnicas que somente uma linguagem de cinema puro pode garantir.

‘Exilados do Vulcão’, de Paula Gaitán

Por Fernando Oriente

'Exilados do Vulcão'Imersão. Muitas vezes esse processo nos é proposto por uma obra de arte, seja ela qual for. O cinema moderno, pós-moderno e suas demais correntes surgidas desde os anos 50 e 60 nos convida frequentemente a essa imersão em um filme. Trata-se aqui de um processo de entrega, de projeção de nós mesmos num filme, num fluxo de imagens e sons, numa obra estética. Desse processo, quando aceitamos essa imersão, surgem algumas das mais fascinantes experiências cinematográficas que vivenciamos. É exatamente isso que ‘Exilados do Vulcão’, de Paula Gaitán nos propõe, melhor, nos convida. Um longa de pujança estética extrema – estética aqui entendida como um processo dialético entre forma e matéria. O filme de Paula é de uma beleza arrebatadora, uma beleza que surge da liberdade e da independência cênica adotada pela cineasta desde a condução sensorial que faz da evolução dramática, passando pelo rigor (no melhor sentido da palavra) com que constrói cada detalhe das cenas, pela força independente que dá às imagens, pelo brilhante trabalho de fotografia e do desenho de som e pela imensa autonomia interpretativa e simbólica que impõe à dramaturgia. Um filme realizado por uma artista que transcende o cinema, por uma cineasta de ponta que ao mesmo tempo é artista plástica, fotógrafa, poeta e vídeo-artista. Paula usa seu talento em todas essas áreas para construir ‘Exilados do Vulcão’ e o resultado é um dos filmes mais radicais (novamente no melhor sentido da palavra), criativos e cheio de vida e pulsões dos últimos tempos.

O filme propõe um desafio ao espectador, o retira totalmente da posição passiva de conforto e o coloca diante de um fluxo de planos e sequências autônomas, que carregam em si uma infinidade de significantes, constrói uma narrativa fragmentada e cíclica, trabalha constantemente a presença do choque entre corpos e espaços e abre caminho para inúmeras possibilidades interpretativas. Um filme em que a câmera registra personagens que se projetam nos espaços ao mesmo tempo em que os espaços se projetam nesses personagens. Trabalha simbolicamente a relação do ser humano com elementos básicos como a terra, a água, o ar e também as cidades e o campo. Funde os tempos, o que é real, o que é lembrado e aquilo que é imaginado. Tudo isso em imagens e em planos orquestrados por uma montagem precisa e pela força impressionante com que usa o corte e como isso proporciona uma ligação aguda entre a potência de um plano que se encerra com a força e a expectativa gerada pela chegada do plano seguinte. Paula não se preocupa em dar explicações e respostas, ela levanta questões, ela trabalha dentro das incertezas das imagens que nada mais são do que nossas próprias incertezas diante de uma vida e um mundo que não entendemos, nunca seremos capazes de compreender em sua complexidade, tanto naquilo que nos cerca, quanto naquilo que existe dentro de nós, em nossos processos identitários e existenciais.

‘Exilados do Vulcão’ tem como premissa uma mulher (Clara Choveaux) que descobre em meio a um incêndio provocado pelo homem que amava (Vincenzo Amato) fotos e um diário escrito a mão por ele. São pistas, signos isolados deixados por esse homem. E é a partir desse material fragmentado e de suas próprias recordações que ela irá percorrer uma jornada para tentar reconstruir o que ele viveu, com quem se relacionou, os lugares onde esteve. Inicia-se um processo de reconstrução do homem amado a partir de fragmentos, de memórias, de imagens, de textos. Ao tentar identificar quem era seu objeto amado, a mulher empreende uma busca também por si própria e como as arestas da relação entre os dois deixaram dúvidas ao mesmo tempo em que a ausência dele provoca dores, angústia e um vazio dentro da personagem de Clara Choveaux. A jornada dela será conduzida muito mais por aquilo que ela imagina e projeta sobre as pistas deixadas por ele do que por fatos concretos. Rostos em fotografias, passagens escritas a mão, nada traz certezas, não contam nada, apenas abrem possibilidades de leitura de uma mente, de um homem fragmentado, angustiado e vítima de uma doença grave. Paula acerta em cheio ao fundir os tempos da narrativa. Vemos Clara Choveaux presente fisicamente em cenas que ela imagina que aconteceram, a vemos observando o homem desaparecido em momentos que ela recria como se fossem passagens vividas por ele, ela o vê em encontros com outras mulheres, sozinho em meio ao campo, se deslocando por espaços amplos, interagindo com homens e mulheres que não sabemos quem são. É um filme abarrotado de espectros, são presenças fantasmáticas, mas que surgem em carne e osso e que vemos na tela se relacionando das mais diferentes maneiras tanto com Vincenzo Amato quanto com Clara. Ao mesmo tempo, a mulher lembra os momentos em que viveram juntos, eles se amando, se atraindo, se seduzindo, se confortando e se afastando.

Exilados do Vulcão, de Paula GaitánO silêncio dos personagens é constante, eles falam por meio de suas presenças físicas, gestos, ações e, principalmente, por meio de suas expressões faciais. ‘Exilados do Vulcão’ é um filme de estudo do rosto, da geografia desses rostos, sem deixar de ser um longa de observação constante dos espaços e da relção desses espaços com os personagens. Se o rosto é uma paisagem como disse Godard, é nessa paisagem que Paula Gaitán vai buscar as sensações, as essências e os conflitos internos e externos de seus personagens. Mas o filme sabiamente intercala a presença forte desses rostos (que surgem diversas vezes ao longo do filme em belíssimos closes) com planos abertos, paisagens amplas, planos fechados de detalhes de objetos, de ambientes e de parte de corpos – muitas vezes nus. São esses espaços que são constantemente invadidos e ocupados pelos personagens, por seus gestos e suas prostrações, por aquilo que trazem de significante e incerto em suas faces. A fotografia é fundamental para consolidação da potência dos planos. Paula varia entre cenas escuras, luzes direcionadas a pedaços do quadro ou projetadas nos corpos dos personagens, sequências onde cores fortes como o vermelho e o azul preenchem todo o quadro com passagens em que a luz natural se impõe. Mas o que mais chama atenção é a presença do branco. Um branco que constantemente surge na tela e toma conta de todo o espaço, um branco que serve para criar imagens difusas, para provocar desfocamentos, para dar tons de abstração às imagens, para retirar a nitidez daquilo que estamos vendo.

‘Exilados do Vulcão’ é um filme lapidado por Paula Gaitán em seus mínimos detalhes. Desde a minuciosa construção de cada quadro, passando pela beleza compassada e sutil dos movimentos de câmera que sempre buscam a aproximação ou o afastamento em relação aos personagens e espaços até a forma com que posiciona a câmera sempre de maneira precisa, em enquadramentos funcionais que deixam abertas as possibilidades da relação entre o que está na tela com o extra-campo. O som é outro elemento fundamental, desde os ruídos, os sons diegéticos, as músicas e o textos em off (que misturam pensamentos da personagem de Clara Choveaux, textos lidos por ela no diário deixado pelo amante e por poesias e fragmentos de textos literários), tudo na banda sonora potencializa a preciosa mise-en-scéne de Paula.

Exilados do VulcãoO filme traz como fio condutor esse trajeto sensorial de uma mulher em busca de recriar, ou mesmo identificar e reconhecer um homem, ao mesmo tempo em que se vê incapaz de não entrar num processo que a leve a algum tipo de redefinição de si mesma e do mundo a sua volta. Uma jornada entre memórias, lembranças, situações imaginadas; entre o real e a ficção do real, entre o que foi o que pode ou poderia ter sido. Uma viagem em imagens e sons promovida por Paula Gaitán em meio às ruínas do tempo, dos espaços, entre as ruínas da memória e as ruínas da imaginação. Os planos e sequências autônomas de ‘Exilados do Vulcão’ são os fragmentos que conduzem Clara Choveaux e o filme em sua jornada. É um longa sobre o exílio, sobre exilados dentro dessas ruínas que constituem os fragmentos da existência, as incertezas da vida. É uma jornada de uma mulher por esses fragmentos existenciais de sua própria vida e da vida do homem que desapareceu – aquele que foi objeto de idealização, amor, projeção e desejo.

Como escreveu Walter Benjamin em ‘A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica’, “(…) o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por outro lado assegura-nos um grande e insuspeito espaço de liberdade (…) o cinema fez explodir um universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância. (…) O cinema nega a velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum e o dos que dormem é privado”. Bem, é exatamente isso que Paula Gaitán faz em ‘Exilados do Vulcão’, esse filme extraordinário.

‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas

Por Fernando Oriente

'Sinfonia da Necrópole'Em seu primeiro longa solo, Juliana Rojas mantém várias características que marcaram sua carreira como curta-metragista e que também estavam presentes em ‘Trabalhar Cansa’, o belo longa-metragem que ela assina em parceria como Marco Dutra. Mas em ‘Sinfonia da Necrópole’ vemos Juliana caminhar por novos caminhos e introduzir outros elementos em seu cinema. Embora o filme não tenha a força e a qualidade de alguns de seus curtas – principalmente o excelente ‘O Duplo’, de 2012 (um dos melhores curtas dos últimos tempos) e também fique aquém de ‘Trabalhar Cansa’, ‘Sinfonia da Necrópole’ é um bom filme, em que vemos uma autora jovem mostra talento, tentar ampliar os horizontes de seu discurso e introduzir novas concepções formais a sua obra.

Juliana sempre trabalhou dentro do registro dos gêneros cinematográficos, mais notadamente o horror e o terror psicológico. Nesse seu novo filme, o que mais chama atenção é a facilidade como a diretora encena com competência um filme de forte apelo popular, mas que não abre mão do rigor da construção e as texturas analíticas presentes na mise-en-scéne. ‘Sinfonia da Necrópole’ traz elementos carregados de comédia, conta com vários números musicais e ainda mantém o clima de suspense e terror psicológico, matéria que a cineasta domina melhor. Não que Juliana seja perfeita em toda a unidade do longa, existem momentos em que certas situações de humor não funcionam ou alguns números musicais que fazem a força da dramaturgia ser diluída.

A eficácia dessa abordagem popular escolhida por Juliana é sustenta principalmente na construção do protagonista, o aprendiz de coveiro Deodato, um típico personagem do cinema clássico: jovem, simplório, recém-chegado a uma cidade grande vindo do interior, tímido e sensível. Deodato terá, ao longo do filme, a tarefa simbólica de completar sua jornada de iniciação na vida de uma grande metrópole como São Paulo. Ele irá aprender a viver em meio ao caos urbano e sua amplidão desordenada e desumanizadora, a solidão em meio à multidão, sentirá as dificuldades de adaptação ao processo de trabalho e ao ritmo de vida e ainda experimentará o amor, ao se apaixonar por uma colega de trabalho. Um amor (praticamente) não correspondido e constituído dentro dos preceitos clássicos do romantismo, como a admiração crescente e tímida do objeto de desejo e a idealização da mulher amada.

Juliana Rojas transforma o cemitério em que Deodato trabalha e onde se passam quase todas as cenas do filme em um reflexo estetizado de São Paulo. É a metrópole que se reflete na necrópole. Esse recurso permite que várias questões urbanas urgentes sejam inseridas simbolicamente por Juliana em meio aos dramas de Deodato, como e especulação imobiliária criminosa que tomou conta de todo o país nas últimas décadas.

A cidade representada, esse simulacro da metrópole que é o cemitério, enfrenta problemas como a desocupação forçada de imóveis (túmulos), a remoção compulsória de pessoas (cadáveres) e a reorganização espacial urbana presente na verticalização dos espaços com a construção de novos túmulos dentro de pequenos prédios que substituirão os antigos jazigos.

Toda essa alegoria é tratada com muita naturalidade e leveza dentro da encenação de Juliana. A mise-en-scéne é pensada em função dos movimentos evolutivos dos tecidos dramáticos (e cômicos) do filme. Situações de humor ingênuo (muitas vezes perspicazes) são intercaladas por diversos números musicais de estilo clássico (em que os personagens dizem suas falas cantando e dançando). Breves momentos fantásticos em clima de cinema de horror, momentos românticos de sedução e devaneios de amor platônico também fazem parte do leque de gêneros que Julian costura com competência e ainda encontra espaços para tecer comentários sobre a finitude da vida e o conflito eterno entre a atração e o medo presentes na ideia da morte.

Sinfonia da Necrópole‘Sinfonia da Necrópole’ é um filme de encenação mais leve a ágil, algo que a proposta desse longa de Juliana exige. Não vemos a rigidez detalhista de encenação e decupagem presentes no trabalho anterior da diretora, ‘O Duplo’, mas Juliana Rojas é uma encenadora de mão cheia e, em meio à leveza melancólica de seu novo filme, mostra sempre ótima composição de quadro, belos enquadramentos e elegantes movimentos de câmera. No caso de ‘Sinfonia da Necrópole’, muito devido à oscilação entre os momentos fortes – as boas sequências, o uso preciso do sarcasmo, os simbolismos, as situações em que forma e discurso se potencializam – e os momentos em que o filme cai num certo descompasso em que o vigor narrativo perde força e se enfraquece, temos um filme que vale muito ser visto e apreciado, mas devido a essa irregularidade não chega a se completar num todo deixa uma sensação de que poderia ir mais longe, ousar mais e ceder menos a fusão de gêneros e evitar certas concessões de apelo simplista, bem como deixa a impressão que certos conflitos propostos na diegese poderiam ser intensificados.

Mas seu novo trabalho é apenas a mais recente confirmação do talento de Juliana Rojas. A facilidade como ela circula por gêneros diversos (e o apelo universal que esses gêneros carregam dentro de seus códigos internos), tanto em curta quanto em longa duração, fazem da diretora um nome certo para se esperar com ansiedade por seus novos projetos. Em meio a um momento de impasse da maioria do cinema contemporâneo praticado no país, Juliana é uma que não tem medo de arriscar, uma cineasta que busca soluções criativas, complexas. Em um exercício empreendido como ‘Sinfonia da Necrópole’, com seu sincero e natural apelo popular, Juliana chama atenção pelo respeito ao espectador trabalho dentro desse apelo mais comercial, mas sem nunca cair em formatos engessados ou vulgaridades.

‘O Signo das Tetas’, de Frederico Machado e o cinema atual no Maranhão

Por Fernando Oriente

Com a estreia em diversas cidades do país no dia 14 abril do segundo longa de Frederico Machado, ‘O Signo das Tetas’, o sucesso do curta ‘Macapá’, de Marcos Ponts em diversos festivais do país e do exterior e um grupo cada vez maior de jovens se lançando na produção de curtas e longas, documentários e ficções, o cinema feito atualmente no Maranhão é um dos mais promissores do Brasil. Com duas escolas de cinema: a Escola Lume, do próprio Frederico Machado e a recente Escola de Cinema do Maranhão, inaugurada no centro histórico de São Luís, o momento cinematográfico maranhense é de ebulição, experimentação, estudos, expectativa e afirmação.

O Signo das Tetas

O Signo das Tetas

‘O Signo das Tetas’ confirma o talento de Frederico Machado como cineasta. No longa temos novamente o intenso trabalho do diretor em relação à construção do tempo como espaço de ampliação e desconstrução da memória, fragmentação do passado e dilatação existencial de um tempo presente sempre indefinido, marcado por cicatrizes, incertezas e pelo peso da inação e do rancor. Machado trabalha muito bem a densidade dos quadros, a força isolada de cada plano, contamina seu filme com o desconforto e as incertezas do não-pertencimento e do não-lugar de seu protagonista. Fala de um Brasil feito de deslocamentos, de partidas e tentativas de retorno. Vemos seu personagem central vagando pelo interior do Maranhão, entre estradas de terra, rodovias, rios, cidadezinhas, hotéis baratos e puteiros de beira de estrada. Machado trabalha sempre com uma construção narrativa composta de estilhaços, de uma não linearidade em que tempos se sobrepõem, memórias se projetam sobre o que é vivido nesse presente incerto movido pelos desejos e remorsos desse andarilho desterrado que conduz o filme. Saudades da mãe, dos seios da mãe que lhe davam o alimento e o abrigo, saudades de amores que foram abandonados, de uma religiosidade que se perdeu entre o sagrado e o profano, a fé e o erotismo. Uma violência latente acompanha o personagem, que mediante sua incapacidade de retornar ao abrigo da mãe e da sua casa de infância, suas impossibilidades de se auto-determinar e sua sensação de fracasso o movem em jornadas cíclicas, em que mesmo em eterno movimento, não para de andar em círculo, retornando física e mentalmente sempre aos mesmos lugares, sempre aos mesmos não-lugares.

Frederico Machado faz um cinema muito pessoal, desde seus curtas e em seu primeiro longa, ‘O Exercício do Caos’ (2013), está sempre mostrando uma inquietude, uma busca que aprimorada a cada filme por uma solidificação de seus processos formais, estéticos e discursivos. Machado não tem medo de tentar e, entre acertos e erros, vai melhorando a cada filme, se tornando mais sólido como diretor, definindo seu estilo e construindo obras mais sólidas. ‘O Signo das Tetas’ é marcado por passagens belíssimas, simbologias, sequências de muita força e suas poucas limitações fazem do filme uma jornada imperfeita, mas extremamente sincera em busca daquilo que o diretor quer dizer e construir como cinema. Um filme de sensações, altamente existencialista em seu discurso e calcado na força da construção dos espaços, do tempo e da relação do homem com a imensidão tanto do mundo a sua volta quanto de seu universo interior.

Macapá

Macapá

‘Macapá’, curta de Marcos Ponts é um forte plano único, um exercício de cinema que desmascara o processo e a relação entre o realizador, sua atriz e as emoções que ele busca atingir por meio da construção e manipulação dos sentimentos. Ponts destrói a quarta parede e faz um filme estudo em que ele mesmo, fora de campo, tenta fazer com que uma atriz inexperiente entre em contato com suas emoções, com seus traumas, para que assim o diretor possa filmá-la no estado de perturbação emocional ideal para a cena que pretende gravar. Antes de tudo o filme é um gesto de coragem, em que Ponts se expõe como realizador manipulador, em que escancara os processos utilizados para se atingir os objetivos cênicos de uma sequência que será usada em seu longa de ficção ainda não finalizado. Ao fazer isso, ‘Macapá’ já se torna um curta forte por si só, como um filme isolado, mas ao relacionarmos o processo, naquilo que Ponts se expõe, podemos fazer um paralelo entre o curta e as muitas formas que o cinema usa para falsificar as imagens e as emoções que vemos na diegese de tantos filmes. A sinceridade e a coragem como o diretor se coloca no filme, como expõe sua relação de controle emocional sobre a atriz é um gesto corajoso, mas feito com muita dignidade por Ponts, que ao expor a si mesmo – fora de campo – e a atriz sozinha no interior do quadro – num misto de perplexidade, insegurança e perturbação – ele se coloca como um elo do processo de criação tão frágil e inseguro quanto à atriz em cena. O posicionamento da câmera e a iluminação desse plano único que compõe ‘Macapá’ potencializam muito o discurso do filme. Um filme raro, original e corajoso.

Fora esses filmes já mencionados, muitos curtas captados em digital estão sendo finalizados ou já começam a ter suas primeiras exibições no Maranhão. Entre eles um belo trabalho documental em curta-metragem do jovem Domingos de Jesus Pereira, ‘A Vida Louca de Eparina’s Crazy’, um filme que retrata um morador de rua homossexual da periferia de São Luís em seu cotidiano, com depoimentos e imagens muito bem escolhidos e um tratamento horizontal e dignificante que Domingos faz de seu personagem. O filme foi feito dentro de um processo coletivo entre Domingos e seus colaboradores e teve exibição na última edição do festival Maranhão na Tela, que aconteceu em março desse ano. Esse é apenas um dos diversos trabalhos que estão em andamento no cinema maranhense, jovens realizadores como Denis Carlos, autor do documentário longa-metragem ‘Quem Toma Conta Dá Conta’, estão mantendo a cena maranhense bem aquecida.

É fundamental lembramos que o Maranhão sempre esteve à margem da produção nacional, com pouquíssimos ou nenhum incentivo ou financiamento. Mas é do Maranhão um dos mais interessantes e talentosos documentaristas do cinema brasileiro pós anos 60, Murilo Santos, que realizou dezenas de documentários, sua grande maioria em curta-metragem, filmando em 16mm e super 16mm. A obra de Santos é pouco conhecida, mas está sendo resgatada no Maranhão e já pode ser encontrada em alguns canais da Internet. Santos sempre se interessou pela cultura, pela história e pelas tradições do Maranhão, um dos Estados mais ricos do país quando o tema é música, religião, manifestações populares, arte e história.

‘Para Minha Amada Morta’, de Aly Muritiba

Por Fernando Oriente

'Para Minha Amada Morta'Tudo nesse primeiro longa de ficção de Aly Muritiba gira em torno da obsessão. Um filme narrativo, que trabalha a evolução dos acontecimentos com competência e dentro do que a evolução dessa narrativa proporciona em questões de tensão, incertezas e suspense para o espectador. Nunca sabemos quais serão as ações que veremos, Muritiba sempre estende o desconforto por criar constantemente possibilidades dramáticas prontas para se eclodirem na tela, mas que na maioria das vezes são adiadas, fazendo o enredo continuar cada vez mais carregado pelas não-ações. A história toma rumos inesperados, em que a promessa de explosões de violência é sempre adiada, mas intensificadas a cada instante no decorrer do filme. Um filme que trabalha dentro de códigos do cinema de gênero, calcado numa encenação prodigiosa. A composição dos planos é sempre funcional e poderosa, a evolução lenta da angústia é trabalhada detalhadamente por meio da construção dos planos longos, dos ótimos enquadramentos, da decupagem e da montagem final. Um filme de espera, que se adensa no aspecto psicológico das tensões e mantém um constante clima dedesconforto e expectativa.

O filme é construído todo a partir do protagonista Fernando e são suas obsessões, sensações e ações que irão conduzir tanto a narrativa quanto as modulações dramáticas. No início do filme o vemos em melancólica situação de luto pela recente morte de sua mulher, cuidando de seu filho único e trabalhando como fotógrafo da polícia. Fernando é obcecado pela mulher morta, faz rituais em sua homenagem e que tentam reaproxima-lo dela mesmo após a morte. Dorme ao lado de suas roupas, as pendura cuidadosamente em cabides quando levanta da cama, coloca seus sapatos em diferentes cômodos da casa como se para materializar sua presença por meio de objetos, preencher o vazio por meio desses pequenos e repetitivos gestos. Ele passa a ferro os vestidos da mulher, guarda cuidadosamente suas roupas no armário, mantém inúmeras fotos dela pela casa. Ela é uma ausência que se torna, por meio da obsessão de Fernando numa presença quase material dentro do filme. Certo dia ele encontra uma caixa com fitas VHS no escritório da mulher morta. Passa a ver os vídeos sem parar. Assisti-a dançando numa apresentação de escola quando era criança e em diversas outras situações e momentos de sua vida que foram registrados em vídeos caseiros. No meio das fitas, Fernando encontra um vídeo em que sua falecida mulher aparece fazendo sexo com um amante, passeando com ele, mostrando os dois na rua e nos lugares em que visitam. O melancólico homem em luto entra em surto, desespera-se, mas Muritiba consegue construir essa passagem dramática com muita competência, evitando arroubos sentimentalistas e explosões de dramaticidade cênicas. O personagem de Fernando é, e continua a ser durante todo o longa, fechado, preso dentro de um turbilhão de sentimentos intensos que interioriza de maneira quase patológica, esconde ao máximo suas emoções e seus sentimentos.

As imagens em VHS, com sua captação ruim e texturas típicas do vídeo são usadas para dar materialidade à memória e ao passado dentro do filme. Após o golpe da descoberta da traição Fernando será movido por outra obsessão: achar o amante de sua mulher e vingar-se dele. Outro grande ponto alto em ‘Minha Amada Morta’ surge do fato de não só ele encontrar o amante, mas se aproximar dele ao ponto de alugar a casa dos fundos onde o homem mora com sua mulher e duas filhas e passar a conviver com eles. Muritiba cria uma relação de extrema tensão entre os dois personagens, Fernando e Salvador (o amante da mulher morta), bem como dele com todos os membros a família. Cada nova situação, cada cena que se segue vemos Fernando agindo friamente em seu plano de vingança, que em momento algum sabemos qual será e como se realizará. Surgem vários momentos em que a tensão criada na cena sugere que o marido traído pode matar Salvador, tudo em cena vira uma arma em potencial, cada vez que vemos os dois sozinhos nos parece um momento perfeito para a consumação violenta da vingança, mas ela nunca chega e Fernando segue obsessivamente em suas ações. Aproxima-se da filha adolescente de Salvador, tenta seduzi-la e tornar-se seu confidente, passa a frequentar a igreja evangélica da família e vai ao ponto de mostrar à esposa de Salvador o vídeo em que ele a mulher de Fernando fazem sexo, além de também tentar seduzi-la. Tudo isso funciona como elementos potencializadores das tensões e como picos dramáticos e impulsionam na construção de um suspense psicológico muito bem conduzido e orquestrado pela encenação de Muritiba.

A relação de Fernando e Salvador é sempre movida pela ameaça, pelo desconforto e pela maneira agressiva e misteriosa com que Fernando se posiciona e interage com Salvador. A relação do protagonista com a esposa e a filha adolescente do amante de sua mulher é de notável carga erótica. Aly Muritiba carrega na força e na significação dos gestos, dos olhares, dos diálogos (muitas vezes interrompidos bruscamente por Fernando), no tom de voz com que os personagens falam. A composição dos quadros, o uso dos primeiros planos e das relações que se estabelecem com os planos de fundo (sempre seguindo funcionalmente para compor em imagens as sensações do protagonista), a construção dos espaços, tudo ajuda a fazer de ‘Minha Amada Morta’ um belo filme de climas, onde a tensão e as incertezas contaminam cada sequência e criam fortes expectativas ao que está por vir.

Para Minha Amada Morta‘Minha Amada Morta’, construído em cima da meticulosidade com que Fernando conduz suas obsessões caminha como um filme próximo ao cinema de crueldade, aquele que não busca nenhuma forma de conciliação. Embora Muritiba não faça de seu filme um claro exercício do cinema da crueldade – preenchendo a narrativa com arestas que indicam outras possibilidades além de uma vingança clássica -, o desfecho, com a presença de um leve e distante processo reconciliatório pode desagradar aqueles que esperavam a materialização do conflito, a consumação da violência que esta embutida em todo o longa. Essa sutil conciliação sugerida no desfecho não necessariamente significa que para Fernando ele não tenha completado seu processo de vingança (não existe a certeza, mas o gesto final de Fernando em relação a Salvador pode muito bem ser visto como a conclusão ou interrupção de seu projeto de retaliação e uma forma de suspender sua obsessiva busca por reparação). Nunca nenhumas de suas intenções ficam claras, o personagem é sempre composto de texturas existenciais que fogem do lugar comum e jamais somos capazes de saber aquilo que ele realmente deseja. Esse desfecho, com a não eclosão do conflito direto está longe de ser um problema, tem sua intensidade dramática e significativa de acordo com as expectativas e processos de recepção de cada espectador.

O que é claro no filme – e também um de seus pontos altos – é como Fernando tenta reconstituir sua vida antes da morte da mulher, num desejo obsessivo primeiro em mantê-la presente com seus rituais com as roupas, sapatos e fotos da morta, depois quando o processo da obsessão se torna a aproximação e a provável vingança do amante. Todas as suas ações, seus estados emocionais são dedicados a por em prática atos, processos meticulosamente realizados dentro de uma lógica quase paranoica para trazer de volta não só sua mulher morta, mas como construir uma realidade diferente, criar novos motivos para viver e ter em o que acreditar. São por meios de suas obsessões que ele procura preencher um vazio e uma angústia intransponíveis. Aly Muritiba realiza um filme direto, composto com sofisticação e densidade dramáticas, estruturais e narrativas, trabalha dentro dos elementos do thriller psicológico, do filme de vingança, ou seja, dentro do cinema de gênero, mas faz isso com honestidade e coerência e realiza um filme raro no Brasil, por estar inserido dentro desses elementos e trabalhá-los de maneira criativa, priorizando aquilo que deseja tanto na forma quanto no discurso. Evita choques e surpresas fáceis para manipular o espectador e dá a quem assisti ao longa todas as liberdades de como absorver, interpretar e assimilar seu material dramático e narrativo. Um filme poderoso, em que suas qualidades superam eventuais fraquezas.

‘Cemitério do Esplendor’, de Apichatpong Weerasethakul

Por Fernando Oriente

'Cemitério do Esplendor'Após mais de uma década depurando, relendo, procurando novos e sutis meios de afirmar seus mecanismos estéticos, formais e discursivos já solidificados, e ao mesmo tempo sempre se mantendo fiel aos seus temas, às estruturas de mise-en-scéne e opções formais, Apichatpong Weerasethakul (esse diretor tailandês de talento imenso, grandes filmes no currículo e um dos mais criativos e originais cineastas do cinema contemporâneo) chega ao seu novo longa-metragem, ‘Cemitério do Esplendor’, com o mesmo frescor, provocando nos espectadores constantes estados de maravilhamento diante do que vê e o que não vê na tela, elevando a aparente simplicidade de sua encenação naturalista a camadas de significação complexas e abertas aos mistérios da existência, ao constante paralelismo entre o naturalismo das cenas e todo um lado espiritual, fantasmático e a uma atmosfera mágica que se instaura de maneira onipresente em todo seu filme, que contamina cada fotograma e se projeta dentro e para além da matéria fílmica. Cineasta dos detalhes (e do que se esconde por trás desses detalhes), dos tempos longos, das texturas por trás da aparente banalidade do cotidiano, Apichatpong busca a beleza do existir, do descobrir o mundo e se auto-descobrir dentro das potências da existência, o encantamento e a naturalidade com que a vida pode ser vivida de maneira muito mais plena quando a beleza está além daquilo que a razão e a simples observação escondem.

Embora todos os seus filmes, principalmente desde ‘Eternamente Sua’ (2002) sejam excelentes, ‘Cemitério do Esplendor’ é talvez seu melhor filme desde ‘Mal dos Trópicos’ (2004). O novo longa tem como foco narrativo central um grupo de soldados que sofre de uma misteriosa doença que os mantêm constantemente dormindo, em um sono profundo e sereno em que nada é capaz de acordá-los. Mantidos em um dormitório que serve de enfermaria, localizado em um novo hospital que passou a existir onde antes era uma escola, eles são acompanhados por enfermeiras, familiares e voluntárias. Dentre essas voluntárias está Jen, uma mulher madura, que sofre de uma deficiência física – tem uma perna disforme, dez centímetros mais curta que a outra e anda lentamente com a ajuda de muletas. Jen é uma ex-aluna da escola onde hoje funciona o pequeno hospital. Na enfermaria ela se dedica a cuidar de Itt, um jovem soldado adormecido que não recebe visitas. Lá ela conhece Keng, uma garota com poderes mediúnicos capaz de se comunicar com os soldados adormecidos.

A vida de Jen é de uma entediante simplicidade, em que ela dedica-se ao seu trabalho como voluntária, vive com um segundo marido (um militar americano aposentado) e faz trabalhos de crochê, meias coloridas para bebês que tenta vender para ajudar na renda. Tanto ela quanto os demais personagens que vemos na tela (médicos, enfermeiras, pacientes do hospital, o marido americano de Jen) parecem viver em eterno estado de torpor, em que seguem suas rotinas de maneira mecânica, distantes um dos outros e distantes de suas próprias emoções. Toda a construção da parte inicial do filme é composta por Apichatpong registrando detalhadamente e de forma distante os pequenos gestos, as conversas breves, os deslocamentos e as ações dos personagens. Quando Jen torna-se mais próxima de Keng e essa passa a lhe contar o que escuta dos soldados adormecidos, quando conta que os vê em suas outras vidas, em seus sonhos, dentro de múltiplas realidades paralelas é que se inicia a jornada de iniciação de Jen em direção a uma maior compreensão do mundo e de si mesma.  Isso coincide com o fato dos soldados começarem a despertar e passarem algumas horas acordados antes de caírem novamente em sono profundo. Nesse meio tempo, enquanto Itt está acordado Apichatpong começa a construir uma complexa relação que irá se estabelecer entre ele e Jen.

Os dois almoçam juntos, contam fragmentos de suas vidas um para o outro, brincam sobre suas origens. Começam um processo de abertura, de desnudamento de suas emoções. Surgem afinidades, admiração, atração, sentido de proteção e uma confiança mútua entre eles. O tímido soldado e a resignada voluntária deficiente passam a entrar em contato com suas frustrações, desejos, esperanças e arrependimentos ao se abrirem um a ao outro, ao mesmo tempo em que encontram o prazer em compartilhar suas existências. Apichatpong instaura lentamente um processo de identificação e espelhamento entre eles que irá fazer com que se abram não só em relação ao outro, mas para si mesmos, passem a olhar para dentro, a aflorar seus sentimentos e perceber (mesmo que de maneira incompleta) seus desejos e complexidades. A sequência em que Jen e Itt vão jantar em um movimentado mercado da cidade, cheio de luzes artificiais, pessoas que passam de um lado para o outro, um burburinho constante da vida noturna que toma conta da cena enquanto os dois conversam e vão se abrindo cada vez mais um ao outro é uma das mais belas cenas do filme. O registro direto que Apichatpong faz dos ambientes, das pessoas, do movimento interno dos planos tudo é carregado de uma beleza singela que traduz uma alegria e um afeto partilhado pelos dois personagens que aproveitam a simplicidade do momento, a fugaz alegria que compartilham em meio a toda uma agitação de pessoas e sons. Eles são uma pequena parte de um mundo que pulsa, mas dentro desse meio são suas individualidades, emoções e seu crescente envolvimento afetuoso que tomam conta das sequências.

Ao mergulhar dentro de si mesma, Jen passa a perceber não só a complexidade de sua existência, mas começa a sentir as relações espirituais e as manifestações mágicas e o encantamento do mundo. O convívio tanto com Itt quando este está acordado quanto com a jovem médium Keng vão abrindo seus sentidos e suas percepções. Após visitar o templo de duas deusas e oferecer oferendas em meio a suas orações, Jen recebe no dia seguinte, enquanto come sentada sozinha no banco de um parque, a visita das duas deusas, que se materializam fisicamente em duas belas jovens vestidas em roupas simples e começam a conversar com ela. Após um breve instante de estranhamento, Jen passa a conversar naturalmente com as duas jovens, com duas entidades espirituais mortas que se apresentam em carne e osso em sua presença. O diálogo que se segue é revelador, as deusas contam que os soldados nunca irão se curar da doença do sono, já que todo o espaço onde ficam o parque e a escola transformada em hospital era um antigo palácio e exatamente embaixo da enfermaria onde dormem os soldados se encontrava o cemitério dos reis guerreiros, que usam a energia dos soldados, ao manterem-nos adormecidos, para continuarem lutando suas batalhas.

Cemitério do EsplendorSão dois tempos, múltiplas dimensões que convivem ao mesmo tempo. A realidade do tempo presente em que vive Jen e os soldados adormecidos e o tempo dos reis, das batalhas. No cinema de Apichatpong os tempos se fundem no mesmo instante e ele coloca tudo isso na superfície do filme, por meio da encenação direta e naturalista do mundo como o enxergamos, mas que por meio de sugestões, da construção de atmosferas que transcendem a simplicidade do registro das imagens e pelos climas sensoriais que o diretor cria sem abdicar da mise-en-scéne naturalista, além do que nos que é revelado nos diálogos, naquilo que é narrado pelos personagens, mas que não vemos.

Apichatpong instaura o mágico, o metafísico dentro das imagens secas da realidade que filma. Sugere tudo por meio de falas, pelas reações, gestos e expressões dos personagens, pelos tempos longos e reflexivos das sequências e da evolução narrativa, pelo apuro e destaque dado aos ruídos e sons diegéticos dentro da banda sonora, pela variação da luz natural, seja a luminosidade clara, branca e chapada que toma conta da tela nas cenas diurnas, seja pela luz difusa dos crepúsculos, seja pelo uso da incidência calculada das luzes artificiais e das penumbras nas sequências noturnas. O filme (bem como a maioria dos trabalhos do diretor) é construído em longos planos estáticos, com ângulos abertos (ele evita ao máximo os closes) que permitem que se vejam no quadro os personagens inseridos dentro do espaço, sofrendo a influência de outras ações e personagens que entram e saem de cena, ou se mantém nas bordas do quadro. A própria presença dos elementos imóveis, objetos, plantas, lagos, terra, grama, prédios e casas contextualizam de maneira mais vasta a presença reduzida dos personagens em meio à amplitude do mundo, aos limites dos espaços que extrapolam o campo e se projetam no fora de quadro.

As passagens, as fusões entre os campos do mundo material e físico e o universo do espiritual e fantasmático – habitado pelos mortos, entidades espirituais e pelos espaços que já não existem mais fisicamente – são feitas por Apichatpong dentro dos mesmos planos, das mesmas sequências. Tudo sem nenhum truque ou pirotecnia visual. Esses mundos convivem dentro das mesmas imagens naturalistas do diretor e se materializam para o espectador no interior da encenação naturalista e direta, sejam por meio do que é dito ou sugerido, pelos gestos, olhares ou a simples aparição física de personagens vindos de outros tempos, de outras dimensões e que contracenam com os protagonistas do filme diretamente. Os dois mundos convivem constantemente no filme e essa convivência é tratada com extrema simplicidade e naturalidade. Logicamente que a encenação, a construção de planos e cenas de Apichatpong são carregas por uma atmosfera sensorial, por pequenas e emblemáticas imagens e situações que indicam a constante presença da coexistência simultânea entre esses dois mundos, que indicam a existência de algo muito além do que as simples imagens revelam.

Em ‘Cemitério do Esplendor’, o momento mais forte, de uma beleza extraordinária, que indica os mecanismos como a presença do metafísico é inserida em meio aos ambientes filmados, são os planos estáticos em que vemos os soldados adormecidos na enfermaria e as luzes de neon que estão colocadas ao lado de cada leito vão trocando lentamente de cor (vão do vermelho ao verde, desse para o azul, depois para o amarelo e assim por diante). Esse registro direto, simples, belíssimo e poético das potências da luz, do movimento dessas luzes (que assumem materialidade física) ao iluminar artificialmente os espaços escuros e inundarem os ambientes com sua presença sensorial contamina as cenas de uma beleza que transcende o naturalismo e remete a significados mais complexos, ao mistério que se esconde por trás da aparente normalidade, que estão ligados a um processo de difusão e de percepções primárias e que são estendidos. Essa variação das luzes artificiais e suas cores fortes passa a tomar conta das ruas e em alguns poucos planos externos inseridos pelo diretor, que registram cenas corriqueiras da noite na cidade, vemos a mesma variação de luzes e cores tomarem conta do quadro, de espaços isolados dentro de uma cidade que segue sua rotina sem se dar conta dos elementos fantasmáticos que se inserem na aparente normalidade espaço-temporal. Apichatpong projeta de maneira direta, por meio do recurso das luzes, os elementos mágicos para fora do ambiente dos soldados adormecidos e mostra que essa convivência entre o físico e o espiritual se projeta para todos os lados. É o encantamento tomando conta do plano, penetrando as camadas sensitivas de representação.

Mas a sequência mais sintomática dos procedimentos de encenação de Apichatpong para fundir a realidade e o espiritual dentro das próprias cenas de registro naturalista acontece quando Jen e Itt estão tomando um lanche e conversando no parque vizinho ao hospital. Subitamente o jovem soldado cai no sono, Jen sai para caminhar e encontra Keng. As duas voltam onde Itt está adormecido e a jovem médium passa a ouvir do soldado adormecido o que ele está vendo: o antigo palácio, seus aposentos, seu luxo. Keng pergunta se Itt pode mostrar a ela todo o esplendor do que está vendo, do que não é visível ao olhar de quem apenas vê um parque meio abandonado à beira de um lago. Keng incorpora Itt, que toma conta de seu corpo e parte para uma caminhada com Jen. Vemos as duas andando e Itt, dentro do corpo de Keng, vai narrando detalhadamente cada aposento do palácio, os detalhes da decoração, a altura dos tetos das salas e quartos, as passagens e portas que ligam corredores aos diferentes ambientes luxuosos e seus ornamentos, espelhos, pias de pedra preciosa, um trono de ouro, uma cama esculpida na madeira. Apichatpong não nos mostra nada disso, tudo o que Jen e o espectador vêem nas imagens é o parque, seus caminhos de terra, seus bancos de pedra, suas árvores e esculturas pobres. Keng narra em detalhes o que vê do castelo ao mesmo tempo em que Jen comenta sobre o que vê do parque. Enquanto a jovem narra o luxo e a beleza de um espaço pertencente a outro tempo, preso em outra dimensão, Jen comenta sobre a vegetação, sobre as orquídeas que plantou há anos em uma árvores, sobre como uma escultura a faz lembrar de sua infância nos tempos da guerra entre a Tailândia e o Laos. O espectador e Jen vêem apenas o parque, filmado de maneira direta por Apichatpong, mas pela construção de cena, pelos relatos de Itt dentro do corpo de Keng, tanto nós quanto Jen projetamos e sentimos aquele outro tempo, aquela outra construção, outra dimensão, aquele outro olhar, sentimos a presença e os significados do palácio, os tempos distintos convivendo dentro das mesmas imagens, dividindo os planos. “O mágico é a própria coisa, é o que está na materialidade da cena. O mistério aqui é claríssimo, o morto eternamente presente e o mítico diafanamente transparente”, essa frase de Luiz Soares Junior, um dos críticos e pesquisadores responsável por algumas das melhores leituras da obra de Apichatpong resume de maneira precisa as potências da cena.

Cemitério do Esplendor, de ApichatpongNo desfecho da cena, logo após Keng pedir para Jen abrir bem os olhos e ver além daquilo que sua visão limitada a permite constatar, Jen passa a projetar e introjetar os diversos tempos, a sentir a materialidade da dimensão mágica que se esconde por trás das aparências. Ao mesmo tempo, Jen começa a se perceber de maneira mais complexa, abre mão de seus mecanismos de defesa e passa entender as complexidades e incertezas que constituem sua própria individualidade, seu ser, sua existência. Uma interação intensa e física entre Itt no corpo de Keng e Jen, quando essa levanta a saia e mostra sua perna deformada (num processo de desnudamento diante do outro) e começa chorar, irá fechar toda a sequência. Assim se fecha o processo de iniciação, de auto-descobrimento e de percepção das complexidades e mistérios, da magia que está presente constantemente em meio ao banal da vida real e dentro de cada um.

Jen sentada imóvel em um banco, vendo crianças jogarem futebol, de olhos arregalados e uma expressão que mistura perplexidade e arrebatamento fecha o filme. Um olhar, uma expressão que resumem todo o discurso de Apichatpong e se projeta no espectador. Nada é apenas o que vemos. O cinema único, encantado, direto e composto de camadas significantes que vão muito além das imagens de Apichatpong atinge mais uma vez o sublime.

‘É o Amor’, de Paul Vecchiali

Por Fernando Oriente

'É o Amor'A instabilidade do presente, a fugacidade, a tensão implícita e reprimida (mas sempre prestes a se manifestar em diferentes formas) e a impossibilidade de se viver na plenitude do que se deseja; uma realidade tensa que faz com que todos existam em meio a expectativas confusas, mentiras, idealizações, desconfianças, incertezas e presos na nostalgia amarga de suas recordações, na tristeza resignada pelo que foi vivido e acabou, ficou distante no tempo e só se fixa na memória, muitas vezes idealizada e carregada de ressentimentos. Um tempo presente em que é impossível se auto-determinar plenamente pela sua fugacidade, instabilidade e pela própria violência que implica a tentativa de consumação dos desejos e a preservação dos sentimentos em meio à desordem e as instabilidades emocionais. Relações construídas ou em construção em confronto com a dissimulação e a desilusão estão na base do relacionar-se e lidar com o outro. Tudo isso está no centro de novo filme de Paul Vecchiali, que como o próprio diretor apresenta literalmente no início do filme, esse centro e todos os desdobramentos do longa são sobre o mais forte e idealizado de todos os sentimentos: o amor.

Vecchiali constrói um filme que mistura o anti-naturalismo das representações e da encenação, usa tanto da farsa, da tragicomédia e da fabulação para discutir de maneira frontal, mesmo que multifacetada, o amor e todas as suas complicações, formas de representação, estados de manifestação e como esse sentimento constitui o indivíduo em sua essência, cada tipo trabalhado em suas individualidades, em suas subjetividades. Mas ao compor esse mosaico, Vecchiali fala do universalismo do amor e seus muitos desdobramentos. Vecchiali constrói um filme amargo, direto, ao mesmo tempo em que usa da ironia para ampliar os estados de espírito de seus personagens e as modulações dos dramas e ainda injetar leveza e beleza às cenas. Compõe um universo cheio de cores, muita luz e um espaço onde o que mais vemos são os desencontros entre os tipos, tanto em relação ao outro, ao que sentem bem como em relação a si mesmos e a suas expectativas.

Paul Vecchiali trabalha todas essas questões com uma leveza irônica de encenação (que em nenhum momento evita se aprofundar nas estruturas formais das composições de personagens ao mesmo tempo em que essa encenação extrai densidade das situações dramáticas, dos tipos e da própria narrativa), uma evolução dramática direta (mesmo que tortuosa) e cheia de frescor e uma criatividade pulsante, tudo aliado ao sarcasmo muitas vezes ligado diretamente ao piegas da construção visual e do artificialismo dos cenários, da estranheza aparente dos tipos e das situações narrativas que flertam com o fabulesco e com a farsa. Um filme de ternura e secura, em que a melancolia é tratada de forma tanto poética quanto amargamente patética. Um longa construído em elipses, cenas que isoladamente já trazem uma infinidade de possibilidades dramáticas e de interpretação. Cada personagem, desde os centrais até aqueles que entram e saem da narrativa, tem papel fundamental nos tecidos do discurso de Vecchiali. Cada um acrescenta uma história, representa um lado, às vezes mais de um, da complexidade de como amor se manifesta, se constrói, surge como força avassaladora, em que esperança, desilusão, alegria e dor se misturam.

É o AmorÉ como se para falar do amor, Vecchiali precise de vários personagens e personas, de muitas individualidades, de suas história e vivências, que se projetam na experiência do outro, se completam, se assemelham e se distanciam Um tecido dramático complexo, mas direto; o diretor não esconde nada, coloca todas as experiências vividas (ou desejadas) na superfície material do filme, as põem em cada uma da falas, dos relatos, recordações, gestos e expressões de todos os seus personagens. Muitas vezes o amor é comparado à guerra, ao conflito e a morte; é trabalhado sempre dentro de suas tensões máximas, nunca é apresentado de maneira idílica e sim como um campo de batalha, um terreno de conflitos e incertezas. A fragilidade humana perante a vida é permeada e conduzida por esse sentimento sem explicação, bruto, mas onipresente que é o amor.

Os personagens se apresentam de maneira frontal, direto para a câmera, seus rostos e expressões são destacados pela composição de cena de Vecchiali, encaram a câmera, falam para ela, são filmados em close. ‘É o Amor’ dá grande destaque a presença física dos tipos, seus rostos, seus corpos, seu estar no mundo. Dentro do anti-naturalismo, das situações farsescas, da ironia ou da melancolia com que Vecchiali registra os dramas ele potencializa seu discurso, deixa explícitos seus conceitos e escancara os dramas por meio anti-convencionais, mas que surgem na tela na plenitude se seus significados e possibilidades interpretativas. Filme direto, sem ilações ou discursos metafóricos. O que é e foi vivido, bem como o que é desejado ou idealizado é o que importa para o diretor para compor esse processo de escrutinação do amor, dos sentimentos e das relações humanas.

A presença física dos personagens é tão importante quanto suas falas, quanto o que dizem sobre o presente ou como rememoram o passado. Isso fica claro em dois momentos específicos em que Vecchiali usa um recurso primoroso de encenação e decupagem. Dois diálogos centrais de ‘É o Amor’ nos é apresentado duas vezes. No primeiro, Jean e sua esposa Odile têm uma discussão de relação, em que a suspeita que ela tem de estar sendo traída e a defesa que Jean faz das acusações leva o casal a um diálogo longo, em que discutem seu momento atual lembrando o passado, expondo suas expectativas um em relação ao outro e como a vida fez com que a relação chegasse ao ponto em que está após quase onze anos de casamento. Primeiro Vecchiali filma toda cena, toda a conversa ente os dois num plano sequência em que a câmera acompanha a uma distância média apenas Jean e a voz de Odile vem do fora de quadro. Após um corte, vemos a mesma cena com um novo plano sequência que acompanha da mesma distância apenas Odile em cena e é a voz de Jean que vem do extra-campo. Isso reforça não só o texto do diálogo, como a presença física, as expressões, gestos e reações de cada um dos personagens isoladamente durante a cena. Esse recurso é usado novamente na parte final do filme, quando um diálogo entre Daniel (que se tornou amante de Odile e dessa nova relação que surge entre eles ambos encaram como a representação do que seria o amor em seu estado bruto de intensidade, uma atração que foge do controle, um desejo capaz de fazê-los largar tudo um pelo outro) e Albert, até então o namorado pouco valorizado por Daniel, já que este se encontra em meio a uma crise existencial. O diálogo, que marca a separação do casal de namorados é pontuado pela melancolia misturada à ternura típica das despedidas e carregado de ternura. Na conversa, ambos fazem alusões ao que viveram juntos, às suas histórias de vida e discorrem sobre o amor. Novamente vemos parte desse diálogo com a câmera fechada em close em Albert e Daniel fora de quadro, deitado no colo do namorado. Sem cortes, apenas com um movimento de câmera, Vecchiali desce o enquadramento do rosto de Albert e reenquadra o plano em um novo close com o a cara de Daniel ocupando toda a tela e o diálogo recua do ponto em que estava antes do movimento de câmera e ouvimos as falas se repetirem com Daniel em cena e Albert no extra-campo. Novamente, e no momento exato da evolução narrativa, esse recurso de repetir o diálogo, a cena, alcança as mesmas potências dramáticas que Vecchiali tinha conseguido com a primeira vez que isso aparece no filme, no diálogo entre Odile e Jean e logo no início.

É o Amor, de Paul VecchialiOs ambientes e cenários onde se desenrolam o filme, a cidade balneária desglamourizada, meio vazia, o interior das casas e as decorações, suas fachadas e ruelas, a praia, o deck onde acontece uma estranha festa, todos esses ambientes são compostos por Vecchiali carregados de um mau-gosto cafona, de um acentuado uso de cores fortes mesclado a tons pastéis. Tudo parece forçado, caricato, a força e a complexidade da abordagem que o diretor faz de seus temas centrais são ampliadas por essa inusitada composição cênica que cria um desconforto, um descompasso e um conflito com a intensidade do discurso dramático. A imagem digital e sua captação e exposição limitadas, límpida, com ausência de contrastes e de texturas restringidas, reforçam as cores berrantes, a luz chapada e incômoda que parece onipresente. Tudo é calcado no artificialismo e o uso do digital por Vecchiali em ‘É O Amor’ é primoroso por ressaltar aquilo de mais artificialista e limitado a imagem digital pode carregar como registro. Esse cenário farsesco, grosseiro serve para potencializar a tom irônico com que o diretor irá discutir as questões do amor, seus desdobramentos, conflitos, potências violentas e limitações, mas em nenhum momento tira a força discursiva do filme ou diminui o vigor dos dramas.

As situações dramáticas e a narrativa trabalham de forma criativa toda a abordagem que Vecchiali faz sobre as relações amorosas, o desejo, os receios e dúvidas que surgem quando o ser humano se confronta com um outro no terreno do amor, tanto idealizado, quanto vivido e tornado relação, sexo, convivência, rotina, ciúme e possessividade. É um conflito entre um discurso direto sobre o amor e uma farsa que domina os cenários, as ações, os tipos e a própria encenação. Vecchiali discute um dos temas mais clássicos do cinema, o amor, por meio desse conflito, desse choque entre a forma e a matéria do drama, o enunciado e como ele é transformado em discurso por meio do uso dos dispositivos. Carrega na força objetiva do discurso (direto, seco), do tema e contrapõe tudo com a ironia da mise-en-scéne, da composição dos tipos e suas personalidades, das ações e das modulações narrativas e das intensidades das situações dramáticas. De maneira primorosa, original e pulsante, Vecchiali faz um tratado sobre o amor, despretensioso e profundo, em que parece afirmar que o amor é onipresente em todos os corações e mentes, mas só existe como idealização, possibilidade, fabulação, conflito ou memória reconstruída.

‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais

Por Fernando Oriente

'Ela Volta na Quinta'Primeiro longa-metragem de André Novais, ‘Ela Volta na Quinta’ é um filme calcado no cotidiano e do que de mais complexo pode existir no interior de sua aparente simplicidade rotineira. Um longa concebido a partir do registro naturalista do dia a dia de uma família e suas ações dentro do que de mais simples, corriqueiro e banal suas rotinas carregam. É a vida que toma conta de cada fotograma do filme, dessa vida nasce a força dos personagens, as suas essências, dúvidas, imperfeições, defeitos, desejos, frustrações e qualidades. Tudo vem à tona, penetram nas camadas dramáticas do filme e brotam da maneira mais singela possível por meio daquilo que fazem sem se dar conta, essas ações mecânicas, esses gestos infinitos que cada pessoa repete incontáveis vezes ao longo de suas vidas e não dá a menor importância significativa a eles. O trabalho, o cuidar da casa, o andar pelas ruas, as conversas, as refeições, o ir dormir, o jogar bola com amigos, ver televisão ou simplesmente não fazer nada. Impressiona como André Novais constrói um filme tão rico, tão cheio de texturas a partir de um registro direto da trivialidade de existir, da repetição dos gestos, do estar e se deslocar do mundo de pessoas comuns. É como se ele extraísse o que de mais autêntico e paradoxal existe em cada personagem pelo simples fato de registrá-los, de filmá-los e de se aproximar e prestar atenção naquilo que de único e identitário cada um possui; algo que só é possível se esse registro for o mais sincero possível, se o cineasta se permitir abrir-se ao outro, se comprometer e acreditar naquilo que filma. Sem arroubos dramáticos, sem conflitos forçados, ‘Ela Volta Na Quinta’ é um tocante retrato de uma família e seu cotidiano, suas dores e alegrias, suas frustrações e esperanças. É um filme sobre a riqueza e a complexidade do estar no mundo, sobre os paradoxos dessa existência e de como a relação com o outro, com aqueles mais próximos de nós, no caso a família, é algo que passa longe da razão. Relações surgem e são moldadas nas marcas do tempo, são construídas e consolidadas, solidificadas e enfraquecidas pela passagem do tempo e dentro das rotinas de cada um, dentro do constante e inexorável correr do tempo.

‘Ela Volta na Quinta’ usa esse registro direto do cotidiano e vai se deslocando em direção a como o tempo presente descortina os desgastes do passado, a erosão do que foi vivido, ao mesmo tempo em que projeta medos e incertezas sobre o futuro. Desenvolvido com uma encenação precisa em cada detalhe e trabalhada dentro de uma construção que busca reforçar a força significante da naturalidade com que as ações no interior das cenas são compostas, o longa caminha para um discurso sobre a perda, os desgastes das relações, os processos que levam às essas perdas, e chega a um desfecho em que os personagens se encontram diante da vida que resta a cada um, ao mesmo tempo em que são postos frente aos dilemas de como levar essa vida em meio às dores e as cicatrizes das perdas e desilusões. Essa complexa estrutura é solidificada na construção dramática de André Novais, que tem na sensibilidade e na frontalidade seus fios condutores.

No filme, Novais cria uma ficção sobre um casal que enfrenta uma crise no relacionamento, desgastado após 38 anos de vida em comum e com a doença da mãe e uma relação extraconjugal do pai como elementos agravantes. Isso se reflete na forma com a situação afeta toda a família, os dois filhos do casal e suas namoradas. Novais utiliza membros de sua própria família (seu pai, sua mãe, irmão, cunhada e namorada, além dele mesmo) como atores de uma história inventada, o que cria um dispositivo que permite uma maior integração entre o elenco e seu envolvimento com os dramas encenados. Não é mero capricho de Novais, e sim uma escolha que regula o trabalho no set e aprofunda a potência da encenação exatamente por utilizar pessoas que já carregam uma história de vida e intensas relações em comum. Isso faz com que diretor e elenco projetem na ficção um alto teor de intertextualidade, veracidade e intimidade que já trazem incrustadas em suas personalidades, e assim legitimam a ternura, os conflitos e os afetos encenados por meio da própria afetuosidade que já existe entre eles mesmos. E é bom frisar que todo o elenco está ótimo dentro de seus papéis.

O filme é tão em tico em possibilidades de interpretação, na quantidade de situações e em como cada personagem é construído com complexidade, que é impossível escrever nesse texto sobre tudo o que ‘Ela Volta na Quinta’ traz. Poderíamos escrever um texto só sobre os filhos, André e seu irmão, suas vidas, suas relações, as tensões, esperanças e dificuldades em que se encontram. Mas essa crítica segue uma das muitas leituras possíveis do filme e tenta dialogar com ele, analisá-lo e interpretá-lo sob alguns poucos de seus muitos vieses.

‘Ela Volta na Quinta’ é construído em planos longos – que potencializam ao máximo aquilo que é registrado, cada ação, gesto ou expressão que vemos na tela -, a câmera quase sempre estática, algumas poucas panorâmicas, closes e enquadramentos que respeitam o tempo das ações e das modulações dramáticas dentro do quadro. Um quadro que é trabalhado para valorizar a presença dos tipos em cena. Novais evita posicionar seus personagens apenas no centro dos planos (embora use muito bem esse recurso durante todo o filme), os coloca nas laterais e bordas do quadro, em plano de fundo, os filma de lado ou de costas ou mesmo enfatiza suas presenças e falas no fora de campo, os faz entrar e sair de cena e valoriza muito os diálogos e a força do que dito por raramente usar uma montagem em campo e contra-campo ou filmar as conversas de frente (recurso que força o espectador a escutar com mais atenção o que é dito). Sua câmera é como um personagem, que registra de diferentes ângulos aquilo que vê, capta a naturalidade das presenças, dos espaços, dos deslocamentos.

Ela Volta na QuintaAndré Novais compõe uma mise-en-scène que prioriza a densidade por meio de uma aproximação total entre o diretor, seus personagens e o meio em que estão inseridos. As relações entre eles, com todo o peso que o passado e a vida em comum lhes deixaram, é matéria viva da evolução narrativa, conduzida sempre para retirar o máximo de significação dos diálogos, gestos e muitos silêncios que existem entre os personagens. A ternura, o mal estar, o amor ou a reprovação que os personagens sentem um pelo outro surgem desse registro próximo, sincero e terno que o diretor extrai das situações por meio dos dispositivos de encenação e decupagem. Todo um universo de sentimentos, expectativas, frustrações e tensões nas inter-relações vêm à tona, tomam conta da superfície dramática por meio do desse registro minucioso do cotidiano. A força disso fica clara em cenas primorosas como na conversa do personagem de André com sua mãe – ele confere sua pressão, ela se deita na cama o ouvindo contar sobre sua viagem e participação em um festival de cinema e começa a fazer um paralelo entre a realidade do filho, que busca se consolidar como diretor de cinema, seguir fazendo aquilo que gosta e acredita com as lembranças que tem de seu pai, que ela diz ser muito parecido com André, por sempre ter sido fiel em se dedicar a fazer aquilo que acreditava e que gostava (cena que é um longo plano sequência com mãe e filho sentados na cama e evolui até a câmera fechar em close no rosto da mãe deitada enquanto ela continua a falar e ouvir seu filho, já fora de quadro) – ou na já clássica cena em que os pais, com o casamento em crise, em meio às mágoas e ressentimentos que carregam em relação um ao outro, dançam no meio da sala como jovens enamorados enquanto escutam uma música que ela quer ouvir e, com ajuda do marido encontra a canção na internet, e os dois dançam em meio à música que saí do laptop ligado sobre a mesa de jantar.

Nessa dança, que a mãe demora em aceitar, vemos aflorar por meio de um registro direto em um plano estático e com a câmera distante dos personagens todo um caleidoscópio de emoções conflituosas que o casal carrega dentro de si. Dançando meio sem jeito, num misto de tentativa de se (re)aproximarem um do outro, de reviver um amor que já foi intenso e que foi sendo corroído pelo tempo e um mal estar por saberem da real situação em que sua relação se encontra (o que faz com que seus gestos sejam meio descompassados e a atração e retração de seus corpos durante a dança seja constante), André Novais cria uma profunda, melancólica e extremamente significativa representação dos efeitos do tempo numa relação amorosa. Existe amor, existe ternura, existe carinho, mas a idéia, a utopia do amor para sempre nunca resiste às marcas do tempo, aos imprevistos da vida e ao desgaste do convívio. “O amor não acaba, ele vai embora” essa frase presente em mais de um filme de Godard talvez seja a melhor definição para o que vemos na tela. O amor idealizado como puro e eterno não existe. Para viver o amor o ser humano precisa constantemente recriar o objeto amado, buscar ressignificações para o que seja amar o outro dentro dos fluxos do tempo, fazer concessões, se deixar anular em muitas de suas convicções, controlar e realocar o desejo e se deslocar e deixar ser deslocado para outras formas de sentimento, para diferentes maneiras de se manterem próximos e conservar viva uma relação. Passar por esse processo, enfrentar essas situações para manter o outro próximo ou investir nos rearranjos dos sentimentos e nas formas de se colocar no mundo e perante o outro não é fácil, muitos não querem, não acham que os sacrifícios valem à pena, desistem ou simplesmente não conseguem.

Lacan dizia que tanto o amor como a verdade têm uma estrutura de ficção. Quando se ama, um outro é inventado. Continua- se a reinventar constantemente esse outro quando o amor se estende no tempo e sofre seus naturais desgastes. Essa talvez seja a única forma de manter uma relação amorosa duradoura. A cena da dança, bem como toda a relação do casal no filme, carrega todas essas possibilidades de leitura, mas em nenhum momento Novais introduz elementos que quebrem a simplicidade e o registro seco (mas extremamente terno) que faz das ações. Não existem diálogos filosóficos, discussões psicanalíticas. Toda essa riqueza de textura interpretativa surge do registro direto e sensorial que o diretor retira da aparente simplicidade do cotidiano de seus personagens, recriado na sinceridade e singeleza da encenação. Essa tensão de um relacionamento desgastado no tempo em que vive o casal dos pais, se projeta em seus filhos e nas suas próprias relações com suas namoradas. Eles estão no início do amor, fazem planos para viver juntos com as mulheres que amam e construir suas famílias, mas o outro lado desse amor jovem e cheio de esperanças (a situação da relação de seus pais e como eles absorvem a dor dessa relação corroída) surge como uma ameaça, uma possibilidade que eles podem vir a encontrar em suas vidas de casal em um futuro não muito distante.

'Ela Volta na Quinta', de Andre NovaisO cinema de André Novais, principalmente nesse ‘Ela Volta na Quinta’, tem uma aproximação com seus personagens, seus sentimentos e seus espaços tão orgânica, que seus filmes atingem momentos mágicos, no sentido em que a simplicidade singela e frontal daquela realidade recriada torna-se tão cativante e honesta que o espectador sente-se em uma espécie de contato com o sublime do caráter mundano da existência. Do esplendor que existe no simples estar no mundo, com tudo bom e de ruim que isso traz. É um cinema que é feito de dentro de sua matéria, da cumplicidade total entre o realizador, seus tipos e a forma com que se projetam no centro de um universo onde a sinceridade e a entrega mútua se unem para formar um tecido dramático original e complexo.

 ‘Ela Volta na Quinta’ confirma plenamente o talento que o diretor havia mostrado em seus curtas ‘Fantasmas’, Domingo’ e ‘Pouco Mais de Um Mês’, bem como em seu curta-metragem mais recente, ‘Quintal’, de 2016. ‘Ela Volta na Quinta’, ao lado de outro filme mineiro, também filmado em Contagem, ‘A Vizinhança do Tigre’ de Affonso Uchoa (que coincidentemente estreou nos cinemas no mesmo dia do longa de André Novais) são dois dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. Ambos são extremante originais e singulares, mas trazem muitos elementos em comum.

‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa

Por Fernando Oriente

A Vizinhança do TigreO longa de Affonso Uchoa é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. É bom deixar isso claro logo de cara. ‘A Vizinhança do Tigre’ trata de construção de identidade, auto-afirmação, solidificação de personalidades e resistência em meio a um ambiente hostil e a limitações geográficas e materiais, bem como faz um registro minucioso de uma comunidade periférica do Sudeste brasileiro – e opera tudo isso de uma maneira criativa, original e intensa. É um filme em que os personagens buscam dentro de si e no outro – seus amigos, seus vizinhos, seus familiares, seus semelhantes – o reconhecimento, o companheirismo, o afeto e a força para seguirem adiante e juntar os cacos de existências calcadas na precariedade a que estão inseridos. Esse afeto não é esse que contamina muitos dos filmes independentes contemporâneos feitos no país, um afeto estéril e forçado que serve para encobrir a ausência de construções cinematográficas sólidas. É um afeto genuíno, em que Uchoa filme seus personagens de maneira horizontal, está entre eles, nunca acima. Os olha de igual para igual, procura sempre entender ou tentar traduzir suas existências, pensamentos e ações. Tem sobre eles uma visão sincera, humana e isenta de julgamentos morais e teorias sociologizantes.

‘A Vizinhança do Tigre’ não se preocupa com esse debate já infértil sobre as fronteiras entre o que é ficção e o que é documentário. O filme mostra personagens interpretando um roteiro escrito por Uchoa, seus parceiros e por alguns dos próprios tipos que vemos na tela. É um argumento composto coletivamente baseado em experiências reais de vida. Um longa em que pessoas interpretam e improvisam a si mesmas em situações ficcionais que são extraídas ou criadas a patir da realidade de suas vidas. Existe todo um processo de encenação, decupagem, montagem e evolução narrativa construído por Affonso Uchoa que é concebido desde esse roteiro coletivo. A ficcionalização do real a partir da recriação desse real pelo dispositivo cinematográfico. Um filme em que a captação orgânica do mundo e do meio retratado atinge potências imensas. As imagens, as inter-relações, os conflitos, o registro dos personagens e dos espaços seguem uma mise-en-scéne que é totalmente contaminada e concebida em função do caráter orgânico de um mundo que é transposto para a tela com uma sinceridade uma honestidade artística tocantes. O filme é composto dos encontros entre os personagens, seus diálogos (em que discutem assuntos banais, usam sua linguagem e suas gírias características, tiram sarro um do outro ao mesmo tempo em que deixam claro as dificuldades e os problemas em que estão inseridos), seus momentos de diversão, os instantes em que se abrem e se desnudam emocionalmente e pelo registro dos tipos isolados dentro do confinamento dos espaços – sejam suas casas, as ruas e arredores de um bairro pobre do município de Contagem, parte pulsante da Grande Belo Horizonte. Esses momentos em que os vemos sozinhos têm tanto poder significativo e traduz tanto de suas realidades quanto as cenas em que estão em duplas ou grupos. Todos os personagens centrais (Juninho, Menor, Eldo e Adilson) são homens, garotos que se encontram no fim da adolescência ou no início de suas juventudes como adultos.

'A Vizinhança do Tigre'‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme em que a violência e a revolta estão presentes constantemente no interior desses jovens e no meio que os cercam. Ela é extrapolada pelas constantes brincadeiras com armas, pela valorização fantasiada que esses jovens fazem de um mundo de criminalidade que nada mais é do que uma forma de resistência e afirmação pessoal diante de uma sociedade que nunca irá incluí-los e que eles fazem questão de rejeitar (as músicas, os raps, funks e o rock hardcore ou metal que escutam constantemente, cantam junto e criam letras em cima dessas melodias é outra maneira de transbordarem a violência e a revolta que carregam dentro deles). Mas é uma violência contida, reprimida, uma revolta que busca escape nas suas brincadeiras agressivas, nos detalhes e gestos mínimos de cada uma de suas ações, nos pequenos prazeres que experimentam, na maneira como se ofendem ao brincarem um com o outro ou mesmo em que se protegem, na forma como expressam seus desejos e o que pensam sobre o mundo ao seu redor. As pulsões violentas são rebatidas nos afetos que se tornam possíveis pelo encontro com o outro e pela possibilidade de se projetar fora do cotidiano brutal.

Eles vivem dentro de um universo em que a ir à escola para alguns e os pequenos bicos que arrumam como trabalho não lhes dá nada, não lhes garantem oportunidades nem esperança em um futuro melhor. Juninho é um ex-detento, tem que prestar contas constantemente à justiça após sua libertação em regime de condicional, ao mesmo tempo ele deve dinheiro a membros do crime; como seu trabalho como pedreiro (nada além de bicos de fim de semana) não lhe dá o suficiente, precisa voltar a vender droga para poder pagar os traficantes, seus credores. Neguinho e Menor teriam que frequentar a escola, mas não se interessam e praticamente não comparecem às aulas. Eles vivem de suas rotinas de jovens largados ao meio, soltos na vida e sem nada que os motive a não serem eles próprios. Se encontram, fumam, usam drogas, escutam muitas músicas, picham muros, destroem construções em ruínas e perambulam pelo bairro, entre brincadeiras, conversas e instantes de imobilidade. É um tempo presente que se estende na repetição e na falta de objetivos concretos, dias em que as ações se repetem e os prendem ainda mais a uma existência castradora e limitada, mas que nunca retira suas energias, suas resiliências, suas alegrias e suas vontades de viver e interagir com os outros e com o mundo. Uchoa não cria situações que transformam personagens em vítimas passivas, não cria sentimentalismos, muito pelo contrário, ele os retrata cheios de vigor, de vida, de vontades e pulsões. Existe alegria em suas vidas, uma alegria retirada pela complexidade na construção subjetiva desses personagens.

A grande força de ‘A Vizinhança do Tigre’ está em Affonso Uchoa retratar tudo isso de maneira natural, por meio de uma mise-en-scéne orgânica e aberta aos tipos, ações, gestos e espaços. O diretor faz isso sem querer elaborar discursos políticos pré-fabricados e sociologizar sobre uma realidade (e ao fazer isso constrói um longa político de primeira grandeza e atualíssimo). Ele entende seus personagens e sabe traduzi-los, reforça o valor identitário de suas individualidades, sentimentos e ações, por mais banais que essas possam parecer; dá valor aos seus encontros, as sua interações, conversas e diversões precárias que encontram para “encher o dia”, como diz um dos personagens em certo ponto do filme. Cada gesto, cada expressão facial dos personagens tem peso imenso no filme. É por meio desses gestos, dessas ações e inações, dos diálogos, do registro detalhado que a câmera faz da materialidade e da presença física de seus corpos na relação espaço-tempo criada pela encenação de Uchoa que temos personagens extremamente densos, complexos em suas imperfeições e inseguranças, na natural composição dos paradoxos de suas personalidades – frágeis e fortes ao mesmo tempo -, cheios de texturas e que transbordam suas limitações e qualidades, suas características mais humanas, suas alegrias, medos e desejos. Raramente um cineasta tratou seus personagens com tamanho respeito, equidade e consideração afetuosa sincera como Affonso Uchoa faz em ‘A Vizinhança do Tigre’. Cada gesto, cada ação, expressão, olhar e fala dos jovens que vemos na tela são afirmações contundentes da complexidade de suas existências e do valor de suas identidades sendo reafirmado constantemente.

A Vizinhaça do Tigre de Affonso UchoaOutra escolha eficaz de Uchoa é intercalar as cenas entre os personagens, pular de um para o outro sem esquematismos, para depois retomá-los. Esse processo ganha mais força ainda pela inserção de planos estáticos que registram com esmero e de maneira direta e documental recortes dos espaços e ambientes onde eles vivem – sejam fachadas de casas, interiores de residências e seus cômodos precários, construções em ruínas, muros, ruas desertas, personagens anônimos que habitam na vizinhança, planos abertos do bairro tanto durante o dia quanto a noite. A cadência na evolução do filme, sua montagem, é calcada no ritmo natural da rotina e da vida dos personagens, desse microcosmo da periferia brasileira. É um filme de observação minuciosa, de detalhamento dos tipos, ambientes, ações e de um desenrolar próprio do tempo em função das realidades subjetivas retratadas. Não existe um plano descuidado no filme. Todas as construções de quadro são precisas, tanto quanto os posicionamento e movimentos de câmera, os cortes, as modulações da luz na direção de fotografia e a duração dos planos e o que se desenrola no interior do quadro. Uchoa tem total domínio do filme, desde a forma até a evolução discursiva e narrativa.

Voltando a questão do afeto, da procura pela empatia e a identificação no outro, é importante ressaltar novamente como Affonso Uchoa desenvolve isso com uma integridade tocante e uma naturalidade orgânica de encenação, uma cumplicidade total com seus personagens e com o meio que registra. As cenas em que os jovens conversam, brincam como se estivessem brigando ou duelando, se imaginam como criminosos que enfrentam o sistema bem como os momentos em que dão apoio um ao outro, muitas vezes apenas por estarem lado a lado, compartilhando os momentos vividos e ainda em diversas cenas belas e singelas, como duas sequências que envolvem Juninho. Na primeira (a cena que abre o filme) ele lê uma carta que acabou de escrever para um amigo preso (em que busca consolá-lo, aconselhando e a dando força motivacional para o jovem preso), na segunda ele pinta as unhas da mãe com carinho e ternura para que ela fique bonita para ir a um culto religioso. Tudo no filme transborda o que de mais humano e autêntico esses personagens têm. ‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme que marca um jeito novo, um frescor e um desejo imenso por novas potências do fazer cinema. Não só um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, como um verdadeiro farol para novos cineastas e para o espectador. Potente e honesto demais. Filmaço.

‘O Cavalo de Turim’, de Béla Tarr

Por Fernando Oriente

'O Cavalo de Turim'O cinema do húngaro Béla Tarr, desde a metade de sua carreira como cineasta, tornou-se baseado em estruturas formais e dramáticas que o diretor leva à perfeição e elabora até a exaustão, com exatidão e meticulosidade: a construção do tempo como uma presença material e sensitiva, a composição e constante reconfiguração dos quadros pelo uso do plano-sequência, a relação entre os personagens e os espaços e um trabalho cuidadoso em recriar a realidade (o real) a partir do prolongamento das ações e prostrações de seus personagens dentro de um tempo presente que é estendido ao extremo, entre uma espécie de paralisia dos instantes e uma sensação de torpor meditativo e analítico (bem como filosófico e existencialista) que leva o espectador a uma imersão em suas imagens, a um estado de hipnose que contamina não só o publico como as imagens que emanam da tela. ‘O Cavalo de Turim’, seu ultimo longa, realizado em 2011 é um de seus melhores trabalhos e todo universo particularíssimo do cinema de Béla Tarr se encontra no filme em seu melhor estado. O cineasta trabalha dentro de uma paradoxal reconstrução e interpretação o mundo, uma dialética entre o formalismo extremo e os maneirismos de suas construções formais com as questões dramático-históricas do realismo que o diretor usa para compor seu discurso e sua visão de mundo.

Em ‘O Cavalo de Turim’, assim como em seus melhores filmes como a obra-prima ‘Satantango’ (1994), ‘Danação’(1988) e ‘Harmonias de Werckmeister’ (2000) tudo parte da mise en scène primorosa de Béla Tarr. Seu estilo e a densidade de suas imagens bem como a força dramática de seu discurso são estruturados na encenação, que de maneira funcional potencializa e dá razão de ser ao filme (tudo, desde as pessoas, os espaços, a dramaturgia surgem a partir do universo imagético e o tratamento maneirista da imagem e do tempo criado pelo diretor. Tudo é fruto, tudo é originário da mise en scène, não ao contrário), sem cair no vazio, na inércia ou num formalismo raso. É da rigidez e da beleza hipnótica da mise en scène de Tarr que se iniciam todas as qualidades e potências de seus filmes, como fica claro nesse exuberante ‘O Cavalo de Turim’. Béla Tarr constrói seus filmes em longos planos-sequência (em sua grande maioria captados por steadycams, o que dá mais mobilidade às imagens e ações dentro do quadro e às estruturações dos planos), elaborados com um rigor e uma construção e reorganização do quadro assombrosa. Esses planos-sequência não só estendem as ações e o tempo presente de seus dramas como dão força (impressa em cada fotograma) aos acontecimentos, prostrações, fluxos emocionais e conflitos entre seus personagens e os cenários. Seus tipos estão sempre mergulhados em dramas e questões existenciais, bem como em confronto com uma realidade agressiva, um cotidiano banal e uma natureza inóspita. Eles têm que se adaptarem a si mesmos, a suas ideias, suas limitações, desejos e pensamentos bem como enfrentar a força violenta e as impossibilidades impostas pelos espaços, pelas tarefas diárias e pela natureza que os cercam.

Esses longos planos e a forma com que Tarr os desenvolve já são motivo suficiente pra o maravilhamento do espectador; raros cineastas construíram (ou constroem) tão belas sequências e imagens como esses extensos planos do diretor húngaro. ‘O Cavalo de Turim’ se passa todo em uma casa isolada no meio do campo em alguma região remota da Hungria. Os cenários são o interior da casa e a parte externa, o estábulo, o poço, e um gramado que sobe até um pequeno morro onde uma árvore desfolhada marca os limites do campo de visão, tanto do espectador quanto dos dois únicos moradores da casa, um pai idoso e sua filha. Esse espaço delimitado da ação que contrapõe a simplicidade rústica, pobre e claustrofóbica do interior do casebre de pedra com a vastidão da natureza que a cerca é o universo dos dois personagens do filme, mas além desse espaço existe todo o mundo, todo um fora de campo infinito, que tanto público quanto personagens não veem, mas sentem e imaginam a amplitude daquilo que está além do campo de visão. Confinados entre as limitações da casa e seu entorno, presos a uma rotina entediante, desgastante, repetitiva, formada por pequenas ações cíclicas que se repetem dia após dia, pai e filha vivem em um estado de prostração. O velho carrega em seu olhar e seus gestos o fracasso e o rancor, a jovem uma resignação melancólica.

Béla Tarr filma várias vezes as mesmas situações, sempre em planos-sequência, que se repetem a cada dia na vida de pai e filha. A garota veste e despe o pai, ela cozinha batatas que os dois comem com as mãos, sentados à mesa e em silêncio, ela acorda cedo e sempre vai buscar água no poço, os dois vão ao estábulo para alimentar a égua e retirar o esterco. Tudo se repete no filme, mas as cenas são captadas sempre em enquadramentos e movimentos de câmera diferentes, respeitando os fluxos do plano-sequência. A mudança no posicionamento da câmera para registrar os mesmos gestos e ações, a mesma repetição física diária reafirma o caráter recorrente e mecânico dessas ações ao mesmo tempo em que possibilitam Tarr explorar os mesmos gestos sob pontos de vista diferentes, mudando os referenciais de enquadramento, distância e altura da câmera e a relação dessas ações cíclicas com o espaço por meio de diferentes abordagens na relação entre primeiros planos e profundidade de campo, o dentro e o fora de quadro. É uma solução pictórica de se ampliar o registro espaço-temporal de uma série de ações dentro dos mesmos cenários. Por mais que se mude o referencial de visão, as ações e banalidade cotidiana serão sempre as mesmas.

Durante os seis dias em que se passa o filme, a casa e a região onde se encontram está no centro de uma intensa tempestade de vento e um frio seco que faz com que a terra se transforme em poeira que se mistura com as folhas secas que juntas ficam voando ao redor da casa e dos personagens carregadas pela violência do vento que não cessa nunca. Béla Tarr registra o embate de seus personagens com esse ambiente hostil de maneira primorosa. Em longos planos-sequência vemos a filha ou o pai abrirem a porta de casa e saírem diretamente para o confronto com a ventania gelada, a poeira que é atirada em seus rostos e corpos. A câmera os acompanha em travellings, registrando as ações em seus mínimos detalhes. Lentamente acompanhamos seus passos, a dificuldade com que a menina retira água do poço, o esforço com que o velho abre as portas do estábulo e tenta fazer, sem sucesso, que sua égua extenuada puxe a carroça. A dureza de caminhar contra a fúria do vento, o desgaste físico nos gestos, seja tirar o esterco do cavalo ou juntar feno e servir como ração para o animal, seja simplesmente abrir a porta de casa.

'O Cavalo de Turim', de Albert SerraUma das cenas que se repetem constantemente no filme é o pai ou a filha sentados em uma cadeira em frente a uma janela de vidro fechada observando o mundo através dela. De dentro da casa fechada, protegida contra a fúria da natureza, eles observam um pedaço do mundo e se projetam nele, bem como naquilo que imaginam que está além de seus campos de visão. Os personagens, ao sentarem-se em frente à janela e observarem o balé do vento, a árvore solitária balançando no alto do morro em frente à casa, a poeira e a terra a girar no ar, as modulações da luz, a passagem do tempo, o dia lentamente se tornar noite, a escuridão tomar conta do horizonte é o máximo de contato que eles têm com alguma forma de vida que não seja o tédio e a aspereza de seus cotidianos, são seus momentos de fuga, suas aproximações existenciais com algo maior, com uma força pulsante e inexplicável que os fascina ao mesmo tempo que escancara suas limitações. Esse universo que eles vêem projetado através da janela nunca será conhecido totalmente por eles, mas é imaginado e sentido, pode ser no máximo ilusões de uma outra realidade que nunca será a deles. Pai e filha assistindo e se imaginado num mundo que se projeta para eles através de uma janela é como um espectador de cinema que senta em frente a uma tela em branco e se deixa levar, se evade nas imagens que são projetadas nessa tela. Aqui Béla Tarr faz uma das mais lindas alusões ao poder de ver, de assistir e se projetar que o cinema tem.

Raras vezes o cinema captou de maneira tão sensorial e material a força inóspita da natureza. A violência dessa natureza está impregnada nas imagens de Béla Tarr. Ele capta as texturas do vento, da poeira, do frio e do embate de seus protagonistas contra essa fúria incontrolável. A beleza dessas imagens, a força visual que arrebata pelo registro magistral que Tarr faz encanta o espectador ao mesmo tempo em que transmite o sofrimento e a dureza da realidade em que pai e filha vivem. Béla Tarr extrai beleza do colapso de seus tipos, mostra a complexidade do mundo, em que o que pode parecer uma sinfonia belíssima de imagens em movimento não passam de tormentos para aqueles que vivem inseridos nessa realidade recriada. Existe claramente dois papeis: aquele que observa à distância e aquele que vive inserido no meio. Mas o cinema do diretor húngaro atinge tamanho grau de sensorialidade que provoca uma catarse hipnótica em que espectador passivo e personagens ativos passam a dividir os mesmos sentimentos. Projetamo-nos na tela, somos envolvidos pela dureza das situações em meio à beleza das imagens. Sentimos o desconforto ao mesmo tempo em que admiramos a beleza formal magnífica das imagens de Béla Tarr.

O Cavalo de TurimMas ‘O Cavalo de Turim’ tem muito mais em seu discurso. Estamos diante de um filme que aborda o processo de desencantamento do mundo. A realidade repetitiva da rotina cíclica de pai e filha, suas limitações materiais e existências, suas dores e a sensação de imobilidade que os consome são consequências de um mundo em que a reconciliação, a esperança e a redenção estão fora de cogitação. Não existe para os dois protagonistas – bem como para o vizinho que vem buscar bebida na casa deles e faz um longo discurso sobre a degradação de um mundo em ruínas em que estão todos inseridos – a possibilidade de uma real reconciliação, já que essa reconciliação passaria por uma mediação divina; mas o divino está morto. A rotina asfixiante do velho e de sua filha não os levará a lugar nenhum; dia após dia tudo se tornará mais difícil. A égua irá adoecer, parar de comer e de beber e não puxara mais a carroça, o poço irá secar e quanto eles tentarem fugir a estrada estará destruída restando a eles apenas retornar para o casebre e esperar pelo fim dentro da mesma rotina de sempre. Resta aguardar pela interrupção do ciclo de vida, mas sem a promessa de redenção.

Aqui fica claro que o breve prólogo do filme (em que uma voz em off narra quando Nietzsche, em sua passagem por Turim, salvou um cavalo do açoitamento de seu dono e logo em seguida, ao voltar para casa, o filósofo viveu seus últimos instantes de lucidez antes de passar seus dez últimos anos de vida em estado catatônico devido a um colapso mental sofrido logo após salvar o cavalo) é um prenúncio do enunciado que irá conceber o discurso de Béla Tarr em ‘O Cavalo de Turim’. A vida do pai e da filha está condenada a uma eterna repetição (ao ‘Eterno-Retorno’ nietzschiano) sem sentido de uma rotina banal que irá levá-los lentamente até a morte, em meio a um mundo desencantado onde Deus está morto, em que o bem e o mal perderam seus significantes metafísicos e não existe a possibilidade de reconciliação e redenção pelo sagrado. Isso é Nietzsche. Esse discurso de Béla Tarr em ‘O Cavalo de Turim’ nada mais é do que uma leitura de Nietzsche transposta ao cinema pela força de uma mise en scène meticulosamente planejada que materializam em imagens e sequências belíssimas algumas das principais teorias nietzschianas, bem como dão corpo a visão de mundo desse que é um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo.

‘História da Minha Morte’, de Albert Serra

Por Fernando Oriente

História da Minha morteDesde seus primeiros instantes, na bela sequência da refeição noturna no jardim de um castelo na Suíça, ‘História da Minha Morte’ já inicia o deslocamento em direção ao seu tema central, que será trabalho em camadas, multifacetado, escrutinado e transfigurado em imagens de diversos significantes por Albert Serra. O filme é sobre a morte. Morte de um personagem, de um período histórico, de dogmas religiosos, de estruturas sociais, dos valores da família, de uma classe, da razão, de uma forma de ver e traduzir o mundo. O filme todo é impregnado pelo decadentismo. Ao acompanharmos os últimos dias de vida de Casanova, estamos diante da corporificação em imagens, signos e palavras da decadência como proposta estética bem como agente provocador do aniquilamento do ideário, do espírito e da carne. Um decadentismo que fica exposto na materialidade de ‘História da Minha Morte’ pelo uso da imagem digital de baixa resolução, que Serra trabalha com precisão e como agente diegético de seu filme. A imagem suja traz as impurezas, o surgimento do mal, a ação violenta dos impulsos e o afloramento de um desejo torpe que se nutre da aniquilação do outro.

Assim como havia feito em suas duas principais obras anteriores, Albert Serra se utiliza de personagens clássicos mitificados solidamente no imaginário da sociedade ocidental. Foi assim com Don Quixote e Sancho Pança em ‘Honra de Cavalaria’ (2006) e com os Reis Magos e a Sagrada Família em ‘O Canto dos Pássaros’ (2008). Em ‘História da Minha Morte’ temos não só Casanova (o célebre nobre sedutor, libertino, anticlerical e pró revolução) como também o Conde Drácula, que será figura central na última parte do longa. Serra trabalha esses personagens clássicos de maneira totalmente desglamourizada, evita absolutamente os aspectos épicos de suas personalidades e atos, bem como as explosões dramáticas e se concentra em registrá-los em seus instantes de ações banais, em deslocamentos simples, em diálogos corriqueiros, em falas e pensamentos isolados, em silêncios e em seus tempos mortos. Se bem que o tratamento que Drácula terá na parte final do longa fuja dessa simplificação e se materialize em ações diretas e potências dramáticas muito mais intensas. Para Serra valem os gestos, as expressões dos rostos, o tom das falas. Vale a presença física de seus corpos em cena e as simbologias que carregam e como essas materialidades simbólicas se relacionam com o extra-campo e com as construções imaginárias do espectador. Albert Serra trabalha seus personagens a partir de uma desdramatização de suas presenças e ações em cena relacionada sempre com a mitologia que carregam Ele imprime uma condução e uma cadência anti-naturalistas ao filme, dando por meio de modulações dramáticas minimalistas à beleza seca e cheia de texturas que impregnam suas imagens.

Na primeira parte do filme vemos Casanova em um castelo, com outros nobres e criados, onde discute sobre o valor da escrita, o poder das palavras, a desmistificação do cristianismo, a atração e os encantos das mulheres e a proximidade de uma revolução. Ele encara o nobre decadente, que sente as mudanças, a morte de uma era, o fim de sua classe e dos valores que regeram a sociedade por séculos. Serra prolonga as sequências em que os personagens interagem de maneira fria, se deslocam com lentidão ou se deixam prostrar entre divagações e longos instantes de silêncios. A mise-en-scéne é composta por um registro que varia o distanciamento analítico da câmera diante da matéria filmada, em planos praticamente estáticos em que Serra oscila entre a imagem aberta em plano médio ou em closes que extraem o máximo dos rostos e dos gestos de seus tipos. A evolução é em elipses, a todo custo o diretor evita os arroubos dramáticos. A secura, o sarcasmo e a observação dão o tom às sequências. Serra trabalha a força das imagens pelo que elas revelam dos personagens e espaços dentro da composição dos quadros bem como sempre remete essas imagens ao fora de campo, aquilo que sabemos, imaginamos, mas nunca vemos. O minimalismo de Albert Serra serve para fortalecer a presença carnal e material de seus personagens e suas ações na tela e relacioná-las a um universo gigantesco que está sempre no extra-campo.

História da Minha Morte_Albert SerraA sujeira da imagem, a impureza que anuncia a proximidade da morte – ou das muitas mortes – é transposta para o registro direto de ações, sejam escatológicas, como a longa cena em que Casanova se deleita ao defecar, ou na constante presença do personagem comendo sem parar, sempre com as mãos. Frutas ou biscoitos, a câmera registra minuciosamente Casanova comendo com prazer, existe uma relação direta da maneira como a comida é transfigurada em significante do desejo e das pulsões do personagem. A merda, a comida, o vinho, os livros, o mobiliário, as roupas, perucas, maquiagens e adereços tudo é trazido para a superfície das imagens. Serra funde as ideias e os objetos numa mesma frontalidade de registro. Tudo isso compõe a construção de seus personagens, suas personalidades e a relação que eles têm com os espaços que interagem e com as situações dramáticas propostas.

Após abandonar o castelo, Casanova e seu criado Pompeu seguem para o sul da região dos Cárpatos, e acabam se hospedando numa casa camponesa onde mora uma família com o pai, a mãe e três belas filhas jovens. Nessa parte o filme vai claramente de deslocando e se abrindo em direção à exploração dos desejos, da sexualidade, da crueldade e da presença de forças maiores escondidas numa natureza perversa que cerca o local. Aqui temos a corporificação sensorial cada vez maior da fusão entre pulsão, sexo, rancor e morte tomando conta de cada plano. As três meninas transpiram erotismo, sentem-se presas em suas rotinas camponesas banais e nas obrigações e restrições da vida em família. O pai e a mãe são figuras amargas, vivem e personificam o desencantamento do mundo. A presença de Casanova, com sua figura aristocrática, com as histórias de vida que conta e com seu desafiador e cínico desejo expresso em gestos e olhares pelas jovens desestabilizam o ambiente e a vida do local. Novamente Albert Serra usa a força das construções imagéticas para conferir sensorialidade e guiar dramaticamente o filme. A baixa resolução e as texturas sujas e imperfeitas das imagens, aliada a uma luz sempre sub-exposta criam sequências onde os desfocamentos, a ausência de nitidez e o embaçamento esfumaçante tomam conta das cenas. Esses recursos formais trazem o filme para a superfície do plano, fundindo personagens e cenários, tornando os planos de fundo próximos do abstrato e concentrando a dramaticidade do quadro nos primeiros planos. É a construção formal de Serra que amplia as sensações de desconforto, a onipresença das ameaças, a confusão e a violência de desejos próximos a se materializarem. É a base da composição de seu discurso fílmico.

'História da Minha Morte'Nesse momento, após conduzir precisamente o filme em direção a decomposição física e espiritual dos personagens e do mundo que representam e estão inseridos, é que surge o Conde Drácula. Como um agente direto do mal, do desejo, do poder, do erotismo e da expiação, ele entra em cena como uma presença fortíssima, uma figura composta dentro dos conceitos típicos do anti-naturalismo de Serra, mas com potências mais fortes. O Drácula do diretor catalão tem uma presença física e uma materialidade fascinante, assustadora e sedutora. Com ele em cena, Albert Serra introduz de vez o pesadelo e o horror na estrutura dramática do filme. Esses elementos tornam-se a matéria central diegética e ao mesmo tempo simbólica do longa.

Drácula trará não só a morte para Casanova e a estrutura familiar dos camponeses como irá liberar de maneira animalesca o desejo e o erotismo nas três irmãs, que por meio de sua sujeição a Drácula transformam suas pulsões e rancores em ações eróticas, cruéis, violentas e vingativas. Ele as liberta pelo mal, pela abjeção e pela entrega aos desígnios da carne, do espírito e do sangue. O conde transforma as três jovens na clássica mitologia das três noivas vampiras de Drácula, mulheres altamente sexualizadas e poderosas. É por meio de Drácula e suas significações simbólicas e pela força destruidora, erótica e vingativa das três jovens transmutadas em desejo aniquilador pelo sobrenatural horror vampiresco que Casanova irá encontrar de frente sua morte. A matá-lo, Albert Serra mata toda uma casta européia, toda uma ideia de sociedade estruturada em valores iluministas e na razão. Mas a morte (decadência, finitude e decomposição) se estende para todos os lados; morrem os valores familiares, morrem os dogmas cristãos, morrem a clareza e a limpidez do ver o mundo. Essas mortes estão nas ações encenadas, na sujeira da imagem, na impureza que contamina a dramaturgia e na sensorialidade erótica da pulsão de morte que Albert Serra usa para construir seu filme. E no final, tudo se personifica num grito, um urro que é misto de orgasmo, crueldade e desejo incontrolável. ‘História da Minha Morte’ é muito mais atual do que uma visão desatenta pode sugerir.

‘As Testemunhas’, de André Téchiné (2007)

Por Fernando Oriente

As Testemunhas‘As Testemunhas’ talvez seja o último bom filme realizado por André Techiné, embora não atinja o nível de seus melhores trabalhos como ‘Hotel das Américas’ (1981), ‘Rendez-Vous’ (1985), ‘J’Embrasse Pas’ (1991), ‘Rosas Selvagens’ (1994) ou ‘Os Ladrões’ (1996), ‘As Testemunhas’ é repleto de qualidades, energia, vigor narrativo e uma intensidade dramática que vem da própria estrutura do argumento, potencializada pela qualidade da encenação e pelo ritmo vertiginoso da montagem. Os longas realizados pelo diretor nos anos seguintes vão de medianos a medíocres, o que pode indicar um sério problema dentro do cinema recente de Téchiné, mas seu currículo ainda é muito bom para o descartamos de vez.

Realizado em 2007, o filme concentra seu poder na narrativa, cuja evolução está no centro de tudo. Construção de planos, montagem, mise-en-scéne e os demais elementos da linguagem cinematográfica são os suportes para que Techiné desenvolva um longa visceral em que o espectador é mais do que um observador impassível; ele torna-se um cúmplice e também uma testemunha de tudo aquilo que vê na tela, do jorro narrativo criado por Téchiné. O recorte de tempo de um ano na vida do grupo de personagens centrais (1984) e a complexidade e as reviravoltas dos acontecimentos em suas vidas são potencializados pela energia que o diretor retira da história que narra. A força das situações é o núcleo da dramaturgia que Techiné usa para consolidar seu discurso. Os personagens não têm como se manterem impassíveis diante da velocidade de transformações que os acontecimentos provocam em seu meio. Eles tomam partidos, acertam, erram ficam inseguros, temem, mas agem e suas ações são o motor do longa. O diretor extrai o máximo dos dramas e das experiências vividas por e por meio desse processo constrói a solidez e a densidade da narrativa.

Todas as pessoas que vemos na tela carregam o peso de suas experiências vividas, são personagens de construção sólida, multifacetados e de texturas complexas. Não é necessário à Techiné entrar em particularidades nem explicitar o que ou de que modo eles são o que são. O seu agir, suas manifestações e suas reações a tudo aquilo que os cercam são mais do que suficientes para testemunharmos sua complexidade. A força deles vem de suas limitações e potencialidades, do caráter essencialmente humano de suas personalidades.

‘As Testemunhas’ é dividido em três partes. Em um primeiro momento, Techiné explora a liberdade de ação de seus personagens e certa inconsequência (positiva) em viver os prazeres e a consumação dos desejos de forma quase plena. São tipos ágeis, irrequietos e a velocidade da montagem e o trabalho de câmera contextualizam bem o ritmo de suas vidas. Na segunda parte a tragédia assume o primeiro plano, com a presença da AIDS modificando tudo no cotidiano dos personagens no ano de 1984, quando a doença ainda era um mistério, pouco conhecida, sem possibilidades de cura ou tratamentos eficazes e cercada de preconceitos que tornavam a vida de suas vítimas ainda mais complicadas. A velocidade na fruição do longa se mantém e até se potencializa, acompanhando a incerteza, o medo e a incapacidade de reação diante de uma nova realidade castradora das subjetividades libertárias; que embora limite o alcance das ações dos protagonistas, não os impedem de continuar agindo, desejando, vivendo. Esse medo, que é como uma supressão do desejo puro, os impulsiona ainda mais no sentido de tornarem-se agentes do presente que os envolve. Na parte final, após o impacto da inevitável perda, as testemunhas que sobreviveram encontram-se feridas, abaladas e tristes, mas prontas para seguirem na ciranda cíclica e inevitável da sucessão do tempo. O que viram, sentiram e fizeram são os alicerces do testemunho da história em construção. É a história dos indivíduos que sempre compõe a história da coletividade.

Não existe em ‘As Testemunhas’ a banalização das emoções encenadas e dos dramas vivenciados, Techiné é direto, cru e visceral; não usa muletas sentimentalistas para amplificar os dramas. As situações falam por si. Os acontecimentos externos, as tragédias e as perdas que elas trazem penetram o interior dos personagens. Mesmo sem a intenção explícita ou o controle sobre o que acontece, eles têm suas condutas, suas referências e até seus gestos cotidianos alterados por esses fortes elementos externos.

Essa narrativa poderosa de ‘As Testemunhas’ é centrada no impacto dos eventos, dos acontecimentos e as consequências que têm sobre a vida dos personagens. O vigor dos tipos é o centro de um cinema calcado no valor, no potencial e nas possibilidades dialéticas desses personagens. O poder de se contar uma história aglutinando os conflitos, a aproximação e o refluxo entre pessoas comuns (os agentes dessa história) é o elemento primordial do cinema que interessa a Techiné. O cineasta francês trabalha em cima de sensações e sentimentos reais; abomina a caricatura e o gestual falsificado.

André Techiné empresta seu olhar ansioso e inquieto para a câmera que, em constante movimento, registra a velocidade dos acontecimentos em planos ágeis unidos pela montagem vertiginosa de elipses bruscas. Todo esse ritmo não dilui a intensidade das relações entre os personagens; a objetividade na construção das inter-relações é ponto forte no longa. Um pequeno parêntese é necessário: a impressionante presença física e a beleza estonteante de Emmanuelle Béart roubam a cena – afinal de contas trata-se de uma das mais belas atrizes que o cinema já teve. Uma atriz cuja simples presença dentro do quadro já mexe com as emoções do espectador, dos mais diversos modos.

Techiné filma homens e mulheres comuns e seus papeis dentro do desenrolar da vida cotidiana, de seus destinos. Filma o constante movimento da aventura humana. Da experiência de alguns, o diretor traça os paralelos entre a pequena e a grande história. Os eventos que atingem essas pessoas comuns são aqueles que vão deixar suas marcas na história da evolução do mundo. André Téchiné transforma em prazer (recheado de tensão e incertezas) o ato de se assistir a um filme construído em cima da força da narrativa. Pelo menos para aquele espectador que ainda vê no cinema uma experiência totalizante e demasiadamente humana.

‘Carol’, de Todd Haynes

Por Fernando Oriente

'Carol'Uma história de amor permeada por inúmeras reflexões e implicações, dirigida por um cineasta com impressionante talento para encenação e ritmo narrativo e um discurso fílmico repleto de refrações das estruturas sociais que regem as vidas humanas. Isto, e muito mais, é ‘Carol’, o novo longa de Todd Haynes. Haynes é o diretor com a mais talentosa mise-en-scéne do cinema americano surgido nas últimas décadas (“título” que divide com James Grey); muda radicalmente as formas e mecanismos de seus filmes de um trabalho ao outro, opera dentro de gêneros clássicos da mesma maneira criativa, original e inventiva em que experimenta estruturas mais ousadas em obras de concepção e discurso mais radicais e faz tudo isso atingindo sempre a densidade dramática e a força discursiva que fazem de seus filmes experiências únicas. Todd Haynes acredita na força que o cinema pode conferir a uma história – independente da maneira com que decide contá-las -, aos subtextos e aos comentários que essas histórias podem alcançar.

‘Carol’ pode ser comparado, dentro da filmografia de Haynes, a ‘Longe do Paraíso’ (2002). Ambos são estruturados nas premissas e códigos do melodrama clássico, como nos grandes filmes do gênero assinados por Douglas Sirk, Vincente Minnelli ou William Wyler em que a ambientação, a apresentação dos personagens, o enunciado, a direção de arte, os cenários e as estruturas sócio-culturais em que se desenvolvem as ações são construídas com esmero e recriam a frágil normalidade de um mundo estável regido pela moralidade e a impressão de felicidade, mas que será sempre desestabilizado por situações narrativas e por arroubos dramáticos que irão desmascarar as falsas certezas e explicitar os jogos de poder, a hipocrisia e a submissão em que os tipos estão amarrados, levando a conflitos e sofrimentos em que uma possível redenção, consumação de desejos e auto-afirmação dos personagens será uma possibilidade remota (quase impossível), um bem mais provável prenúncio de um fim trágico ou simplesmente a submissão renegada dos tipos aos mecanismos sociais, sempre mais fortes que suas vontades.

Mas a partir disso, sem negar as raízes e estruturas do gênero, os melodramas de Haynes tratam de maneira mais aberta, subversiva e explícita de personagens, situações e eventos que evocam pessoas que estão fora dos padrões sociais típicos. São os amores proibidos, as relações inter-raciais, o desejo homoerótico, a aspiração por liberdade e a emancipação da mulher que assumem o primeiro plano em ‘Carol’ e ‘Longe do Paraíso’. Como em Sirk, Minnelli e Wyler, Haynes busca aqueles que desafiam a moral castradora da sociedade e seus patéticos códigos de conduta e bons costumes, mas os leva a agir de maneira mais radical que nos filmes da Hollywood clássica, assumindo mais riscos e indo mais fundo em suas pulsões e desejos (Esses elementos aproximam Haynes muito mais de Sirk do que dos outros cineastas clássicos, já que Douglas Sirk era o mais elegantemente subversivo dos autores de melodramas). Haynes sabe que esses conflitos são sempre devastadores – e os usa da maneira mais intensa possível, expõe ainda mais a fragilidade que é imposta a suas personagens mediante a uma máquina trituradora de individualidades. Essa fragilidade de seus personagens não significa que eles sejam fracos, muito pelo contrário. A força de seus tipos é enorme, suas pulsões transcendem as regras e os fazem abrir mão de muito para seguirem sempre perseguindo aquilo que desejam e acreditam. A força da presença do outro é determinante nesses longas de Todd Haynes. É ao se entregar, confiar, dividir e se projetar no outro, que as forças de seus protagonistas se amplificam.

Em ‘Carol’ temos a história de amor (e libertação) de duas mulheres; a rica e prestes a se divorciar Carol Aird (Cate Blanchett) e a jovem aspirante à fotógrafa Therese Belivet (Rooney Mara). A personagem de Cate Blanchett tem um passado em que seu envolvimento romântico com outra mulher é conhecido pelo marido, um elemento dramático que ajuda a dar mais textura à personagem desde a primeira parte do filme. Ao evitar o mistério, as suspeitas sobre sua orientação sexual, Haynes nos apresenta uma mulher fortalecida em sua postura e torna suas ações futuras no desenrolar do filme mais solidificadas dentro de sua própria personalidade já estruturada. A evolução do envolvimento emocional e do afeto das duas protagonistas é conduzida com desenvoltura e firmeza por Todd Haynes. Desde a cena em que se conhecem, passando pelos primeiros encontros em que o desejo cresce gradativamente até a viagem sem destino que fazem na segunda metade do longa e chegando a conclusão do filme, tudo é conduzido com ternura, elegância narrativa, força dramática e densidade. Haynes faz cada sequência, cada cena e todos os planos atingirem o grau máximo de drama, de acepção.

CarolAtingir o drama não tem absolutamente nada a ver com um gênero, um estado emocional ou um acontecimento trágico ou alguma coisa relacionada a dores ou tristezas. Drama aqui, em ‘Carol’ e no cinema de Haynes como um todo, é uma potência, uma elevação sensorial diegética, um estado de força brutal alcançado pela intensidade e as modulações impressas nas imagens e na narrativa. É algo sentido na própria mise-en-scéne, na composição dos planos, nas escolhas da decupagem. É aquilo que atinge em cheio ao espectador por meio dos movimentos de câmera, pelos enquadramentos, nas modulações da luminosidade, nas texturas da imagem, pela construção dos crescentes narrativos, pelo que se desenrola dentro do quadro (e a relação que isso tem com o que está fora de campo), nos gestos, nos olhares, nas falas e nos silêncios dos personagens. Atingir o drama em seu máximo grau é fazer o cinema atingir seu ápice.

O pano de fundo, a realidade social e cultural, em que Carol e Therese estão inseridas é parte fundamental do discurso de Haynes no filme. Os EUA do início dos anos 1950, com seus códigos morais, suas microestruturas de poder e hierarquias, bem como o papel subalterno relegado às mulheres pelo machismo atávico e onipresente impulsionam, tencionam e desequilibram a relação das duas. Carol tem uma filha e o processo de divórcio no qual se encontra faz a possível perda da guarda da menina a maior ameaça para ela. Ser separada da filha, ser tolhida em seu papel de mãe é sua maior preocupação. Aqui não é só o amor materno que conta, é o rótulo imposto às mulheres como pessoas obrigadas a encarar a maternidade como um dever. Ser boa mãe é tão fundamental para ser respeitada na sociedade quanto ser boa esposa, ser desprovida de desejo sexual e não almejar nenhuma forma de independência. Abrir mão do casamento por opção já contraria a hipocrisia reinante, deixar de exercer o papel de mãe seria a desgraça completa. Não que Carol não ame imensamente sua filha e não a queira ao seu lado, o que está em jogo aqui vai além disso. Esse paradoxo torna o filme mais complexo. Para se auto-afirmar em sua essência, para ser independente e tentar viver em plenitude e liberdade, a sociedade exige que Carol abra mão do amor sem limites que tem por sua filha ou rejeite essas possibilidades e aceite continuar em um casamento falido. Faz essa cobrança por moralismo, por machismo e por hipocrisia. Os controles que a misoginia exerce sobre as mulheres não poupam nada, elas são aniquiladas e reduzidas a objetos e transformadas em servas das regras da boa conduta, suas subjetividades não tem o menor valor e seus sentimentos simplesmente não contam – algo muito similar ao que acontece nos dias de hoje, apesar de algumas pequenas conquistas. É contra isso que Carol luta e é no amor por Therese (na libertação que viver esse amor representa) e na necessidade de se impor como sujeito de sua própria existência que ela agirá. Aqui o discurso de Haynes ganha força, seu confronto com os códigos sociais assume maior dimensão e ele faz tudo isso dentro do melodrama, usando-o e subvertendo-o.

Mas ‘Carol’ é acima de tudo uma história de amor, umas das mais intensas e belas dos últimos tempos. A construção e a solidificação do amor de Therese e Carol é minuciosamente elaborada por Haynes dentro da narrativa por meio de uma já mencionada encenação primorosa, pelas camadas que o diretor imprime as situações dramáticas de cada cena, pela naturalidade com que as ações se desencadeiam, pelas opções formais presentes nas escolhas de enquadramento e as distâncias e angulações que essas imprimem ao que vemos na tela, pelos climas que cria em cada sequência, pela precisa na direção de atores que garante atuações notáveis a Cate Blanchett e Rooney Mara, pela fotografia exuberante e totalmente funcional de Edward Lachman, pela negação do sentimentalismo e por Haynes não ceder às facilidades dos arroubos piegas e romantismos vulgares, nem criar personagens antagonistas calcados no maniqueísmo.

Carol1O maneirismo que Haynes usa na estrutura formal do filme trabalha a favor dos dramas, climas e ambientações que o diretor constrói para fortalecer seu discurso; não existe virtuosismo vazio em seu cinema. O esmero formal, o detalhismo, a suntuosidade imagética onipresente, tanto por meio do trabalho de câmera – sempre em diálogo com os efeitos visuais atingidos pelos recursos da fotografia-, bem como a direção de arte, as cadências de ritmo e a sofisticação na composição de cena e dos quadros são elementos que só engrandecem ‘Carol’, potencializam o que vemos na tela e ajudam a imprimir uma textura e um compasso sensorial à narrativa. Dentro de todo esse trabalho formal, é notável a capacidade de Haynes em optar sempre pelo corte preciso. Os planos são interrompidos nos momentos exatos que fazem com que as cenas passadas ganhem força e significância e projetem densidade e expectativas nas sequências por vir.

O amor de Carol e Therese é intenso, complexo, tem que superar barreiras e preconceitos imensos e ao mesmo tempo é de uma veracidade comovente. É um amor presente em olhares, em toques sutis, em pequenos gestos, em diálogos, em sorrisos tímidos, falas isoladas e em momentos de silêncio. Está presente nas relações sexuais tórridas, na entrega das amantes, nas trocas explícitas e implícitas, em seus encontros, despedidas e reencontros, em suas cumplicidades e renúncias divididas. Está lá quando uma delas sempre se volta pra trás para procurar um olhar, um vislumbre, ou simplesmente sentir a presença da outra. Está presente nas fotos que Therese bate de Carol – imagens que ela olha ao mesmo tempo em que elas as olham de volta. E está presente no único “Eu te amo” dito entre elas. Essa frase tão batida, quando surge em cena de maneira contundente e comovente, ganha uma ressignificação. Dentre suas inúmeras qualidades e grandezas ‘Carol’ tem um dos mais belos “Eu te amo” já vistos no cinema e esse pequeno detalhe é enorme.

‘Boi Neon’, de Gabriel Mascaro

Por Fernando Oriente

Boi NeonMais do que registrar e situar corpos em um determinado espaço e tempo, como afirma o diretor Gabriel Mascaro sobre seu novo longa, ‘Boi Neon’ consegue contextualizar a presença, a existência volátil e as camadas emocionais e existenciais de homens, mulheres e crianças em meio ao Nordeste brasileiro nos dias de hoje. Uma região que cresceu demais nos últimos anos de governo do PT. Com uma maior distribuição de renda e investimentos, pessoas passaram a consumir mais, a desejar e a sonhar mais. Embora isso não tenha mudado muito as questões de poder e hierarquia social – os detentores do poder político e econômico continuam os mesmos – as pessoas mais simples, os pobres passaram a ter mais acesso a um universo consumista, o que estimula a imaginação e os leva a desejar novas formas de vida, novas ocupações e serem mais vaidosos. A ascensão das pessoas de camadas mais baixas se dá basicamente pelo acesso maior ao consumo e pela possibilidade de desejar novas formas de vida, com novos trabalhos, novas ambições, mas isso não é nenhuma garantia que esses desejos se tornem algo concreto. Tudo isso em meio a uma região que muda fisicamente, em sua paisagem, com a presença de novas indústrias, pólos comerciais, grandes eventos de agronegócio.

Ao mesmo tempo, a presença física dos personagens, a materialidade corpórea dos tipos estão sempre em primeiro plano. Ao registrar o cotidiano do trabalho e das situações corriqueiras que envolvem um grupo de vaqueiros que viajam pelo interior nordestino com um caminhão de bois para participar de vaquejadas em eventos de agropecuária, Mascaro consegue imprimir um registro direto da relação entre homens, mulheres e uma pré-adolescente em meio aos espaços, conflitos e ambientes em que vivem, sonham e interagem. Gabriel Mascaro não se preocupa em fazer de ‘Boi Neon’ um filme com narrativa clássica, ele se interessa pelos instantes, os momentos isolados de vida, os tempos mortos, o registro sensível das presenças de seus personagens e das relações que surgem entre eles, os ambientes e situações em que em vivem. O longa prioriza sempre os acontecimentos isolados, as ações e inações do dia a dia. Vemos o vaqueiro Iramar (Juliano Cazarré), a motorista de caminhão Galega (Maeve Jinkings), sua filha Cacá (Alyne Santana) e os vaqueiros Zé (Carlos Pessoa) e Junior (Vinicius de Oliveira).

Uma crítica que pode cair sobre ‘Boi Neon’ é o fato de o filme não se aprofundar, ou melhor, não dar sequência a alguns dos conflitos e situações que vemos na tela. Mas para quem conhece o cinema de Gabriel Mascaro, essa ressalva torna-se desnecessária e contrária a uma proposta corriqueira em seus filmes. Mascaro não se preocupa em construir uma história com foco nos impactos de ações e consequências. O que interessa para o diretor são o registro das pessoas e suas relações, os gestos, as expectativas, os momentos de pausa, a rotina de suas vidas e a inserção delas em seus meios e espaços, deslocamento e prostração. Recortes de vida, de existência, de presenças. É assim nos filmes anteriores de Mascaro, como no registro do cotidiano dos moradores de Brasília Teimosa em ‘Avenida Brasília Formosa’ (2010), na captação do cotidiano de empregadas domésticas em ‘Doméstica’ (2012) e no primeiro longa de ficção de Mascaro, ‘Ventos de Agosto’ (2014).

E ‘Boi Neon’ é um filme muito superior a ‘Ventos de Agosto’. A contextualização, a construção forte de personagens, a eficácia da encenação, a densidade das sequências e a relação espaço-temporal são muito melhores no novo filme de Mascaro. Uma evolução impressionante de um longa para o seguinte. As cenas são bem compostas e embora não exista a intenção de trabalhar os personagens além de suas presenças em um determinado tempo e espaço, esses personagens têm suas camadas solidificadas no extra-campo, no fora de quadro, naquilo que não é a diegese pura do filme. O espectador constrói sua visão mais aprofundada dos tipos ao relacioná-los com aquilo que não se vê na tela, com o que esses personagens trazem implicitamente sobre suas histórias de vida, seus passados e suas ambições para o futuro. Tudo em oposição a uma realidade mais seca, em que a chance de tornarem seus sonhos realidades parece tão artificial quanto o boi que participa de uma vaquejada noturna com uma pintura especial que o faz brilhar como se fosse de neon ou como no brinquedo de Cacá – um pequeno cavalo com asas preso a um fio que se mexe e emite luzes fortes.

'Boi Neon'Tudo o que Mascaro põe na tela tem significação e enredamento, mesmo mantendo sua encenação centrada para dar enfoque nos recortes de vida, nos movimentos, nos gestos e nos instantes isolados. São assim as sequências em que vemos Iramar (um vaqueiro de formação, mas que sonha em ser estilista e criar roupas femininas) desenhando modelitos à caneta em cima de fotos de mulheres nuas de uma revista masculina, tratando dos bois antes e depois das vaquejadas, costurando roupas com materiais e equipamentos precários, tentando roubar sêmem de um cavalo de leilão, interagindo com seus colegas, com Galega e com a pequena Cacá, bem como quando ele se encontra com a vendedora de cosméticos e vigia noturna de uma fábrica em meio a maquinas de costura profissional e todos os demais equipamentos de uma grande tecelagem (seu sonho de trabalho ideal). São dessa forma que nos chegam as cenas dos vaqueiros conversando sobre amenidades, brincando, contando seus sonhos, dormindo, comendo, fazendo sexo ou nos intensos momentos de silêncio, em que apenas valem as presenças físicas dos corpos, as tensões dramáticas que se encontram atrás de olhares, que ganham vida em ações, em momentos de repouso ou em movimentos lentos que se encaixam perfeitamente dentro dos ambientes em que se deslocam.

São sutis e ao mesmo tempo emblemáticas as situações em que Gabriel Mascaro mostra a nova realidade nordestina, uma região que com o crescimento acelerado dos últimos anos, tem em seus habitantes pessoas que desejam algo além daquilo que a vida os deu e que suas formações destinaram para eles. A paisagem desse novo Nordeste é cheia de fábricas de grande porte, centros comerciais de roupa e acessórios, grandes eventos do agronegócio. Iramar é um típico vaqueiro, totalmente inserido em seu ambiente e em seu trabalho, mas ele sonha ser estilista (é importante lembrar que regiões do interior nordestino se tornaram pólos de produção de roupas e acessórios que abastecem todo o país) e gosta de comprar perfumes. Junior é vaqueiro, mas é extremamente vaidoso, tem cabelos compridos alisados com chapinha, colocou um aparelho nos dentes só porque acha bonito, além de dar status por ser algo caro. Galega gosta de comprar roupas e calcinhas sexy (como diz o vendedor). A única que destoa desse processo é Cacá, a pré-adolescente seque movida entre a vontade de ter cavalos e lidar com eles e a necessidade de acompanhar e ajudar sua mãe em sua rotina de trabalho e afazeres. Mascaro coloca tudo isso na tela de maneira natural, como algo simplesmente presente naquele universo. A sinceridade e a objetividade com que o diretor constrói seus personagens e ambientes são pontos altos em ‘Boi Neon’. A encenação de Mascaro faz essas características de seus tipos serem algo natural e orgânico, sem artificialismos, cacoetes ou forçação de barra.

Embora todos os personagens, dos centrais aos coadjuvantes, tenham uma construção sólida, a melhor presença em ‘Boi Neon’ é de Maeve Jinkings, uma atriz excepcional que a cada filme se consolida como uma das melhores do cinema contemporâneo. Maeve faz qualquer papel, é totalmente polivalente ao interpretar, não carrega vícios e mergulha em cada tipo que vive com densidade. Galega é uma personagem complexa, vive em um meio embrutecido, dirige caminhão, faz trabalhos mecânicos no veículo, mas ao mesmo tempo foge de um perfil masculinizado que se poderia imaginar para uma mulher em tais situações, foge de construções engessadas, preconceituosas e caducas de gênero, respira frescor e autenticidade. Ela exala charme, sensualidade, fragilidade e erotismo, sem deixar de cumprir suas tarefas com precisão e competência. Galega é uma mulher complexa e graças ao enorme talento de Maeve Jinkings, chega à tela com múltiplas texturas, complexidade e cheia de camadas existenciais.

Para contextualizar melhor as qualidades de ‘Boi Neon’ é interessante voltar a compará-lo a ‘Ventos de Agosto’, longa anterior do diretor. No filme de 2014, vemos uma superficialidade dramática, um uso raso e a espetacularizante dos ambientes que não se projetam nos dramas e certo tom pudico emperra as cenas de sexo, que são apenas sugeridas e mantidas fora do quadro. Em ‘Boi Neon’ o registro dos cenários é totalmente imbricado com o discurso do filme, as cenas de sexo são boas, as trepadas são filmadas com vigor e de maneira frontal. Além disso, os personagens são bem mais intensos e as cenas atingem um grau de densidade mais forte. ‘Boi Neon’ é um belo filme, pode não ser uma obra arrebatadora, mas está totalmente em sintonia com as propostas de Gabriel Mascaro e repleto de qualidades.

Os 10 melhores filmes de 2015

Por Fernando Oriente

2015-logoAqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo em 2015, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história. Após algumas revisões, filmes do primeiro semestre mudaram de posição na lista final de 2015.

Os 10 melhores filmes de 2015

  1. ‘Adeus à Linguagem’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia a crítica)
  2. ‘Mia Madre’, de Nanni Moretti. (Itália) (leia a crítica)
  3. ‘La Sapienza’, de Eugène Green. (França) (leia a crítica)
  4. ‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali. (França) (leia crítica)
  5. ‘Sniper Americano’, de Clint Eastwood. (EUA) (leia crítica)
  6. ‘Já Visto Jamais Visto’, de Andrea Tonacci. (Brasil) (leia a crítica)
  7. ‘O Cheiro da Gente’, de Larry Clark. (França) (leia a crítica)
  8. ‘A Pele de Vênus’, de Roman Polanski. (França) (leia a crítica)
  9. ‘Corrente do Mal’, de David Robert Mitchell. (EUA) (leia a crítica)
  10. ‘A Visita’, de M. Night Shyamalan. (EUA)
Adieu au Langage

‘Adeus à Linguagem

2015 foi um ano excepcionalmente bom para estreias em nossos cinemas, um dos melhores dos últimos tempos. Fechar a lista dos 10 melhores de 2015 foi tarefa difícil, alguns belos longas ficaram de fora. Mas listas são listas e tenho que seguir certos critérios. Mediante esse dilema, excepcionalmente, vou mencionar quatros filmes (poderiam ser mais uns dois ou três, mas mantenho certo limite para as menções em listas de ‘melhores do ano’) de que gosto muito e que por pouco não entraram na lista:

  •  ‘Do Outro Lado’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  • ‘Mad Max: Estrada da Fúria’, de George Miller. (Austrália/EUA) (leia crítica)
  • ‘Norte, o Fim da História’, de Lav Diaz. (Filipinas)
  • ‘Batguano’, de Tavinho Teixeira. (Brasil). (leia a crítica)

‘Mia Madre’, de Nanni Moretti

Por Fernando Oriente

Mia MadreO novo filme de Nanni Moretti traz quase todos os elementos e características que fazem do cinema do diretor um dos melhores do mundo. Moretti é não apenas um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, mas um dos melhores cineastas da história – e não há nenhum exagero nessa afirmação. Seu cinema ímpar, extremamente pessoal, sensível, aberto ao mundo e coerente com seus discursos e seus processos estéticos é ao mesmo tempo político, existencial, reflexivo, poético, crítico e sarcástico, sem abdicar do humor, da melancolia e da ternura – e a ternura em seus filmes é desconcertante, porque é totalmente orgânica à matéria de seu cinema, desprovida de sentimentalismos e repleta de texturas. ‘Mia Madre’ é mais uma reflexão de Moretti sobre o ser humano, sobre o estar no mundo, sobre os detalhes e as incertezas da existência. Com uma sofisticada construção formal (ao mesmo tempo simples e objetiva), o cineasta vai tecendo seu discurso em imagens e planos que atingem o espectador de frente, o fazendo pensar, sentir, se projetar, olhar para si mesmo e para o mundo.

O filme acompanha a diretora de cinema Margherita, uma mulher divorciada, mãe de uma adolescente (que vive com o ex-marido) e que está com sua mãe internada em um hospital sofrendo de uma doença da qual não irá resistir. Moretti inicia seu longa com sua protagonista mergulhada num turbilhão: ela se separa do namorado, trabalha nas filmagens de um novo filme em meio aos conflitos normais de um set de filmagens que são agravados pela presença de um ator americano no elenco que, num misto de arrogância e limitações, torna as rodagens ainda mais tumultuadas. Mas é a morte iminente de sua mãe que a joga em uma viagem interior que faz com que Margherita repasse sua vida, reflita sobre o que viveu, o que perdeu e conquistou bem como o lugar que ocupa no mundo. Ela questiona seu papel como cineasta, como mãe, como filha; como mulher. Pensa nos relacionamentos que teve e se acabaram, no que construiu e como é incapaz de traduzir tudo o que a cerca, suas memórias, sua identidade.

Em suma, Moretti faz sua personagem se deslocar entre ações e obrigações com uma constante sensação de deslocamento, de dúvida. Trata-se de uma típica personagem de Nanni Moretti, alguém que é sempre incompleto, que traz em sua essência complexa todas as incertezas e incapacidades de compreender plenamente o viver, o mundo, os outros e a si mesmo, mas que ao mesmo tempo são pessoas cheias de vida, de uma energia humana visceral, de ternura, de amores e raivas, de esperanças e frustrações. Os tipos de Moretti não têm respostas, vivem de suposições, de tentativas, acertos e erros, de pequenos vislumbres do que acontece dentro deles e nos ambientes que os cercam, bem como com aqueles com que se relacionam. Para Nanni Moretti, a instabilidade da vida é o condicionante da existência e o que possibilita a beleza, a ternura e o amor.

Quem acompanha Margherita em suas visitas ao hospital e que passa a maior parte do tempo com ela quando ela não está trabalhando é seu irmão Giovanni (interpretado pelo próprio Moretti). Esse personagem traz mais um elemento característico do cinema do diretor, a importância dramática e complexa dos coadjuvantes, aqueles com quem os protagonistas se relacionam em seu processo de mediação com o mundo. Giovanni é uma extensão de Margherita, sua aparente serenidade esconde uma maior resignação que ele tem com a vida. Solitário, prestes a abandonar o emprego por não querer continuar vivendo dentro de algo que não lhe acrescenta nada, Giovanni transparece a maturidade de alguém que entende que a vida é feita de frustrações, mas que essas não impedem ninguém de seguir a diante e o que está por vir é o incerto, mas viver no incerto e dele tirar o que for possível é que nos resta, é o que move os seres, é o que faz a existência seguir. Essa falsa resignação dele não é algo meramente melancólico, a vida se afirma para Nanni Moretti quando aceitamos nossos destinos em aberto, quando perdemos a ilusão de onipotência e descobrimos que não temos respostas, mas que viver é estar sempre entre perdas e novas procuras, na beleza dos pequenos gestos e momentos, nas trocas com o outro, entre o que nos é negado e o que podemos fazer a partir disso.

'Mia Madre'A perda, a morte, as rupturas entre as pessoas e entre os personagens e suas próprias crenças e ideologias é tema comum e caríssimo dentro da obra de Nanni Moretti. Só existimos quando lidamos com essas perdas, quando tomamos consciência do quanto o que temos, os que amamos, o que acreditamos e o que construímos são elementos frágeis, que podem desaparecer a qualquer momento. Os mecanismos com que lidamos com essas perdas, assimilamos e passamos pelo processo do luto é o que permite que possamos seguir em frente, talvez mais fortes, nunca capazes de superamos por inteiro. Mas resta o ser humano. Restamos nós (o que já é algo imenso) e o que vamos fazer daqui pra frente. O amanhã está aí e tem que ser vivido.

‘Mia Madre’ mescla diversos registros, vamos de uma sequência do filme dentro filme para uma cena que segue a diegese central do longa. Um sonho de Margherita é encenado para logo ser interrompido pela narrativa do tempo presente. Recordações da personagem se misturam com momentos da realidade de sua vida que a traz de volta aos dilemas desse presente incerto em que está inserida. Nanni Moretti vai de um registro ao outro com uma naturalidade impressionante, domina a evolução narrativa e as modulações dramáticas com uma fluidez cheia de ternura e que abre constantes arestas para reflexão, questionamentos e escancara a fragilidade desse estar no mundo do ser humano comum.

A encenação evolvente é a mais direta possível, mas nunca desprovida de um domínio cênico preciso de Moretti que beira o sublime da reconstrução sofisticada e aberta do real pela ótica particularíssima do diretor. Os closes nos rostos dos personagens valem por sequências inteiras, os silêncios entre os irmãos, as questões cotidianas, as conversas banais e o carinho dos assuntos corriqueiros que conversam com a mãe em estado terminal, os conflitos de Margherita no set de filmagem, as caminhadas dos personagens pelos corredores do hospital e pelas ruas de Roma, seguidas por elegantes travellings, as aproximações e recuos de câmera, os ângulos abertos e os posicionamentos de câmera que contextualizam os tipos dentro dos espaços, as frases faladas e interrompidas, o entrar e sair de quadro dos atores, tudo é pensado e decupado para dar potência máxima ao filme, a cada plano, a cada cena.

Ao mesmo tempo em que os personagens são incapazes de se perceberem em sua totalidade, também não conseguem nunca apreender o outro em sua completude, pois no cinema de Moretti não existem seres humanos completos, existem homens e mulheres reais; humanos, demasiadamente humanos – e que entendem como tal. Entender e respeitar o outro e suas limitações é saber se posicionar em relação a si mesmo. Homens que representam todos os homens, mulheres que representam todas as mulheres, esse são os personagens que habitam e movem a obra de Moretti. São fragmentos de nós mesmos que vemos nos tipos de ‘Mia Madre’, bem como em todos os filmes de Nanni Moretti.

'Mia Madre'_MorettiOs homens e as mulheres de Nanni Moretti são tipos políticos, conscientes ou não, eles são agentes dessa superestrutura que move o mundo, engrenagens que podem ser achatadas pelo sistema, pelas normas instituídas, mas possuidores de pulsões, de gestos, ações e presenças que os fazem se afirmar como atuantes ativos na sociedade. A política, para Moretti, está dentro de nós, nos gestos e nas atitudes. Nos erros e acertos, nas dúvidas e nos questionamentos, nos fracassos e na constante energia vital que nos mantém ativos e altivos. Nanni Moretti se assume como um diretor político, seja quando seu personagem na obra-prima ‘Palombella Rossa’ (1989) repete a pergunta “O que é ser comunista hoje?”, seja quando o protagonista de ‘O Crocodilo’ (2006) se questiona sobre como e o que representa Silvio Berlusconi no poder na Itália, sendo que ele mesmo havia votado em Berlusconi, seja quando seu papa em ‘Habemus Papam’ (2011) se interroga sobre sua capacidade de ser líder de uma organização política tão forte quanto a Igreja Católica. Mas também é político quando acompanha o cotiado da vida da protagonista em ‘Bianca’ (1984), a dor maior da perda de um filho adolescente e a necessidade de se seguir adiante em ‘O Quarto do Filho’ (2001), nos momentos em que interpreta a si mesmo nos filmes diário ‘Caro Diário’ (1993) e ‘Aprile’ (1998), quando trata dos conflitos das relações entre casais, dos confrontos de um set de filmagem, nos momentos em que encena o dia a dia de gente comum ou quando simplesmente direciona sua câmera para as pessoas no mundo, em meios aos espaços, em meio a seus deslocamentos, explosões de raiva, tristeza, alegria ou em seus instantesde dor, prostração e imobilidade.

Os filmes de Moretti são interrompidos, ele nunca promove conclusões fáceis, desfechos mirabolantes ou expiadores. Seus longas terminam em aberto, com os personagem seguindo, com que eles têm, com o que lhes restou, com seus sonhos fraturados, suas perdas e com uma esperança que vem sempre de um misto de ternura, afeto e crença naquilo que nos faz humanos: a dúvida, os receios, a superação e a necessidade de ir adiante. O sorriso em meio ao rosto cheio de lágrimas de Margherita no último plano de ‘Mia Madre’ é um exemplo belíssimo disso.

‘O Cheiro da Gente’ (The Smell of Us), de Larry Clark

Por Fernando Oriente

'O Cheiro da Gente'Com seu novo longa, ‘O Cheiro da Gente’, Larry Clark retoma o melhor de seu cinema, a potência formal e a estética vistas em seus melhores trabalhos como ‘Bully’ (2001) e ‘Ken Park’ (2002), além de atualizar sua pesquisa do universo dos adolescentes, iniciada com seus trabalhos como fotógrafo livro ‘Tulsa’ (publicado em 1971). Em nenhum momento Clark procura explorar os aspectos abjetos de jovens que vivem à margem do padrão social capitalista, ele não quer o choque pelo grotesco raso, de apelo fácil. Larry Clark busca as imperfeições, as incertezas, a sujeira, as pulsões de vida e de morte de adolescentes que se encontram em um universo fragmentado de ações compulsivas, movimentos bruscos, dúvidas, prostração, desejos e frustrações. E Larry Clark mostra tudo, seu cinema e seu trabalho como fotógrafo buscam desnudar, expor o explícito de corpos, dos movimentos, do sexo, dos ambientes, dos conflitos. A nudez, o sexo, o confronto e a violência estão sempre em primeiro plano, ele busca as superfícies incertas das coisas, da matéria.

Em ‘O Cheiro da Gente’ Clark desloca seu olhar sobre o universo dos jovens americanos, de subúrbios, cidades pequenas ou mesmo Nova York (no caso de ‘Kids’, de 1995) e vai para Paris. Na capital francesa, a cidade mais bonita do mundo, o centro da cultura, das artes e do luxo, ele coloca seu olhar sobre os adolescentes de lá (vindos de diferentes etnias, classes sociais e formações familiares), seus cotidianos que oscilam entre prostração e ação, entre andar de skate pelas ruas ou nos jardins do Museu de Arte Moderna, fazer sexo, fumar baseados, cheirar cocaína, beber, jogar videogame, dançar em shows e festas ou simplesmente sentar ou deitar e deixar seus corpos e mentes vagarem em momentos de descanso em que são dominados pela desilusão, a melancolia, a frustração e a fugacidade de um presente cheio de ações, mas repleto de incompletudes, de dúvidas, além da constante presença de uma sensação de que o futuro não lhes reserva nada a não ser a finitude, a decadência dos corpos, as limitações e o esgotamento de suas energias. Não existem planos de vida, projetos, apenas a urgência de se viver o aqui e o agora antes que seja tarde demais.

O conflito central em ‘O Cheiro da Gente’ é entre a juventude e a velhice, entre as potências do corpo e da mente no auge da força física dos adolescentes e as limitações, a decadência da carne e do espírito dos velhos. Larry Clark provoca esse conflito ao fazer alguns de seus personagens se prostituírem. São meninos cheios de beleza, com corpos jovens e frescos que se colocam diante de velhos que pagam para fazerem sexo com eles. Eles compram seus corpos jovens, suas presenças cheias de vigor para realizarem suas fantasias. Possuem os meninos, são possuídos por eles, além de praticarem seus fetiches, como na impressionante cena em que um velho chupa os dedos e todo o pé de Math (um dos principais personagens do filme) em uma fúria sexual que se materializa numa sequência frontal de podolatria. Clark constrói os personagens dos velhos clientes dos garotos em cima de arquétipos muito funcionais tanto para a encenação quanto para o discurso do filme. Vemos os velhos e velhas nus, suas carnes flácidas, seus corpos em decadência física. Eles se empoderam pelo dinheiro e por um sarcasmo decadentista, pela capacidade de comprar a juventude dos prostitutos adolescentes e os manipularem. Aqui o filme faz uma clara abertura ao mundo como movido pelo consumo, seja pelo consumo dos corpos belos e jovens praticado pelos velhos e velhas, seja pelos adolescentes que se vendem para ganharem dinheiro e poderem comprar seus objetos de consumo desejados, sejam roupas, sapatos, skates ou que mais acham que precisam para se auto-afirmarem num mundo onde possuir as mercadorias determina as subjetividades.

Outro elemento fundamental usado pelo diretor nesse conflito do jovem ante o velho (do presente perante o futuro que os aguarda) é o personagem que o próprio Larry Clark interpreta: um morador de rua, velho e bêbado que frequenta a região do Museu de Arte Moderna de Paris e seus arredores, locais onde os jovens se reúnem, andam de skate e convivem entre si. O personagem de Clark, ironicamente chamado de Rock Star, representa a decrepitude e a decadência física da velhice, que mais uma vez entra em conflito com o esplendor da juventude dos garotos e garotas. Numa das cenas mais emblemáticas, enquanto jovens tocam violão, fazem tatuagem, fumam e bebem, Rock Star, bêbado e semi-desmaiado mija nas calças sujas. A câmera de Clark enquadra em close as calças de Rock Star se molhando e a urina escorrendo pelo chão. Essa sequência é de uma melancolia profunda, no que poderia ser uma cena meramente escatológica, o diretor tira uma expressão fortíssima desse conflito do jovem com o velho, da decadência corpórea e da condenação a decrepitude da carne e das funções do corpo.

O Cheiro da GenteAs expressões dos rostos dos personagens formam um discurso interior que expõe as camadas existenciais dos tipos. Seja no olhar prostrado, inerte, desanimado e melancólico de Math, ou mesmo nos closes dos demais personagens em momentos de silêncio e contemplação, Clark forma um conjunto de rostos que exprimem um estado de estar no mundo, um interior; monólogos incapazes de serem traduzidos em palavras. Um rosto é um mapa, essa afirmação de Edgard Morin é perfeitamente cabível a construção das texturas dos tipos feitas pela captação frontal das faces dos jovens que Clark filma com ternura e melancolia.

Os corpos nus são parte essencial da proposta estética e do discurso de Larry Clark, desde seus anos como fotógrafo. É a nudez posta na superfície da imagem que dá peso e valor à presença carnal, física desses corpos. É dessa maneira que Clark constitui a identidade de seus personagens, é na nudez que eles expressam suas subjetividades. A câmera de Clark busca sempre a essência física e material dos corpos, em movimentos constantes que pararam sobre as mais diversas partes desses corpos, em closes de genitais, bundas, peitos, coxas (tanto de personagens masculinos quanto femininos) ou em ângulos mais abertos, em que os corpos aparecem por inteiro (nus ou seminus), seja fazendo sexo (com closes de penetrações ou no registro dos movimentos da plasticidade corpórea do sexo), se deslocando pelos espaços e ambientes ou prostrados em momentos de descanso ou quando simplesmente já não tem mais forças para se movimentarem. O diretor filma o suor, as sujeiras, as texturas epidérmicas e as formas desses corpos. Nada disso é gratuito, tudo faz parte do processo identitário dos mecanismos formais de Clark, o que sempre levam em direção à construção de seus discursos.

A imagem suja, crua, sem maquiagens artificializantes de Larry Clark assume em ‘O Cheiro da Gente’ ingredientes potencializadores. No filme vemos constantemente imagens registradas por celulares, câmeras digitais, webcams e transmitidas via internet, com sua baixa resolução, sujeitas as deficiências de nitidez, captação de luz e expostas a uma reprodução precária, em que essas cenas surgem craqueladas, fragmentadas e com as imagens borradas e que travam devido ao pixalemento da transmissão via web. São nas formas da captação e reprodução toscas de imagens sujas, nessa modernidade borrada e imperfeita dos novos formatos do registro imagético do mundo que Clark encontra a imagem representativa desse real contemporâneo e multifacetado. Nas imperfeições e na sujeira dessas cenas estão as limitações da clareza em se representar, compreender e apreender o mundo pelos adolescentes, bem como por todos nós.

Se câmera de Larry Clark é uma presença física, um olhar diegético do universo, dos ambientes e dos personagens que ele registra, essas imagens de celulares e câmeras digitais de baixa resolução tornam esse processo material da presença física das imagens ainda mais intenso, repleto de movimentos, falhas, descontinuidade e rupturas abertas aos aspectos orgânicos do filme.

‘O Cheiro da Gente’ é possivelmente o melhor filme de Larry Clark, em que salta aos olhos sua total entrega como cineasta à matéria e a forma que constroem os discursos do longa, uma entrega plena de coerência artística e impressa pela subjetividade do diretor, na forma com que ele se debruça com vigor (aberto aos acertos e erros desse processo) aos personagens, ações e dramas.

‘A Última Ceia’ de Tomás Gutiérrez Alea (1976)

Por Fernando Oriente

A Última Ceia‘A Última Ceia’ contém muitos dos elementos-chave da visceralidade e a da urgência do cinema moderno latino-americano (surgido no final dos anos 50 e início dos anos 60 em países como Brasil, Argentina, Cuba e Bolívia, entre outros casos mais isolados), um cinema que busca desconstruir a visão eurocêntrica dos processos históricos e criar uma sintaxe e um discurso-forma latino-americanos do mundo. Essa proposta estética, política e artística sempre foi trabalhada com maestria e complexidade pelo cubano Tomás Gutiérrez Alea. Isso pode ser claramente notado em recursos formais como da câmera na mão, a frontalidade da encenação, a construção arquetípica de personagens (que possibilitam a exploração dramática, simbólica e discursiva de suas texturas), no uso sensorial e subjetivo das imagens trêmulas que traduzem com precisão as tensões narrativas até a predominância da luz estourada, bem como nas onipresentes questões do choque de classes e nas buscas históricas que levaram a constituição dos povos latino-americanos.

Em ‘A Última Ceia’, Alea discute o choque de classes, a escravidão como elemento fundador das relações econômicas e sociais de exploração (bem como da constituição de um povo que é oriundo da miscigenação de povos e raças) e as bases matérias e ideológicas que indicam a necessidade do surgimento de processos revolucionários. Faz uma leitura marxista da história e expõe, de forma clara, como os conflitos entre a classe dominante e os destituídos e marginalizados são, e sempre serão, os elementos primordiais para se discutir, de forma profunda, a dialética de dominação e consolidação das relações de poder e ideologia que movem as relações humanas.

As seqüências da ceia de Páscoa promovida pelo senhor de engenho, em que ele resolve fazer às vezes de Jesus Cristo e jantar ao lado de doze escravos que representa os apóstolos, é um dos pontos altos dentro da história da filmografia da América-Latina. Filmada em planos longos, com lentos movimentos de câmera que buscam sempre o rosto dos atores (e enfatiza a força dramática do extra-campo) e uma fotografia que prioriza a fraca incidência de luz, Alea cria uma parábola em que a prepotência do “conde” o leva a um devaneio em que se sente tão poderoso como o Cristo. Ao se mostrar benevolente e humanista, ressalta ainda mais seu caráter abjeto e toda a sordidez de intolerância e egoísmo da classe que faz parte. São diálogos de forte densidade simbólica, conduzidos em meio a uma verdadeira aula de mis-en-scene.

A religião e seus desdobramentos também fortes em ‘A Última Ceia’. Alea adota a leitura marxista de como os dogmas religiosos das elites, no caso o catolicismo europeu, sempre foi usado como forma de domesticação e alienação das massas. Ao tentar impor idéias metafísicas maniqueístas aos escravos negros, tanto o padre quanto o senhor do engenho visam apenas adestrar e retirar qualquer possibilidade de reação desses escravos, bem como anular suas raízes culturais e os destituir de suas subjetividades. É uma das melhores maneiras de dominação que a história já foi capaz de mostrar (é só pensarmos no sucesso das igrejas evangélicas dos dias de hoje), em que a resignação de toda uma multidão é sempre a melhor forma possível de impedi-lá de tentar qualquer tipo de reação diante das normas impostas e de buscar mudanças significativas nos mecanismos de funcionamento da sociedade.

As bases para as possibilidades revolucionárias (afinal o filme foi produzido em Cuba na esteira do sucesso do levante armado de Fidel e Che), em que o desenvolvimento da consciência político-social dos explorados leva à revolta e ao clímax do choque de classes, é o tema da última parte do longa. Após mostrar a cruel repressão dos escravos revoltosos, Alea deixa claro nos planos finais, quando vemos o único negro a não se capturado correndo pelo campo, acompanhado pelo vôo de um pássaro, que a semente para futuras revoltadas sociais está em liberdade e, segundo o cineasta, necessita apenas germinar para que todo um processo de tomada de poder pelas massas seja detonado em larga escala. Em suma, cinema revolucionário puro.

No cinema de Alea, e nitidamente ‘A Última Ceia’, por meio da construção estética e da encenação se evidencia como a forma constitui o discurso. Os mecanismos de da estrutura formal do filme promovem as chaves e os meios de elaboração discursiva e dramática. A mise-en-scéne calcada na movimentação da câmera, nas imagens trêmulas que escrutinam os espaços e ambientes abdica do tradicional uso do campo e contra-campo para integrar todos os personagens nos espaços e com a união espacial temporal da encenação potencializar os discursos e a força política dos dramas.

‘A Última Ceia’ é um filme seminal (não só para o cinema latino-americano) e forma ao lado de ‘Memórias do Subdesenvolvimento’ (1968), ‘Os Sobreviventes’ (1979) e ‘Hasta Cierto Punto’ (1983) um quarteto central de obras-primas dentro da filmografia do brilhante Tomás Gutiérrez Alea.

‘As Mil e Uma Noites’ (Volumes 1, 2 e 3), de Miguel Gomes

Por Fernando Oriente

As Mil e Uma NoitesOs três volumes de ‘As Mil e Uma noites’ são filmes separados, mas partes distintas de uma obra única. Os três segmentos se relacionam entre si de uma maneira muito mais intensa e imbricada do que uma simples trilogia. São filmes que condicionam um ao outro, dialogam constantemente entre si e partem de um mesmo enunciado e se deslocam para o desfecho de um arco narrativo-simbólico que se inicia no volume 1 e é interrompido, cheio de possibilidades em aberto, ao término do volume 3.

Em ‘As Mil e Uma Noites’ Miguel Gomes mescla documentário, fantasia, crítica social, narrativas ficcionais naturalistas, meta-cinema, drama, comédia, falso documentário tudo de maneira orgânica, indo de um registro ao outro, fundindo os diversos dispositivos e estruturas formais com uma fruição calculada e cadenciada. Os três filmes são marcados pela quase onipresença da melancolia e da crítica social cética, mas sempre com irrupções de sarcasmo, ironia, humor negro, autocrítica. Uma obra que se desdobra em diversos fragmentos isolados, em narrativas autônomas que se relacionam e comentam umas as outras. O uso das músicas, a presença marcante dos diferentes registros de luz e luminosidade, a variação entre planos estáticos, travellings, panorâmicas e closes, o trabalho de composição de planos nas bordas do quadro, tudo é usado por Gomes para tecer essa obra ambiciosa, dividida em três atos.

O conflito entre narrativas em que a paleta de cores desbotada e tendendo para o monocromático se intercalam com histórias onde as cores fortes e a claridade dominam o quadro. Todos os elementos são pensados para a composição máxima dos planos dentro de uma potencialização do que vemos na tela. O uso do scope amplia a arestas e relação espacial e temporal dos dramas, das narrativas, e do registro dos ambientes e situações. O som, por meio da captação dos ruídos, das intensidades das falas, das músicas (diegéticas ou não) são fator que tornam mais forte a intensidade sensitiva com que o espectador recebe o filme.

No volume 1, ‘O Inquieto’, o filme começa com um impressionante travelling com a câmera em um barco a registrar um estaleiro que acaba de fechar, deixando inúmeros funcionários desempregados. O plano é acompanhado por depoimentos em off desses trabalhadores recém demitidos narrando suas experiências como trabalhadores do estaleiro e comentando suas histórias de vida e o desemprego a que foram jogados. Miguel Gomes inicia seu ‘As Mil e Uma Noites’ de dentro da imensa crise social e econômica que assola Portugal. Esse pequeno documentário que abre o filme é interrompido pela presença do próprio Miguel Gomes e sua equipe em cena (característica comum aos filmes do diretor, presentes em seu melhor longa até hoje, ‘Aquela querido Mês de Agosto’ e em alguns de seus curtas). Gomes diz que a crise, o caos e a miséria em que seu país foi jogado pelas medidas de austeridade impostas a Portugal pela União Européia tornam impossível seu trabalho como realizador de fazer um filme tanto documental sobre a crise quanto uma ficção em que possa construir histórias. Ele está em crise, ele reflete a crise de seu país e de seu povo em um bloqueio criativo. Desesperado Miguel Gomes/o realizador foge e abandona a equipe. Preso por um órgão do governo que o acusa de desperdiçar dinheiro destinado à produção de um filme em meio a um país em crise, Miguel e sua equipe pedem clemência e o diretor tem a ideia de dar lugar a Xerazade, que saída direto do clássico ‘As Mil e Uma Noites’, irá narrar histórias para o rei (o espectador) no seu lugar. As histórias, que irão se desenrolar nos três volumes do filme irão abordar direta e indiretamente a situação da crise portuguesa, contextualizando os dias de hoje com os processos históricos que levaram Portugal ao seu atual momento de colapso.

Esse recurso ousado de Miguel Gomes, que se diz incapaz de fazer um filme, mas que realiza uma obra em três partes, audaciosa e complexa por meio dos relatos Xerazade (ele mesmo, ou seja, o realizador) é um gesto ambicioso do diretor, que em mãos menos talentosas poderiam resultar em um enorme gesto de comiseração e arrogância, mas do qual ele se sai bem. O que poderia parecer prepotente e falacioso se transforma em um belo filme, apesar de altos e baixos – característica comum a imensa maioria de filmes em episódios. Miguel joga um desafio, faz uma aposta arriscada, mas se dá bem. Seu talento é grande e os três volumes de ‘As Mil e Uma Noites’ funcionam para que ao final tenhamos um belo filme (ou três belos filmes).

‘As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto’

Após a introdução pelo documentário e a alegoria metalinguística da crise do realizador e a introdução de Xerazade começam as serem narradas pela princesa as histórias que formarão os três volumes do filme. Como todo filme em episódios, por mais que esses se relacionem uns com os outros, temos episódios melhores e outros menores, mas no filme de Miguel Gomes mesmo os episódios menos felizes tem algo de interessante. A primeira história narrada no volume 1 é um dos pontos altos do projeto, com uma aguda crítica social, composta por elementos fantásticos, escracha os governantes portugueses e europeus em meio as suas decisões em relação a medidas de austeridade. Associando poder político-econômico com virilidade sexual, Gomes debocha dos políticos ao apresentar um grupo de burocratas que andam sem rumo, portanto ereções constantes incapazes de serem aliviadas. Visualmente forte, com um tom narrativo ao mesmo tempo cínico e cruel, Gomes reduz esses políticos a meros imbecis que vagam com seus paus duros incapazes de fazer nada a não ser esconderem suas ereções da mesma maneira que escondem e dissimulam suas políticas assassinas de austeridade, arrochos e sua cartilha capitalista sórdida de preceitos neoliberais.

As outras duas histórias que compõem o volume 1 variam entre o registro mais naturalista também com elementos fantásticos do segundo conto, com seu galo falante que acorda mais cedo para avisar os humanos das tragédias que estão por vir (esse episódio sendo um dos mais fracos de todos) e termina com um registro direto, em que o drama toma conta da narrativa, com momentos de falso documentário e muita melancolia da terceira história. Alguns dos depoimentos que os desempregados dão no centro de assistência ao trabalhador no qual trabalha o protagonista dessa terceira história (filmados de maneira direta e documental por Miguel Gomes, privilegiando a tragédia do desemprego pela força dos relatos orais e as expressões e gestos corporais que os trabalhadores assumem durante o processo do relato) estão entre os pontos altos de toda ‘As Mil e Uma Noites’.

‘As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado’

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O volume 2 conta com três histórias, e se mantém apenas no registro desses três contos. No primeiro segmento, um velho que acaba de matar a mulher e a filha, se esconde pelos campos vivendo em contato direto com a natureza, sendo ajudado por poucos moradores da região enquanto é perseguido por policiais e drones. Ao fazer do homem que só se deixa capturar quando quer, que engana as autoridades uma espécie de herói para a população da região, Gomes destila seu sarcasmo ao mostrar que em uma sociedade no caos, abandonada por seus representantes, mesmo um assassino passa a ser alguém de valor pelo simples fato de se opor às normas e enfrentar um sistema incapaz de tirar o povo de um processo espiral de empobrecimento e miséria crescentes. Gomes filma essa história com uma câmera que observa e valoriza os gestos do fugitivo, seus silêncios, a força de sua relação com a amplitude dos espaços.

O segundo conto do volume 2 é o que tem o maior apelo estético do filme. Um julgamento estilizado, realizado numa espécie de teatro grego ao ar livre onde uma juíza que julga um crime descobre que cada crime que julga leva a novos crimes, onde culpados se apresentam um após o outro, em que vítimas passam a culpados. Miguel Gomes faz uma alegoria de uma sociedade sem inocentes, em que o crime, do mais banal ao mais sério, tornou-se um meio de sobrevivência para um país que já perdeu o rumo e os códigos éticos foram implodidos. Alegorias, fábulas, mitologias, elementos e personagens fantásticos tudo é mesclado nessa história com vigor e uma fruição narrativa envolvente por Miguel Gomes. Uma encenação precisa e criativa, solidificada numa decupagem rigorosa e uma construção de cenas fortíssima que sempre se expande para as tensões que se seguem fazem dessa história um verdadeiro tour de force dramático (mas repleto de tons fantásticos), cheio de cinismo e melancolia, um retrato ácido de uma realidade tornada ainda mais forte pelos dispositivos do cinema que Gomes domina bem.

A terceira história, a que fecha o volume 2 é usada por Miguel Gomes para traçar um painel, uma radiografia de diversos moradores de uma bairro na periferia de Lisboa onde pessoas diferentes parecem padecer todas da mesma prostração e da mesma apatia angustiante de vidas anódinas, de existências sofridas, sem horizonte de esperança e frustradas. Com um tom ao mesmo tempo de um observador atento dos detalhes, dos rostos, e ações de diversos personagens, bem como uma captação precisa dos espaços e ambientes onde essas pessoas vivem e sobrevivem, o conto faz um painel da melancolia e da impossibilidade de reação dos sujeitos. A narrativa é conduzida pela presença de um cachorro, que surge no bairro e vai mudando de dono. A parte em que Miguel Gomes passeia pelas micro-histórias de diversos moradores é poderosa e o uso das canções bem como a maneira como o diretor consegue capturar os climas e sensações dos tipos e dos ambientes é um dos pontos altos e mais poderosos do filme. A cena da fumaça que sai pela janela e a câmera a acompanha em seu movimento no ar até dissipar-se e revelar as fachadas dos prédios com suas luzes difusas numa noite qualquer, tudo ao som de ‘Say You, Say Me’ de Lionel Ritchie, é um dos planos mais belos já filmados por Miguel Gomes, em que a força da encenação usa o sentimentalismo como catalisador de potência e foge da armadilha de cair no mero piegas – problema muito comum no cinema contemporâneo quando diretores escolhem usar baladas anos 70 e 80 como comentários ou fugas dramáticas na banda sonora.

‘As Mil e Uma Noites: Volume 3 – O Encantado’

As Mil e Uma Noites_Volume 3No início do terceiro volume as narrativas são interrompidas e acompanhamos Xerazade – angustiada e com medo do rei, ao mesmo tempo em que sente uma vontade enorme de conhecer o mundo que nunca viu por passar seus dias trancada no castelo – sair em uma jornada sem rumo para passear e interagir com os espaços e os habitantes do Reino de Bagdá. Durante toda a pequena jornada de Xerazade, Miguel Gomes faz sua personagem interagir com diferentes tipos, visitar lugares belos, se envolver com homens sedutores, conhecer tipos míticos e exóticos, ver um mundo cheio de cores que pulsa energia e beleza. Ela flerta com instantes de liberdade em um mundo idealizado, mas em breve é convencida por seu pai a retornar ao palácio e reiniciar suas narrativas ao rei. Esse momento de idílio, Miguel Gomes filma com cores carregadas, uma luz forte e dourada que contamina todos os planos e onde a beleza dos corpos e da natureza dão um refresco para as tragédias e a melancolia que dominam as histórias que vínhamos acompanhando até aqui.

O resto do volume 3 é dominado por uma única história, interrompida brevemente para a narração de um protesto de trabalhadores. O protesto é real e foi filmado de maneira documental e direta por Miguel Gomes. Essa quebra serve para tirar de novo espectador da zona ficcional é introduzi-lo na realidade mais crua e direta da situação portuguesa, que é mote central do filme. De volta ao segmento final do volume 3, que se desenrola por todo o restante do longa e é interrompido (fechando ‘As Mil e Uma Notes’ de Gomes). Esse conto não é narrado em off por Xerazade, como todos haviam sido até aqui e acompanhamos a discrição dos fatos e personagens por meio de textos inseridos na tela (que se tornam cada vez mais escassos com o desenrolar da narrativa), como cartelas do cinema mudo sobrepostas às imagens que se acumulam diante de nós.

O tom é o mais seco possível e num registro distanciado, em que Miguel Gomes capta fragmentos de diálogos, sobrepõe narrativas lacunares umas as outras, vai de um personagem ao seguinte para depois retomá-los em seus pequenos gestos, ações e momentos de prostração. O diretor conta, por meio de pedaços da história de vida de cada um deles (unidos por serem todos criadores de passarinhos e participarem de competições de cantos desses pássaros) vários momentos da história de Portugal e suas transformações, desde a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, passando pela Revolução dos Cravos e os processos de urbanização que remodelaram bairros inteiros com a construção de horrorosos conjuntos de habitação social (nada mais do que blocos e mais blocos de prédios com seus apartamentos minúsculos onde os tipos mais diversos vivem suas vidas de limitações e tentam sobreviver à precariedade e a melancolia existencial) até o momento da crise dos dias de hoje.

Esse conto, o mais melancólico de todos, é carregado pelo registro que Miguel Gomes faz dos rostos de seus personagens, faces marcadas pelo peso da vida, pela sensação de impotência existencial, pelo contentamento fugaz de brincadeiras com passarinhos, bem como dos espaços em que eles se inserem e interagem, uma paisagem que os molda em seus sentimentos fugidios e a distância e o peso do tempo se faz sentir com frequência constante. Essa narrativa fecha o filme, ela é interrompida na cena final, um longo e amargo travelling que acompanha um velho criador de pássaros caminhando sem destino certo por uma estrada de terra no interior de Portugal. O plano é interrompido, o filme é interrompido em meio à caminhada desolada do velho, um sobrevivente da história recente de Portugal, uma testemunha de transformações, de momentos de esperança e do atual estado de colapso da sociedade.

Fecha-se o arco proposto pelo próprio cineasta como personagem no início do volume 1. Interrompe-se uma sequência de histórias, de alegorias, de fábulas, de dramas. Após mais de seis horas, divididas em três volumes, Miguel Gomes deixa para o espectador um discurso aberto, um relato fragmentado e multifacetado de melancolia. Um registro ácido, fabular, sarcástico e autocrítico do estado do mundo visto pelo microcosmo português.

‘Pasolini’, de Abel Ferrara

Por Fernando Oriente

'Pasolini'A obra de Pier Paolo Pasolini, num sentido que vai muito além de seus filmes e envolve seus textos, suas entrevistas, livros, seu pensamento e sua postura como intelectual e militante político, soa muito próxima do universo de Abel Ferrara. Tudo aquilo que Pasolini via no mundo, na sociedade e nas estruturas que o cercavam se tornaram material para o cinema de Ferrara. A violência crescente na sociedade – em todas as esferas de poder bem como na miséria – que Pasolini denunciava e criticava, principalmente em seus últimos anos de vida, é elemento constante no cinema de Abel Ferrara, desde seus primeiros trabalhos no final dos anos 70 e início da década de 80 até os dias de hoje. Uma violência bruta, cega e banal que nada mais é do que fruto de uma sociedade alienada, de seres humanos desprovidos de subjetividades críticas, vítimas de uma estrutura capitalista que os moldava desde a escola para serem consumidores vorazes, desejando compulsivamente sempre adquirir mais, impedidos de pensar e refletir por si próprios, individualistas e sempre impelidos a temerem o outro, estarem sempre prontos para agredir quem estivesse ao seu lado para continuar sua jornada de consumistas autômatos sem a menor consideração pela vida e vítimas constantes de um medo atávico.

Ao adaptar o último dia de vida de Pasolini em seu filme, Ferrara constrói um elo entre o pensamento do cineasta e escritor italiano (e o vazio que ele deixou ao morrer tão cedo) com os dias de hoje, torna atualíssimas as ideias e as premonições de Pasolini sobre o período sombrio que aguardava a sociedade. Só que Ferrara faz seu longa muito mais complexo e dialético (em diálogo constante com a presença da obra e do pensamento de Pasolini) ao inserir, durante sua encenação do último dia de vida de Pier Paolo Pasolini, fragmentos de entrevistas, trechos de textos e um roteiro de um filme que ele nunca chegou a realizar. Ferrara introduz esses elementos de maneira variada. Encena pedaços de um conto de Pasolini, filma trechos desse roteiro escrito por ele (criando um filme dentro do filme) e recria fragmentos de duas das últimas entrevistas dadas por Pasolini antes de sua morte. A partir desses processos, Abel Ferrara materializa o pensamento e as ideias, bem como a arte de Pier Paolo Pasolini na tela, foge da mera descrição e entra no campo da recriação por meio da imagem, usa o cinema para potencializar o pensamento de Pasolini e torna seu filme muito mais dinâmico e complexo.

O Pasolini que vemos na tela, numa incorporação impressionante de Willem Dafoe, é um homem em constante movimento, se desloca de uma tarefa a outra, escreve, lê, dá entrevistas, almoça com a mãe e a sobrinha, recebe a visita de uma amiga atriz, sai nas ruas em seu carro e se desloca por Roma, indo de um jantar com atores para discutir seu próximo filme até o encontro com o garoto de programa que irá levá-lo ao seu assassinato. Só que o movimento do Pasolini de Ferrara não é apenas físico, seus diálogos, seus textos, suas conversas, seus gestos e olhares, bem como suas expressões quando em silêncio mostram um homem mergulhado em seus pensamentos, em suas ideias e um constante processo de observação do mundo, reflexão e criação intelectual. Esse movimento físico e mental do cineasta italiano é encenado pela constante movimentação da câmera de Ferrara, que usa pouquíssimos planos estáticos e faz do movimento, não só o da câmera, mas aquele interno aos planos, uma constante, uma força condutora de seu protagonista e de seu fluxo mental, bem como destaca o valor material das ações, encontros e deslocamentos do personagem. Esse movimento é característica marcante em toda a obra de Ferrara e em ‘Pasolini’ temos novamente o exemplo do vigor e da frontalidade da mise-en-scéne ímpar de Abel Ferrara. Embora o pensamento, a visão de mundo e muitos dos conceitos desenvolvidos por Pasolini estejam presentes por todo o longa – como também se encontram dentro do universo que Ferrara retrata em diversas de suas obras – ‘Pasolini’ é um filme de Abel Ferrara, com suas características, estruturas fílmicas e assinatura.

PasoliniEm apenas pouco mais de 80 minutos, Ferrara constrói e decupa seu filme dentro de uma síntese sólida dos diversos elementos que formam o discurso de ‘Pasolini’. As cenas em que ele filma o conto e o roteiro deixados por Pasolini são ágeis e alegóricas e dialogam com os detalhes do cotidiano da vida do diretor tão bem recriados por Ferrara e que compõe o fio narrativo central do longa. Essas ficções dentro do relato do último dia de Pier Paolo Pasolini servem de parábola para Abel Ferrar esmiuçar e potencializar o pensamento e as ideias de seu personagem, bem como abordar temas caros à obra de Pasolini, como o sexo, a política e a religião. Fatores esses que também são centrais na obra do próprio Ferrara. O filme dentro do filme, o roteiro deixado por Pasolini é usado por Ferrara para ele filmar cenas que remetem ao cinema do diretor italiano bem como ao seu. A questão da força metafísica/católica que move o personagem em busca de um novo Messias que teria nascido em pleno século 20 é misturada com uma poderosa cena de uma orgia celebratória, em que Ferrara volta a filmar o sexo como pulsão básica do ser humano (da mesma forma que Pasolini via o sexo) e como um ato político – como Pasolini afirma em uma das entrevistas recriadas por Ferrara no filme. Mas o grande trunfo desse roteiro deixado e filmado por Ferrara é servir como simbologia para a conclusão do filme, uma simbologia que ao mesmo tempo comenta aquilo que Pasolini pensava e como via o mundo bem como funciona para uma bela homenagem ao diretor italiano, que transmite ao espectador o caráter imortal e transcendente da obra de Pier Paolo. Um detalhe importantíssimo nesse filme dentro do filme é que o protagonista é vivido por Ninetto Davoli, um dos atores fetiches de Pasolini e figura constante em inúmeros de seus filmes.

O fator da violência como a principal consequência e força motora da sociedade capitalista do consumo individualista é construída por Ferrara ao longo do filme com precisão e de maneira onipresente. Desde as notícias de assassinatos e de atos brutais que o diretor lê no jornal após acordar para seu último dia de vida, passando por diálogos em que essa agressividade constante da sociedade é mencionada e pelas entrevistas de Pasolini em que ele chama atenção para como o mundo caminha – guiado pelo capitalismo insano – para uma espiral de violência e brutalidade que irá conduzir o comportamento humano pelos tempos vindouros. Tudo isso culmina na impressionante sequência do assassinato de Pier Paolo Pasolini, nela vemos a característica explosão crua da violência de Abel Ferrara irromper na tela. A banalidade dos motivos que levam ao espancamento de Pasolini, a crueldade limítrofe de seus agressores, o mal estar de uma violência que surge das entranhas de um tecido social que a produz e não permite que agressores e agredidos nem sequer percebam de onde ela vem, tudo isso é potencializado pela encenação precisa de Ferrara, pelo movimento dos planos, pelos cortes, pela pouca luminosidade que gera ainda mais desconforto ao espectador diante de cena tão bruta. E isso culmina em imagens fortíssimas de Pasolini morto, coberto de sangue, jogado em meio a uma praia no meio da madrugada romana, um pedaço de carne sem vida, uma forma inerte. Pasolini foi profético não só em relação ao que vivemos nos dias de hoje, foi profético em relação a sua própria morte, aquilo de que seria vítima. Ferrara contrasta as imagens de Pasolini jogado morto em meio à praia deserta com trechos do filme dentro do filme em que a morte é abordada de forma alegórica e com as cenas finais, em que filma seu escritório, seus livros, seus textos sobre a escrivaninha e uma agenda deixada aberta. É nesse escritório, nesses livros, nessa máquina de escrever e nos compromissos da agenda, bem como em todos os filmes que fez, os livros que escreveu em tudo o que disse e repetiu em incontáveis entrevistas e depoimentos, que a obra e o pensamento de Pier Paolo Pasolini se mostram vivos e se tornam eternos.

Cobertura da 39ª Mostra de Cinema em São Paulo: breves críticas

Por Fernando Oriente

‘Um Dia Quente de Verão’ (A Brighter Summer Day) de Edward Yang – Taiwan, 1991

A Brighter Summer DayFilme monumento de Edward Yang exibido em uma linda cópia restaurada em 35 mm na Sala Cinemateca em uma das sessões que entram para a galeria das exibições antológicas na história da Mostra internacional de Cinema em São Paulo. Yang é um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo, autor de apenas oito filmes (o primeiro em 1982) em uma carreira brilhante interrompida por sua morte precoce aos 59 anos em 2007. Diretor de Taiwan, que ao lado Hou Hsiao-Hsien e um pouco antes de Tsai Ming-Liang, realizou nos anos 80 uma verdadeira injeção de talento e esplendor no cinema mundial e influenciou toda uma geração de cineastas pelos quatro cantos do mundo.

‘Um Dia Quente de Verão’ é um filme em que tudo funciona com perfeição. Uma mise-en-scéne arrebatadora no apuro com que cada um de seus detalhes é confeccionado, desde a composição dos quadros, a construção dos planos, a decupagem, o posicionamento e a movimentação de câmera, os cortes, tudo funciona no ritmo certo, sempre em função das modulações dramáticas, da evolução narrativa e na alta carga de sensorialidade no tratamento das texturas dos personagens sempre organicamente entrosados com as construções do tempo e do espaço e suas relações internas. Um filme que trabalha com naturalismo as cenas, os espaços, as emoções dos personagens e insere tudo isso dentro de um tempo preciso, o tempo da memória de Edward Yang e sua adolescência nos anos 60 em Taipei.

‘A Brighter Summer Day’ é um filme que faz do tempo passado não só uma reconstrução simbólica de um processo de formação de personagens e de uma nação em turbulência, mas que faz essa experiência do tempo vivido servir como comentários precisos sobre a condição humana, a melancolia, o amadurecimento, as frustrações e as impossibilidades que levam o ser humano a atos extremos ou a resignação angustiada sentida sob o peso do passar de um tempo implacável. Uma obra-prima monumental.

‘É o Amor’, de Paul Vecchiali – França, 2015

É o AmorA instabilidade do instante presente, a fugacidade e impossibilidade do sentimento e da existência no presente que faz com que todos vivam da nostalgia amarga de suas recordações, da tristeza resignada pelo que foi vivido e acabou, ficou distante no tempo, só se fixa na memória. Um presente em que é impossível de se viver plenamente pela sua fugacidade e instabilidade. Tudo isso está no centro de novo filmaço de Paul Vecchiali, que trabalha todas essas questões com uma leveza de encenação e evolução dramática de um frescor e uma criatividade pulsantes. Um filme de ternura, em que a melancolia é tratada de forma poética. Um longa construído em elipses, cenas que isoladamente já trazem uma infinidade de possibilidades dramáticas e de interpretação.

Paul Vecchiali, um dos grandes cineastas vivos, um veterano de 85 anos autor de um cinema de primeiríssima qualidade e originalidade, um encenador radical, que oscila entre a visceralidade de seus primeiros trabalhos nos anos 60 e 70, o radicalismo de seus filmes da década de 80 e agora chega a uma fase em que potencializa as sensações, a força da palavra e a poética do amor em suas incertezas, breves instantes de esperança e na resignação de sua não consumação.

Com seus mais de 80 anos de idade, Vecchiali mostra ousadia, inventividade, energia e talento cheios de pulsões de vida. Um velho mestre que filma com paixão e segurança, que arrisca, procura novos caminhos e se opõe radicalmente a esse cinema anódino de muitos jovens diretores arrogantes e incompetentes com seus filminhos medíocres, cheios de vícios modistas, cópias mal feitas de outros cineastas, um bando de moleques que buscam a poesia barata da inércia, o choque fácil, a dramaturgia rasa, a encenação engessada de uma geração de jovens que faz um cinema moribundo, enquanto um autor octogenário como Paul Vecchiali, a cada novo filme, não cansa de nos mostrar como o cinema pode ser cheio de vida e complexidade.

‘As Mil e Uma Noites’ (Volumes 1, 2 e 3), de Miguel Gomes – Portugal, 2015

As Mil e Uma NoitesNos três filmes que compõe as ‘As Mil e Uma Noites’ Miguel Gomes mescla documentário, fantasia, crítica social, narrativas ficcionais naturalistas, meta-cinema, drama, comédia, falso documentário tudo de maneira orgânica, indo de um registro ao outro, fundindo os diversos dispositivos e estruturas formais com uma fruição impressionante. Os três filmes são marcados pela quase onipresença da melancolia e da crítica social cética, mas sempre com irrupções de sarcasmo, ironia, humor negro, autocrítica. Uma obra que se desdobra em diversos fragmentos isolados, em narrativas autônomas que se relacionam e comentam umas as outras.

O conflito entre narrativas em que a paleta de cores desbotada e tendendo para o monocromático se intercalam com histórias onde as cores fortes e a claridade dominam o quadro. Todos os elementos são pensados para a composição máxima dos planos dentro de uma potencialização do que vemos na tela. O uso do scope amplia a força dos dramas, das narrativas, e do registro dos ambientes e espaços. O som, por meio da captação dos ruídos, das intensidades das falas, das músicas diegéticas ou não são fator que tornam mais forte a intensidade sensitiva com que o espectador recebe o filme.

No volume 1, ‘O Inquieto’, o filme começa com um impressionante travelling com a câmera em um barco a registrar um estaleiro que acaba de fechar, deixando inúmeros funcionários desempregados. O plano é acompanhado por depoimentos em off desses trabalhadores recém demitidos narrando suas experiências como trabalhadores do estaleiro e comentando o desemprego a que foram jogados. Miguel Gomes inicia seu ‘As Mil e Uma Noites’ de dentro da imensa crise social e econômica que assola Portugal. Esse pequeno documentário que abre o filme é interrompido pela presença do próprio Miguel Gomes e sua equipe em cena. Gomes diz que a crise, o caos e a miséria em que seu país foi jogado pelas medidas de austeridade impostas a Portugal pela União Européia tornam impossível seu trabalho como realizador de fazer um filme tanto documental sobre a crise quanto uma ficção em que possa construir histórias. Ele está em crise, ele reflete a crise de seu país e de seu povo em um bloqueio criativo. Desesperado Miguel Gomes/o realizador foge e abandona a equipe. Preso por um órgão do governo que o acusa de desperdiçar dinheiro destinado à produção de um filme em meio a um país em crise, Miguel e sua equipe pedem clemência e o diretor tem a ideia de dar lugar a Xerazade, que saída direto do clássico ‘As Mil e Uma Noites’, irá narrar histórias para o rei (o espectador) no seu lugar. As histórias, que irão se desenrolar nos três volumes do filme irão abordar direta e indiretamente a situação da crise portuguesa, contextualizando os dias de hoje com os processos históricos que levaram Portugal ao seu atual momento de colapso.

Esse recurso ousado de Miguel Gomes, que se diz incapaz de fazer um filme, mas que realiza uma obra em três partes, audaciosa e complexa por meio dos relatos Xerazade (ele mesmo, ou seja, o realizador) é um gesto ambicioso do diretor, que em mãos menos talentosas poderiam resultar em um enorme gesto de comiseração e pretensão, mas do qual ele se sai muito bem. O que poderia parecer ambicioso e arrogante se transforma em um filme belíssimo e complexo. Miguel joga um desafio, faz uma aposta arriscada, mas se dá muito bem. Seu talento é muito grande e tudo nos três volumes de ‘As Mil e Uma Noites’ funcionam perfeitamente para que ao final tenhamos um dos grandes filmes do ano, ou três grandes filmes do ano. (em breve o Tudo Vai Bem terá uma crítica longa que contemplará os três volumes de ‘As Mil e Uma noites).

‘Ralé’, de Helena Ignez – Brasil – 2015

RaléO novo longa de Helena Ignez é, antes de tudo, uma celebração, uma cerimônia de afirmação da vida pelas diferenças, pela arte, pelo desejo, pela força dos corpos, da Natureza, dos gestos e dos sentidos e pela utopia de uma realidade possível no deslocamento físico de sues personagens. Um filme libertário, construído de cenas isoladas, com autonomia de significação, que se ligam pelo discurso festivo de rejeição do mundo como espaço castrador e pela busca da autodeterminação dos sujeitos como corpos, mentes e espíritos livres. Um filme de movimentos, de cores, com muitas músicas e textos que propõem constantemente a reflexão, que procura situar o sujeito como agente de seu próprio destino, em comunhão com o espaço, as sensações e os desejos.

Helena se concentra na força da palavra, na presença pulsante dos corpos e na constante celebração da existência fora das regras, na negação dos valores morais conservadores. ‘Ralé’ começa e termina em São Paulo, com uma presença fortíssima do concreto, dos espaços urbanos e da relação entre eles e os personagens e de lá se desloca para uma fazenda no meio da Amazônia, onde um vasto grupo de personagens de diversos tipos participam da gravação de um filme manifesto, se encontram para conversar e discutir a vida, onde se unem para criar um espaço utópico de liberdade. Na fazenda mora o personagem de Ney Matogrosso, o Barão, que vai se casar com Marcelo, um dançarino. ‘Ralé’ usa da força simbólica dos atores, temos em cena verdadeiros ícones da arte no Brasil, que além de interpretarem personagens, trazem suas próprias histórias de vida como elemento de força simbólica ao longa. Temos mitos como a própria Helena Ignez, Ney Matogrosso e Zé Celso Martinez Corrêa. Ao lados deles, temos a força física, agressivamente libertária e auto determinante da mulher por meio da presença poderosa em cena das belíssimas Simone Spoladore, Djin Sganzerla e Barbara Vida, entre várias outras mulheres visualmente e conceitualmente fortes. Helena também promove uma celebração da diversidade sexual, colocando em cena personagens gays, trans e naturalizando com muita leveza a libertária presença simbólica da auto-afirmação das orientações sexuais como algo atávico ao ser humano. O prazer dos corpos e o desejo não podem jamais seguir regras, ‘Ralé’ aborda com muita leveza e organicamente o potencial revolucionário das liberdades sexuais.

A câmera de Helena é leve, sempre em movimentos ritmados se aproximado, contornando, recuando e reenquadrando personagens e suas relações entre si e com o espaço que os cercam. A imagem em digital cristalino potencializa a clareza dos movimentos internos do quadro, ressaltando gestos e cores em uma transparência de texturas que tornam o filme ágil, colorido, musical, em que tudo está claro para ser visto e sentido. ‘Ralé’ dialoga constantemente com elementos e movimentos fundamentais para arte brasileira. Temos trechos de filmes de Rogério Sganzerla, mais precisamente duas obras-primas do diretor feitas na época da Belair: ‘Sem Essa Aranha’ e ‘Copacabana Mon Amour’. Vemos Helena Ignez como Sonia Silk no filme de 1970 e ao mesmo tempo vemos Helena hoje. Ela usa as referências dos anos 60 e 70, mas as atualiza para o mundo de hoje, Helena Ignez traz ao mesmo tempo todo um repertório encravado no melhor da arte feita no Brasil e se mostra coerente com os dias de hoje, sabe aproximar épocas e referências para discutir o presente com o peso das referências do passado. Textos de Brecht lidos por Zé Celso, Ney Matogrosso cantando com todo o peso simbólico que sua presença em cena representa, são esses fatores icônicos que Helena mescla com as questões atuais, com a presença dos jovens, das mulheres que exalam poder na beleza de seus corpos e mentes, na força de seus olhares e gestos, nos casais gays, na juíza trans que celebra o casamento.

‘Ralé’, com sua liberdade de encanação e sua estrutura dramática fragmentada na montagem de cenas independentes (mas que dialogam constantemente entre si) mantém-se sempre no campo do simbólico, nas forças significantes de suas cenas, seus tipos e na frontalidade transparente das imagens. Um filme leve, despojado em sua complexidade e que busca sempre “descolonizar o pensamento”, como é dito pela própria personagem de Helena numa das cenas fundamentais do longa.