Por Fernando Oriente
O novo filme de Nanni Moretti traz quase todos os elementos e características que fazem do cinema do diretor um dos melhores do mundo. Moretti é não apenas um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, mas um dos melhores cineastas da história – e não há nenhum exagero nessa afirmação. Seu cinema ímpar, extremamente pessoal, sensível, aberto ao mundo e coerente com seus discursos e seus processos estéticos é ao mesmo tempo político, existencial, reflexivo, poético, crítico e sarcástico, sem abdicar do humor, da melancolia e da ternura – e a ternura em seus filmes é desconcertante, porque é totalmente orgânica à matéria de seu cinema, desprovida de sentimentalismos e repleta de texturas. ‘Mia Madre’ é mais uma reflexão de Moretti sobre o ser humano, sobre o estar no mundo, sobre os detalhes e as incertezas da existência. Com uma sofisticada construção formal (ao mesmo tempo simples e objetiva), o cineasta vai tecendo seu discurso em imagens e planos que atingem o espectador de frente, o fazendo pensar, sentir, se projetar, olhar para si mesmo e para o mundo.
O filme acompanha a diretora de cinema Margherita, uma mulher divorciada, mãe de uma adolescente (que vive com o ex-marido) e que está com sua mãe internada em um hospital sofrendo de uma doença da qual não irá resistir. Moretti inicia seu longa com sua protagonista mergulhada num turbilhão: ela se separa do namorado, trabalha nas filmagens de um novo filme em meio aos conflitos normais de um set de filmagens que são agravados pela presença de um ator americano no elenco que, num misto de arrogância e limitações, torna as rodagens ainda mais tumultuadas. Mas é a morte iminente de sua mãe que a joga em uma viagem interior que faz com que Margherita repasse sua vida, reflita sobre o que viveu, o que perdeu e conquistou bem como o lugar que ocupa no mundo. Ela questiona seu papel como cineasta, como mãe, como filha; como mulher. Pensa nos relacionamentos que teve e se acabaram, no que construiu e como é incapaz de traduzir tudo o que a cerca, suas memórias, sua identidade.
Em suma, Moretti faz sua personagem se deslocar entre ações e obrigações com uma constante sensação de deslocamento, de dúvida. Trata-se de uma típica personagem de Nanni Moretti, alguém que é sempre incompleto, que traz em sua essência complexa todas as incertezas e incapacidades de compreender plenamente o viver, o mundo, os outros e a si mesmo, mas que ao mesmo tempo são pessoas cheias de vida, de uma energia humana visceral, de ternura, de amores e raivas, de esperanças e frustrações. Os tipos de Moretti não têm respostas, vivem de suposições, de tentativas, acertos e erros, de pequenos vislumbres do que acontece dentro deles e nos ambientes que os cercam, bem como com aqueles com que se relacionam. Para Nanni Moretti, a instabilidade da vida é o condicionante da existência e o que possibilita a beleza, a ternura e o amor.
Quem acompanha Margherita em suas visitas ao hospital e que passa a maior parte do tempo com ela quando ela não está trabalhando é seu irmão Giovanni (interpretado pelo próprio Moretti). Esse personagem traz mais um elemento característico do cinema do diretor, a importância dramática e complexa dos coadjuvantes, aqueles com quem os protagonistas se relacionam em seu processo de mediação com o mundo. Giovanni é uma extensão de Margherita, sua aparente serenidade esconde uma maior resignação que ele tem com a vida. Solitário, prestes a abandonar o emprego por não querer continuar vivendo dentro de algo que não lhe acrescenta nada, Giovanni transparece a maturidade de alguém que entende que a vida é feita de frustrações, mas que essas não impedem ninguém de seguir a diante e o que está por vir é o incerto, mas viver no incerto e dele tirar o que for possível é que nos resta, é o que move os seres, é o que faz a existência seguir. Essa falsa resignação dele não é algo meramente melancólico, a vida se afirma para Nanni Moretti quando aceitamos nossos destinos em aberto, quando perdemos a ilusão de onipotência e descobrimos que não temos respostas, mas que viver é estar sempre entre perdas e novas procuras, na beleza dos pequenos gestos e momentos, nas trocas com o outro, entre o que nos é negado e o que podemos fazer a partir disso.
A perda, a morte, as rupturas entre as pessoas e entre os personagens e suas próprias crenças e ideologias é tema comum e caríssimo dentro da obra de Nanni Moretti. Só existimos quando lidamos com essas perdas, quando tomamos consciência do quanto o que temos, os que amamos, o que acreditamos e o que construímos são elementos frágeis, que podem desaparecer a qualquer momento. Os mecanismos com que lidamos com essas perdas, assimilamos e passamos pelo processo do luto é o que permite que possamos seguir em frente, talvez mais fortes, nunca capazes de superamos por inteiro. Mas resta o ser humano. Restamos nós (o que já é algo imenso) e o que vamos fazer daqui pra frente. O amanhã está aí e tem que ser vivido.
‘Mia Madre’ mescla diversos registros, vamos de uma sequência do filme dentro filme para uma cena que segue a diegese central do longa. Um sonho de Margherita é encenado para logo ser interrompido pela narrativa do tempo presente. Recordações da personagem se misturam com momentos da realidade de sua vida que a traz de volta aos dilemas desse presente incerto em que está inserida. Nanni Moretti vai de um registro ao outro com uma naturalidade impressionante, domina a evolução narrativa e as modulações dramáticas com uma fluidez cheia de ternura e que abre constantes arestas para reflexão, questionamentos e escancara a fragilidade desse estar no mundo do ser humano comum.
A encenação evolvente é a mais direta possível, mas nunca desprovida de um domínio cênico preciso de Moretti que beira o sublime da reconstrução sofisticada e aberta do real pela ótica particularíssima do diretor. Os closes nos rostos dos personagens valem por sequências inteiras, os silêncios entre os irmãos, as questões cotidianas, as conversas banais e o carinho dos assuntos corriqueiros que conversam com a mãe em estado terminal, os conflitos de Margherita no set de filmagem, as caminhadas dos personagens pelos corredores do hospital e pelas ruas de Roma, seguidas por elegantes travellings, as aproximações e recuos de câmera, os ângulos abertos e os posicionamentos de câmera que contextualizam os tipos dentro dos espaços, as frases faladas e interrompidas, o entrar e sair de quadro dos atores, tudo é pensado e decupado para dar potência máxima ao filme, a cada plano, a cada cena.
Ao mesmo tempo em que os personagens são incapazes de se perceberem em sua totalidade, também não conseguem nunca apreender o outro em sua completude, pois no cinema de Moretti não existem seres humanos completos, existem homens e mulheres reais; humanos, demasiadamente humanos – e que entendem como tal. Entender e respeitar o outro e suas limitações é saber se posicionar em relação a si mesmo. Homens que representam todos os homens, mulheres que representam todas as mulheres, esse são os personagens que habitam e movem a obra de Moretti. São fragmentos de nós mesmos que vemos nos tipos de ‘Mia Madre’, bem como em todos os filmes de Nanni Moretti.
Os homens e as mulheres de Nanni Moretti são tipos políticos, conscientes ou não, eles são agentes dessa superestrutura que move o mundo, engrenagens que podem ser achatadas pelo sistema, pelas normas instituídas, mas possuidores de pulsões, de gestos, ações e presenças que os fazem se afirmar como atuantes ativos na sociedade. A política, para Moretti, está dentro de nós, nos gestos e nas atitudes. Nos erros e acertos, nas dúvidas e nos questionamentos, nos fracassos e na constante energia vital que nos mantém ativos e altivos. Nanni Moretti se assume como um diretor político, seja quando seu personagem na obra-prima ‘Palombella Rossa’ (1989) repete a pergunta “O que é ser comunista hoje?”, seja quando o protagonista de ‘O Crocodilo’ (2006) se questiona sobre como e o que representa Silvio Berlusconi no poder na Itália, sendo que ele mesmo havia votado em Berlusconi, seja quando seu papa em ‘Habemus Papam’ (2011) se interroga sobre sua capacidade de ser líder de uma organização política tão forte quanto a Igreja Católica. Mas também é político quando acompanha o cotiado da vida da protagonista em ‘Bianca’ (1984), a dor maior da perda de um filho adolescente e a necessidade de se seguir adiante em ‘O Quarto do Filho’ (2001), nos momentos em que interpreta a si mesmo nos filmes diário ‘Caro Diário’ (1993) e ‘Aprile’ (1998), quando trata dos conflitos das relações entre casais, dos confrontos de um set de filmagem, nos momentos em que encena o dia a dia de gente comum ou quando simplesmente direciona sua câmera para as pessoas no mundo, em meios aos espaços, em meio a seus deslocamentos, explosões de raiva, tristeza, alegria ou em seus instantesde dor, prostração e imobilidade.
Os filmes de Moretti são interrompidos, ele nunca promove conclusões fáceis, desfechos mirabolantes ou expiadores. Seus longas terminam em aberto, com os personagem seguindo, com que eles têm, com o que lhes restou, com seus sonhos fraturados, suas perdas e com uma esperança que vem sempre de um misto de ternura, afeto e crença naquilo que nos faz humanos: a dúvida, os receios, a superação e a necessidade de ir adiante. O sorriso em meio ao rosto cheio de lágrimas de Margherita no último plano de ‘Mia Madre’ é um exemplo belíssimo disso.