‘As Mil e Uma Noites’ (Volumes 1, 2 e 3), de Miguel Gomes

Por Fernando Oriente

As Mil e Uma NoitesOs três volumes de ‘As Mil e Uma noites’ são filmes separados, mas partes distintas de uma obra única. Os três segmentos se relacionam entre si de uma maneira muito mais intensa e imbricada do que uma simples trilogia. São filmes que condicionam um ao outro, dialogam constantemente entre si e partem de um mesmo enunciado e se deslocam para o desfecho de um arco narrativo-simbólico que se inicia no volume 1 e é interrompido, cheio de possibilidades em aberto, ao término do volume 3.

Em ‘As Mil e Uma Noites’ Miguel Gomes mescla documentário, fantasia, crítica social, narrativas ficcionais naturalistas, meta-cinema, drama, comédia, falso documentário tudo de maneira orgânica, indo de um registro ao outro, fundindo os diversos dispositivos e estruturas formais com uma fruição calculada e cadenciada. Os três filmes são marcados pela quase onipresença da melancolia e da crítica social cética, mas sempre com irrupções de sarcasmo, ironia, humor negro, autocrítica. Uma obra que se desdobra em diversos fragmentos isolados, em narrativas autônomas que se relacionam e comentam umas as outras. O uso das músicas, a presença marcante dos diferentes registros de luz e luminosidade, a variação entre planos estáticos, travellings, panorâmicas e closes, o trabalho de composição de planos nas bordas do quadro, tudo é usado por Gomes para tecer essa obra ambiciosa, dividida em três atos.

O conflito entre narrativas em que a paleta de cores desbotada e tendendo para o monocromático se intercalam com histórias onde as cores fortes e a claridade dominam o quadro. Todos os elementos são pensados para a composição máxima dos planos dentro de uma potencialização do que vemos na tela. O uso do scope amplia a arestas e relação espacial e temporal dos dramas, das narrativas, e do registro dos ambientes e situações. O som, por meio da captação dos ruídos, das intensidades das falas, das músicas (diegéticas ou não) são fator que tornam mais forte a intensidade sensitiva com que o espectador recebe o filme.

No volume 1, ‘O Inquieto’, o filme começa com um impressionante travelling com a câmera em um barco a registrar um estaleiro que acaba de fechar, deixando inúmeros funcionários desempregados. O plano é acompanhado por depoimentos em off desses trabalhadores recém demitidos narrando suas experiências como trabalhadores do estaleiro e comentando suas histórias de vida e o desemprego a que foram jogados. Miguel Gomes inicia seu ‘As Mil e Uma Noites’ de dentro da imensa crise social e econômica que assola Portugal. Esse pequeno documentário que abre o filme é interrompido pela presença do próprio Miguel Gomes e sua equipe em cena (característica comum aos filmes do diretor, presentes em seu melhor longa até hoje, ‘Aquela querido Mês de Agosto’ e em alguns de seus curtas). Gomes diz que a crise, o caos e a miséria em que seu país foi jogado pelas medidas de austeridade impostas a Portugal pela União Européia tornam impossível seu trabalho como realizador de fazer um filme tanto documental sobre a crise quanto uma ficção em que possa construir histórias. Ele está em crise, ele reflete a crise de seu país e de seu povo em um bloqueio criativo. Desesperado Miguel Gomes/o realizador foge e abandona a equipe. Preso por um órgão do governo que o acusa de desperdiçar dinheiro destinado à produção de um filme em meio a um país em crise, Miguel e sua equipe pedem clemência e o diretor tem a ideia de dar lugar a Xerazade, que saída direto do clássico ‘As Mil e Uma Noites’, irá narrar histórias para o rei (o espectador) no seu lugar. As histórias, que irão se desenrolar nos três volumes do filme irão abordar direta e indiretamente a situação da crise portuguesa, contextualizando os dias de hoje com os processos históricos que levaram Portugal ao seu atual momento de colapso.

Esse recurso ousado de Miguel Gomes, que se diz incapaz de fazer um filme, mas que realiza uma obra em três partes, audaciosa e complexa por meio dos relatos Xerazade (ele mesmo, ou seja, o realizador) é um gesto ambicioso do diretor, que em mãos menos talentosas poderiam resultar em um enorme gesto de comiseração e arrogância, mas do qual ele se sai bem. O que poderia parecer prepotente e falacioso se transforma em um belo filme, apesar de altos e baixos – característica comum a imensa maioria de filmes em episódios. Miguel joga um desafio, faz uma aposta arriscada, mas se dá bem. Seu talento é grande e os três volumes de ‘As Mil e Uma Noites’ funcionam para que ao final tenhamos um belo filme (ou três belos filmes).

‘As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto’

Após a introdução pelo documentário e a alegoria metalinguística da crise do realizador e a introdução de Xerazade começam as serem narradas pela princesa as histórias que formarão os três volumes do filme. Como todo filme em episódios, por mais que esses se relacionem uns com os outros, temos episódios melhores e outros menores, mas no filme de Miguel Gomes mesmo os episódios menos felizes tem algo de interessante. A primeira história narrada no volume 1 é um dos pontos altos do projeto, com uma aguda crítica social, composta por elementos fantásticos, escracha os governantes portugueses e europeus em meio as suas decisões em relação a medidas de austeridade. Associando poder político-econômico com virilidade sexual, Gomes debocha dos políticos ao apresentar um grupo de burocratas que andam sem rumo, portanto ereções constantes incapazes de serem aliviadas. Visualmente forte, com um tom narrativo ao mesmo tempo cínico e cruel, Gomes reduz esses políticos a meros imbecis que vagam com seus paus duros incapazes de fazer nada a não ser esconderem suas ereções da mesma maneira que escondem e dissimulam suas políticas assassinas de austeridade, arrochos e sua cartilha capitalista sórdida de preceitos neoliberais.

As outras duas histórias que compõem o volume 1 variam entre o registro mais naturalista também com elementos fantásticos do segundo conto, com seu galo falante que acorda mais cedo para avisar os humanos das tragédias que estão por vir (esse episódio sendo um dos mais fracos de todos) e termina com um registro direto, em que o drama toma conta da narrativa, com momentos de falso documentário e muita melancolia da terceira história. Alguns dos depoimentos que os desempregados dão no centro de assistência ao trabalhador no qual trabalha o protagonista dessa terceira história (filmados de maneira direta e documental por Miguel Gomes, privilegiando a tragédia do desemprego pela força dos relatos orais e as expressões e gestos corporais que os trabalhadores assumem durante o processo do relato) estão entre os pontos altos de toda ‘As Mil e Uma Noites’.

‘As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado’

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O volume 2 conta com três histórias, e se mantém apenas no registro desses três contos. No primeiro segmento, um velho que acaba de matar a mulher e a filha, se esconde pelos campos vivendo em contato direto com a natureza, sendo ajudado por poucos moradores da região enquanto é perseguido por policiais e drones. Ao fazer do homem que só se deixa capturar quando quer, que engana as autoridades uma espécie de herói para a população da região, Gomes destila seu sarcasmo ao mostrar que em uma sociedade no caos, abandonada por seus representantes, mesmo um assassino passa a ser alguém de valor pelo simples fato de se opor às normas e enfrentar um sistema incapaz de tirar o povo de um processo espiral de empobrecimento e miséria crescentes. Gomes filma essa história com uma câmera que observa e valoriza os gestos do fugitivo, seus silêncios, a força de sua relação com a amplitude dos espaços.

O segundo conto do volume 2 é o que tem o maior apelo estético do filme. Um julgamento estilizado, realizado numa espécie de teatro grego ao ar livre onde uma juíza que julga um crime descobre que cada crime que julga leva a novos crimes, onde culpados se apresentam um após o outro, em que vítimas passam a culpados. Miguel Gomes faz uma alegoria de uma sociedade sem inocentes, em que o crime, do mais banal ao mais sério, tornou-se um meio de sobrevivência para um país que já perdeu o rumo e os códigos éticos foram implodidos. Alegorias, fábulas, mitologias, elementos e personagens fantásticos tudo é mesclado nessa história com vigor e uma fruição narrativa envolvente por Miguel Gomes. Uma encenação precisa e criativa, solidificada numa decupagem rigorosa e uma construção de cenas fortíssima que sempre se expande para as tensões que se seguem fazem dessa história um verdadeiro tour de force dramático (mas repleto de tons fantásticos), cheio de cinismo e melancolia, um retrato ácido de uma realidade tornada ainda mais forte pelos dispositivos do cinema que Gomes domina bem.

A terceira história, a que fecha o volume 2 é usada por Miguel Gomes para traçar um painel, uma radiografia de diversos moradores de uma bairro na periferia de Lisboa onde pessoas diferentes parecem padecer todas da mesma prostração e da mesma apatia angustiante de vidas anódinas, de existências sofridas, sem horizonte de esperança e frustradas. Com um tom ao mesmo tempo de um observador atento dos detalhes, dos rostos, e ações de diversos personagens, bem como uma captação precisa dos espaços e ambientes onde essas pessoas vivem e sobrevivem, o conto faz um painel da melancolia e da impossibilidade de reação dos sujeitos. A narrativa é conduzida pela presença de um cachorro, que surge no bairro e vai mudando de dono. A parte em que Miguel Gomes passeia pelas micro-histórias de diversos moradores é poderosa e o uso das canções bem como a maneira como o diretor consegue capturar os climas e sensações dos tipos e dos ambientes é um dos pontos altos e mais poderosos do filme. A cena da fumaça que sai pela janela e a câmera a acompanha em seu movimento no ar até dissipar-se e revelar as fachadas dos prédios com suas luzes difusas numa noite qualquer, tudo ao som de ‘Say You, Say Me’ de Lionel Ritchie, é um dos planos mais belos já filmados por Miguel Gomes, em que a força da encenação usa o sentimentalismo como catalisador de potência e foge da armadilha de cair no mero piegas – problema muito comum no cinema contemporâneo quando diretores escolhem usar baladas anos 70 e 80 como comentários ou fugas dramáticas na banda sonora.

‘As Mil e Uma Noites: Volume 3 – O Encantado’

As Mil e Uma Noites_Volume 3No início do terceiro volume as narrativas são interrompidas e acompanhamos Xerazade – angustiada e com medo do rei, ao mesmo tempo em que sente uma vontade enorme de conhecer o mundo que nunca viu por passar seus dias trancada no castelo – sair em uma jornada sem rumo para passear e interagir com os espaços e os habitantes do Reino de Bagdá. Durante toda a pequena jornada de Xerazade, Miguel Gomes faz sua personagem interagir com diferentes tipos, visitar lugares belos, se envolver com homens sedutores, conhecer tipos míticos e exóticos, ver um mundo cheio de cores que pulsa energia e beleza. Ela flerta com instantes de liberdade em um mundo idealizado, mas em breve é convencida por seu pai a retornar ao palácio e reiniciar suas narrativas ao rei. Esse momento de idílio, Miguel Gomes filma com cores carregadas, uma luz forte e dourada que contamina todos os planos e onde a beleza dos corpos e da natureza dão um refresco para as tragédias e a melancolia que dominam as histórias que vínhamos acompanhando até aqui.

O resto do volume 3 é dominado por uma única história, interrompida brevemente para a narração de um protesto de trabalhadores. O protesto é real e foi filmado de maneira documental e direta por Miguel Gomes. Essa quebra serve para tirar de novo espectador da zona ficcional é introduzi-lo na realidade mais crua e direta da situação portuguesa, que é mote central do filme. De volta ao segmento final do volume 3, que se desenrola por todo o restante do longa e é interrompido (fechando ‘As Mil e Uma Notes’ de Gomes). Esse conto não é narrado em off por Xerazade, como todos haviam sido até aqui e acompanhamos a discrição dos fatos e personagens por meio de textos inseridos na tela (que se tornam cada vez mais escassos com o desenrolar da narrativa), como cartelas do cinema mudo sobrepostas às imagens que se acumulam diante de nós.

O tom é o mais seco possível e num registro distanciado, em que Miguel Gomes capta fragmentos de diálogos, sobrepõe narrativas lacunares umas as outras, vai de um personagem ao seguinte para depois retomá-los em seus pequenos gestos, ações e momentos de prostração. O diretor conta, por meio de pedaços da história de vida de cada um deles (unidos por serem todos criadores de passarinhos e participarem de competições de cantos desses pássaros) vários momentos da história de Portugal e suas transformações, desde a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, passando pela Revolução dos Cravos e os processos de urbanização que remodelaram bairros inteiros com a construção de horrorosos conjuntos de habitação social (nada mais do que blocos e mais blocos de prédios com seus apartamentos minúsculos onde os tipos mais diversos vivem suas vidas de limitações e tentam sobreviver à precariedade e a melancolia existencial) até o momento da crise dos dias de hoje.

Esse conto, o mais melancólico de todos, é carregado pelo registro que Miguel Gomes faz dos rostos de seus personagens, faces marcadas pelo peso da vida, pela sensação de impotência existencial, pelo contentamento fugaz de brincadeiras com passarinhos, bem como dos espaços em que eles se inserem e interagem, uma paisagem que os molda em seus sentimentos fugidios e a distância e o peso do tempo se faz sentir com frequência constante. Essa narrativa fecha o filme, ela é interrompida na cena final, um longo e amargo travelling que acompanha um velho criador de pássaros caminhando sem destino certo por uma estrada de terra no interior de Portugal. O plano é interrompido, o filme é interrompido em meio à caminhada desolada do velho, um sobrevivente da história recente de Portugal, uma testemunha de transformações, de momentos de esperança e do atual estado de colapso da sociedade.

Fecha-se o arco proposto pelo próprio cineasta como personagem no início do volume 1. Interrompe-se uma sequência de histórias, de alegorias, de fábulas, de dramas. Após mais de seis horas, divididas em três volumes, Miguel Gomes deixa para o espectador um discurso aberto, um relato fragmentado e multifacetado de melancolia. Um registro ácido, fabular, sarcástico e autocrítico do estado do mundo visto pelo microcosmo português.

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