Por Fernando Oriente
A obra de Pier Paolo Pasolini, num sentido que vai muito além de seus filmes e envolve seus textos, suas entrevistas, livros, seu pensamento e sua postura como intelectual e militante político, soa muito próxima do universo de Abel Ferrara. Tudo aquilo que Pasolini via no mundo, na sociedade e nas estruturas que o cercavam se tornaram material para o cinema de Ferrara. A violência crescente na sociedade – em todas as esferas de poder bem como na miséria – que Pasolini denunciava e criticava, principalmente em seus últimos anos de vida, é elemento constante no cinema de Abel Ferrara, desde seus primeiros trabalhos no final dos anos 70 e início da década de 80 até os dias de hoje. Uma violência bruta, cega e banal que nada mais é do que fruto de uma sociedade alienada, de seres humanos desprovidos de subjetividades críticas, vítimas de uma estrutura capitalista que os moldava desde a escola para serem consumidores vorazes, desejando compulsivamente sempre adquirir mais, impedidos de pensar e refletir por si próprios, individualistas e sempre impelidos a temerem o outro, estarem sempre prontos para agredir quem estivesse ao seu lado para continuar sua jornada de consumistas autômatos sem a menor consideração pela vida e vítimas constantes de um medo atávico.
Ao adaptar o último dia de vida de Pasolini em seu filme, Ferrara constrói um elo entre o pensamento do cineasta e escritor italiano (e o vazio que ele deixou ao morrer tão cedo) com os dias de hoje, torna atualíssimas as ideias e as premonições de Pasolini sobre o período sombrio que aguardava a sociedade. Só que Ferrara faz seu longa muito mais complexo e dialético (em diálogo constante com a presença da obra e do pensamento de Pasolini) ao inserir, durante sua encenação do último dia de vida de Pier Paolo Pasolini, fragmentos de entrevistas, trechos de textos e um roteiro de um filme que ele nunca chegou a realizar. Ferrara introduz esses elementos de maneira variada. Encena pedaços de um conto de Pasolini, filma trechos desse roteiro escrito por ele (criando um filme dentro do filme) e recria fragmentos de duas das últimas entrevistas dadas por Pasolini antes de sua morte. A partir desses processos, Abel Ferrara materializa o pensamento e as ideias, bem como a arte de Pier Paolo Pasolini na tela, foge da mera descrição e entra no campo da recriação por meio da imagem, usa o cinema para potencializar o pensamento de Pasolini e torna seu filme muito mais dinâmico e complexo.
O Pasolini que vemos na tela, numa incorporação impressionante de Willem Dafoe, é um homem em constante movimento, se desloca de uma tarefa a outra, escreve, lê, dá entrevistas, almoça com a mãe e a sobrinha, recebe a visita de uma amiga atriz, sai nas ruas em seu carro e se desloca por Roma, indo de um jantar com atores para discutir seu próximo filme até o encontro com o garoto de programa que irá levá-lo ao seu assassinato. Só que o movimento do Pasolini de Ferrara não é apenas físico, seus diálogos, seus textos, suas conversas, seus gestos e olhares, bem como suas expressões quando em silêncio mostram um homem mergulhado em seus pensamentos, em suas ideias e um constante processo de observação do mundo, reflexão e criação intelectual. Esse movimento físico e mental do cineasta italiano é encenado pela constante movimentação da câmera de Ferrara, que usa pouquíssimos planos estáticos e faz do movimento, não só o da câmera, mas aquele interno aos planos, uma constante, uma força condutora de seu protagonista e de seu fluxo mental, bem como destaca o valor material das ações, encontros e deslocamentos do personagem. Esse movimento é característica marcante em toda a obra de Ferrara e em ‘Pasolini’ temos novamente o exemplo do vigor e da frontalidade da mise-en-scéne ímpar de Abel Ferrara. Embora o pensamento, a visão de mundo e muitos dos conceitos desenvolvidos por Pasolini estejam presentes por todo o longa – como também se encontram dentro do universo que Ferrara retrata em diversas de suas obras – ‘Pasolini’ é um filme de Abel Ferrara, com suas características, estruturas fílmicas e assinatura.
Em apenas pouco mais de 80 minutos, Ferrara constrói e decupa seu filme dentro de uma síntese sólida dos diversos elementos que formam o discurso de ‘Pasolini’. As cenas em que ele filma o conto e o roteiro deixados por Pasolini são ágeis e alegóricas e dialogam com os detalhes do cotidiano da vida do diretor tão bem recriados por Ferrara e que compõe o fio narrativo central do longa. Essas ficções dentro do relato do último dia de Pier Paolo Pasolini servem de parábola para Abel Ferrar esmiuçar e potencializar o pensamento e as ideias de seu personagem, bem como abordar temas caros à obra de Pasolini, como o sexo, a política e a religião. Fatores esses que também são centrais na obra do próprio Ferrara. O filme dentro do filme, o roteiro deixado por Pasolini é usado por Ferrara para ele filmar cenas que remetem ao cinema do diretor italiano bem como ao seu. A questão da força metafísica/católica que move o personagem em busca de um novo Messias que teria nascido em pleno século 20 é misturada com uma poderosa cena de uma orgia celebratória, em que Ferrara volta a filmar o sexo como pulsão básica do ser humano (da mesma forma que Pasolini via o sexo) e como um ato político – como Pasolini afirma em uma das entrevistas recriadas por Ferrara no filme. Mas o grande trunfo desse roteiro deixado e filmado por Ferrara é servir como simbologia para a conclusão do filme, uma simbologia que ao mesmo tempo comenta aquilo que Pasolini pensava e como via o mundo bem como funciona para uma bela homenagem ao diretor italiano, que transmite ao espectador o caráter imortal e transcendente da obra de Pier Paolo. Um detalhe importantíssimo nesse filme dentro do filme é que o protagonista é vivido por Ninetto Davoli, um dos atores fetiches de Pasolini e figura constante em inúmeros de seus filmes.
O fator da violência como a principal consequência e força motora da sociedade capitalista do consumo individualista é construída por Ferrara ao longo do filme com precisão e de maneira onipresente. Desde as notícias de assassinatos e de atos brutais que o diretor lê no jornal após acordar para seu último dia de vida, passando por diálogos em que essa agressividade constante da sociedade é mencionada e pelas entrevistas de Pasolini em que ele chama atenção para como o mundo caminha – guiado pelo capitalismo insano – para uma espiral de violência e brutalidade que irá conduzir o comportamento humano pelos tempos vindouros. Tudo isso culmina na impressionante sequência do assassinato de Pier Paolo Pasolini, nela vemos a característica explosão crua da violência de Abel Ferrara irromper na tela. A banalidade dos motivos que levam ao espancamento de Pasolini, a crueldade limítrofe de seus agressores, o mal estar de uma violência que surge das entranhas de um tecido social que a produz e não permite que agressores e agredidos nem sequer percebam de onde ela vem, tudo isso é potencializado pela encenação precisa de Ferrara, pelo movimento dos planos, pelos cortes, pela pouca luminosidade que gera ainda mais desconforto ao espectador diante de cena tão bruta. E isso culmina em imagens fortíssimas de Pasolini morto, coberto de sangue, jogado em meio a uma praia no meio da madrugada romana, um pedaço de carne sem vida, uma forma inerte. Pasolini foi profético não só em relação ao que vivemos nos dias de hoje, foi profético em relação a sua própria morte, aquilo de que seria vítima. Ferrara contrasta as imagens de Pasolini jogado morto em meio à praia deserta com trechos do filme dentro do filme em que a morte é abordada de forma alegórica e com as cenas finais, em que filma seu escritório, seus livros, seus textos sobre a escrivaninha e uma agenda deixada aberta. É nesse escritório, nesses livros, nessa máquina de escrever e nos compromissos da agenda, bem como em todos os filmes que fez, os livros que escreveu em tudo o que disse e repetiu em incontáveis entrevistas e depoimentos, que a obra e o pensamento de Pier Paolo Pasolini se mostram vivos e se tornam eternos.