Críticas

D.W. Griffith: ‘O Nascimento de Uma Nação’ (1915) e ‘Intolerância’ (1916)

Por Fernando Oriente

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

Impressiona que em apenas 20 anos desde seu surgimento oficial, o cinema tenha sido capaz de produzir duas obras tão intensas, com a linguagem cinematográfica já tão estabelecida e com elementos formais e narrativos em sintonia com aquilo que potencializa a força única que a encenação de um filme pode ter. Estamos falando aqui de ‘O Nascimento de uma Nação’, de 1915 e ‘Intolerância’, de 1916, ambos dirigidos por D.W. Griffith. Muito mais do que o mito em torno de sua figura, do homem que desenvolveu os poderes da montagem paralela, do pai do cinema narrativo ou mesmo do fundador do cinema clássico, Griffith era um exímio diretor de cinema e um encenador primoroso, e muitos de seus filmes provam isso. Sua obra tem uma força, uma beleza e um impacto no espectador que não diminuíram ao longo do tempo; seu trabalho não serve apenas para explicar a gênese da arte cinematográfica, sua verdadeira força está no quanto seus filmes eram bons. Um cinema narrativo direto, que colocava as ações em primeiro lugar, que conduzia as modulações dramáticas com maestria, que criava suspenses, cenas de ação impactantes, dramas comoventes, instantes cômicos e contava histórias de maneira objetiva e dentro de uma evolução narrativa concebida em ritmo visceral. Griffith não queria, na grande maioria de seus filmes, propor discursos e nem subtextos, queria apenas narrar histórias, criar imagens espetaculares e provocar emoção no espectador.

O diretor começou a filmar em 1908 e fez mais de 500 filmes até 1930, entre curtas, médias e longas. Dirigiu obras belíssimas como ‘Judite de Betulia’ (1914), ‘O Lírio Partido’ (1919) e ‘Órfãs da Tempestade’ (1921), entre muitos outros que nitidamente influenciaram grandes cineastas ao longo da história, de John Ford, Cecil B. DeMille, King Vidor e Vincente Minnelli a Sergei Eisenstein, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi. Mas esse texto vai se debruçar sobre seus dois principais e mais famosos épicos: ‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, feitos um na sequência do outro, no prazo de um ano. Dois longas de extensa duração, orçamentos altíssimos para a época e que contaram com muito investimento na construção de cenários majestosos, figurinos sofisticados, muitos extras e um primoroso trabalho de direção de arte.

D.W. Griffith

D.W. Griffith

Nos dois filmes fica claro o domínio técnico e a visão total de cinema de Griffith. A impressionante competência de compor detalhadamente os quadros em sua totalidade, a precisa escolha dos enquadramentos (com destaque para a notável habilidade em usar a força dramática, a beleza e as potências dos close-ups), a eficácia dos efeitos de montagem, a funcionalidade dos cortes, a amarração dialética entre os planos, a capacidade de extrair o máximo de significação das expressões dos rostos dos atores, o uso pontual e destacado dos movimentos de câmera e o apuro e a intensidade que Griffith impunha à movimentação, tanto dentro de um mesmo plano, quanto na relação direta entre a sucessão inquieta de diferentes takes.

O diretor alternava planos abertos recheados de ação intensa e movimento com sequências filmadas em primeiro plano, closes e ainda se utilizava da relativa capacidade da profundidade de campo que as técnicas da época permitiam para ampliar os espaços de ação dentro do quadro. Griffith foi um dos pioneiros a explorar as modulações dramáticas que os efeitos e variações da luz produziam dentro das cenas, para isso trabalhava tanto com a luz natural e os refletores, além de ser um dos primeiros a perceber como o uso de rebatedores poderia influenciar a função da luz na fotografia de um filme.

Todos esses recursos serviam para Griffith obter seu principal objetivo: construir narrativas fortes que evoluíssem de maneira intensa para explorar o máximo a força das histórias que queria contar por meio da linguagem cinematográfica. Porque em Griffith já se torna óbvio o quanto o cinema é uma linguagem própria e a força que essa linguagem tem.

Dois épicos

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

‘O Nascimento de Uma Nação’ tem três momentos histórico-narrativos centrais, que envolvem duas famílias amigas, uma do norte dos EUA a outra do sul. O primeiro é a Guerra Civil Americana iniciada em 1860, seguida pelo assassinato de Abraham Lincoln e o último é o surgimento da Ku Klux Klan. Griffith amarra os fatos históricos para propor uma narrativa total que contemple uma leitura do foi a solidificação dos EUA como uma nação. A visão que o diretor usa no filme é um retrato fiel do pensamento do cidadão branco americano da época. Nessa visão está a crítica da guerra que transforma amigos em inimigos, o apogeu e a morte traumática do mais importante político da história dos Estados Unidos e a forma como o norte-americano tradicional, caucasiano, cristão e devoto dos valores do liberalismo via em qualquer povo ou raça diferente da sua uma forma de ameaça a seu ideário de liberdade e autodeterminação. O filme é extremamente racista, mas ele apenas retrata de maneira sincera e fiel como o pensamento americano tradicional dos anos 1910 (e ainda muito nos dias de hoje) era racista. É notório que, com raras exceções, os estadunidenses não tinham o menor respeito aos negros como indivíduos iguais a eles. Um país que viveu a escravidão carregará para sempre as cicatrizes dessa abjeção.

Como Griffith trabalhava dentro de códigos clássicos da construção narrativa, que tinha no maniqueísmo e na vilanização de tipos por meio de caricaturas uma de suas regras, ele faz dos negros (principalmente do político mulato que ganha força após a vitória do norte sobre os Confederados na Guerra Civil) os vilões da história. Vendo o filme hoje, com o mínimo de bom senso, a construção racista do filme é uma agressão enojante. Mas se vermos esse processo como fruto da época, possamos entender melhor que o racismo é algo muito mais atávico e nocivo do que imaginamos e que suas raízes são muito mais profundas. É interessante notar como o preconceito com que os negros são retratados no filme é uma característica comum ao cinema americano, que nos anos seguintes fez o mesmo com comunistas, asiáticos, hispânicos e hoje em dia com árabes e muçulmanos. Tudo o que é diferente da matriz racial e moral americana provoca pavor no cidadão médio estadunidense.

Para se ver a grandeza de ‘O Nascimento de Uma Nação’ como cinema temos que fazer o sacrifício de deixarmos a ridícula construção dos negros e a patética tentativa de tornar a Ku Klux Klan em um grupo de heróis salvadores dos valores da América de lado. O filme tem um ritmo impressionante, as cenas de ação são compostas com esmero e cheias de energia interna, drama e suspense são construídos com maestria e o longa flui com um vigor ímpar. As histórias são preciosamente amarradas pela força da montagem, a relação entre os personagens cresce ao longo de todo o filme, que é recheado de sequências belíssimas. Toda a maestria de encenador de Griffith fica nítida na maneira como ‘O Nascimento de Uma Nação’ utiliza uma gama enorme de técnicas cinematográficas para se consolidar como uma das mais fortes narrativas épicas que o cinema já teve.

'Intolerância'

‘Intolerância’

‘Intolerância’ é um projeto ainda mais ambicioso e sofisticado. Nele vemos uma possível tentativa de Griffith (nunca comprovada) de se redimir um pouco do racismo de seu longa anterior. No filme temos um apuro estético ainda maior por parte de Griffith, que usa mais movimentos de câmera (como travellings e aproximações e recuos de câmera), maior uso dramático dos closes, uma movimentação interna nos quadros mais acentuada, cortes mais brutos, maior variação nas modulações e no uso da luz e um verdadeiro tour de force de montagem, em que a montagem paralela trabalha não só sequências que se relacionam umas com as outras, mas que também intercalam com muita pujança quatro diferentes momentos na história da humanidade. Se existe um filme que podemos usar como exemplo dos poderes que a montagem paralela tem para a construção dramático-narrativa ele seria ‘Intolerância’.

A grandiosidade do filme também está em intercalar, sem perder a potência narrativa, o apelo visual das sequências que se passam na antiga Babilônia (com cenários enormes e suntuosos, além de um número imenso de extras) com cenas bem mais intimistas, com poucos personagens e que se passam já no início do século 20 nos EUA. O filme não perde intensidade em nenhum momento, tanto nos dois já citados quanto nos outros que completam a teia de narrativas intercaladas: o massacre dos Huguenotes na França do século 16 e um trecho da vida de Jesus em Jerusalém até sua crucificação. Todo o filme é recheado pela força dos melodramas, por imagens belíssimas, emoção, suspense, ação contagiante e o mesmo ritmo primoroso com que Griffith fazia suas narrativas evoluírem, além de sequências espetaculares.

Em ‘Intolerância’, Griffith usa quatro narrativas distintas para destacar a maldade, a traição, a ambição e a própria intolerância que dá título ao filme como características comuns do homem ao longo da história. Respeitando os códigos narrativos da época e buscando conclusões edificantes para agradar grandes platéias, o diretor constrói diferentes relações entre personagens que procuram destacar que o amor, a coragem e a compaixão são as únicas formas do homem domar seus piores instintos e ter uma chance de redenção. Em ‘Intolerância’, a presença das metáforas é marcante, como na belíssima imagem recorrente ao longo do filme em que uma mulher embala um berço em meio a um plano aberto (alternado por alguns closes) dentro de um cenário primorosamente composto que acentua os contrastes entre luz e penumbras e enfatiza a ação simbólica dessa grande mãe da história que embala infinitamente o berço da humanidade.

‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, dois filmes mudos, feitos nos primórdios da evolução cinematográfica, são dois dos melhores filmes clássicos que Hollywood já produziu, duas das mais bem compostas narrativas da história do cinema. Longas em que o talento de um diretor salta aos olhos pela maneira como ele trabalha a encenação, usando todos os recursos possíveis para exercer o papel de um narrador que articula, interrompe, compara e unifica ações para construir a força das histórias que cria. Tudo com uma beleza visual impressionante e um senso de ritmo e movimento preciosos. Cinema puro, que não esconde sua ingenuidade discursiva, mas que extrai o máximo de emoção que só o cinema como linguagem pode alcançar.

‘Uma Garota Dividida Em Dois’, de Claude Chabrol (2007)

Por Fernando Oriente

Uma Garota Dividida Em DoisEm seu cinema, Claude Chabrol sempre provoca o espectador. Faz propositalmente com que o público espere algo mais de seus filmes (uma explicação, uma conclusão extra, um plano a mais) e, de forma intencional, não inclui nada a mais que dê essa satisfação imediata. Mestre das manipulações sofisticadas, o cineasta usa sutilezas e muito cinismo para evitar qualquer situação fácil; ele expõe os elementos da trama, levanta questões e deixa as conclusões a cargo da platéia. Seu discurso é composto na dialética entre o que se desenvolve na tela e naquilo que acontece fora do quadro, antes ou depois dos planos; na relação do que encena com um entorno que ele faz questão de insinuar e desconstruir, mas sem nunca penetrar em detalhes. O que Chabrol faz é propor um jogo ao seu espectador cujas regras são o cinismo, a ácida crítica ao universo que ele retrata, os paradoxos das situações e as múltiplas possibilidades de leitura que ele impõe aos seus personagens e aos dramas.

Chabrol é um estudioso das relações humanas e um mordaz crítico do mundo burguês, que trabalha sempre nos inter-textos, nos paroxismos e nas sugestões implícitas propostas pelos dramas, e compõe tudo isso com um domínio completo das modulações da encenação e na força da decupagem. ‘Uma Garota Dividida em Dois’ é mais um belíssimo exemplar de como a câmera do cineasta focaliza essas relações com intensidade cirúrgica e expõe as tensões e o patético das paixões humanas sem nunca cair em moralismos ou clichês.

A garota dividida do título é Gabrielle (Ludivine Sagnier, linda como sempre), apresentadora de uma TV a cabo que se apaixona por um escritor 30 anos mais velho e, ao mesmo tempo, é assediada por um jovem milionário, herdeiro de uma tradicional família da alta burguesia francesa. Novamente Chabrol usa esses tipos sociais para discutir o choque de classes, aqui representado pelo antagonismo entre a intelectualidade do escritor e o poder do dinheiro do jovem. Gabrielle é o elemento social que fica entre eles, deseja o escritor, mas encontra abrigo na falsa estabilidade do herdeiro.

Outra dicotomia é abraçada por Chabrol. O escritor é um hedonista, ama todos os prazeres da vida e sua posição de destaque em um país que tanto valoriza o intelectual lhe permite flutuar acima dos limites ético-morais. Essa mesma liberdade é usufruída pelo jovem milionário, já que o poder do dinheiro permite que suas ações não causem as conseqüências que o mundo impõe aos não-afortunados economicamente.

Essa noção de liberdade, que ambos aparentam usufruir, é ambígua, já que tanto um quanto o outro precisam sempre de subterfúgios e mecanismos de proteção para suas ações. Liberdade, em um sentido mais concreto, é o que possui Gabrielle no início do longa. Ela é representante de uma classe intermediária, não sofre cobranças e nem tem que tomar atitudes que legitimem seu papel na sociedade. Mas, ao se envolver com os dois, ela perde sua autonomia e vê o controle que tinha sobre seu destino esfacelar-se.

Para Chabrol, são as paixões humanas e as ambições atávicas dos códigos da sociedade burguesa que levam sua protagonista, e também as outras figuras dramáticas centrais, a se envolverem na seqüência de atos que conduzem ao desfecho trágico de ‘Uma Garota Dividida em Dois’. Gabrielle se apaixona pelo escritor, de forma passional e física, não apenas no plano intelectual, como é costume vermos no cinema, quando uma jovem se envolve com um homem bem mais velho.

As limitações do corpo, como a aproximação da velhice, também assumem caráter particular no longa. É mais para sentir-se ainda dono de todo seu potencial erótico que o escritor de envolve com Gabrielle. Ao tê-la sob total submissão sexual, ela passa a ser descartável para ele. Já para o jovem milionário, devido a sua pouca idade, os prazeres da carne são apenas secundários em seu fascínio pela garota. Ele ainda é preso aos conceitos românticos da juventude. Esse romantismo faz com que abandone sua personalidade cínica, abra mão de seus mecanismos de defesa e realmente se entregue a uma paixão que sabe não ter muito futuro. Tudo isso é construído por Chabrol de forma paradoxal, as arestas que o diretor abre para as motivações e as próprias ações dos personagens fazem com que seus tipos sejam sempre compostos por dilemas, não existem certezas nem convicções de caráter. É o calor do momento, as respostas imediatas aos impulsos e a satisfação individualista dos desejos que conduzem os dramas. Em Chabrol, nenhum personagem age fora das imposições do jogo social, qualquer manifestação de independência emocional é sempre subjugada pelos códigos e restrições da sociedade.

A questão da dependência do outro assume diversas formas no longa. Ninguém é capaz de existir plenamente sem alguém e a possessividade pode levar à perdição do ser humano. Essa interdependência é abordada por Chabrol de maneira complexa dentro da encenação, em um filme onde não existe nenhum personagem que não tenha importância fundamental para a trama. As fragilidades do ser humano, exposta em forma de carência e dependência do outro (dissimuladas ou não), é um dos pontos altos de ‘Uma Garota Dividida em Dois’.

A seqüência final do filme é uma das mais felizes conclusões do cinema recente. Nela Chabrol destila todo seu cinismo e seu poder crítico ao criar uma alegoria ao mesmo tempo complexa e objetiva, em que mostra que o poder das imagens diz muito mais do que qualquer discurso fabricado.

Mais uma vez, Claude Chabrol demonstra todo o apuro que caracteriza o aspecto estético de seus longas. Produz planos depurados e coesos, em que enquadramentos discretos e sofisticados, movimentos elegantes e funcionais da câmera registram a ação com distanciamento crítico e, ao mesmo tempo, ressaltam a densidade da encenação. Não existem imagens banais em seu cinema, todo o aspecto formal de seus filmes trabalha para a unidade da obra.

Para concluir, é impossível deixar de destacar a atuação de Benoît Magimel como o jovem milionário. Em meio a um excelente elenco, o jovem ator cria um personagem que expõe ao longo do filme suas diversas camadas. Ele vai do cinismo ao desespero, da arrogância à carência com notável domínio de interpretação. Pena que o ator tenha passado a se dedicar a filmes irrelevantes.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali

Por Fernando Oriente

Noites Brancas no PierA estreia de um filme de Paul Vecchiali no circuito brasileiro (mesmo em poucas salas) é motivo de celebração para a cinefilia, naquilo que cinefilia pode carregar de mais sincero dentro do que liga o espectador e seu amor pelo que o cinema pode oferecer de melhor. Autor de filmes belíssimos como ‘Femmes Femmes’ (1974), ‘Corps à Coeur’ (1979), ‘Rosa la Rose, Fille Public’ (1986) e ‘Encore’ (1988), Vecchiali é dos grandes diretores da história do cinema, mesmo com uma filmografia pequena, com dificuldades de conseguir orçamento para seus projetos e com uma projeção internacional muito menor do que seu talento merecia. Paul Vecchiali começou sua carreira na França no inicio dos anos 60, em meio à efervescência da Nouvelle Vague realizando curtas metragens e documentários. O cineasta só consolidou seu estilo nos anos 70, uma época em que o cinema francês vivia um grande momento, com cineastas como Jacques Rivette, Maurice Pialat e Jean Eustache trabalhando a abordagem ao real de maneira visceral em seus longas, Godard engajado em filmes radicais dentro de sua fase política mais intensa, Rohmer concluía seus Contos Morais e jovens autores como Philippe Garrel consolidando sua carreira com filmes belíssimos e altamente experimentais.

O cinema de Vecchiali carrega a influência do momento de sua formação como cineasta. O diretor constrói suas sequências de maneira intensa, com uma encenação pulsante e ágil construída de dentro das situações dramáticas, com ácidos comentários sobre o desencanto do mundo pós Maio de 68, constantes reflexões existencialistas, auto-ironia e um profundo sentido de melancolia e fracasso que dominam personagens que vivem à margem de uma sociedade cujas regras eles (bem como o diretor) desprezam.

Como era de se esperar, conhecendo o cinema de Paul Vecchiali, seu novo filme ‘Noites Brancas no Pier’ se confirma como mais um ótimo trabalho na carreira do diretor. Feito com orçamento baixíssimo, essa adaptação da novela curta ‘Noites Brancas’ de Dostoievski usa estruturas básicas de mise-en-scène, uma montagem enxuta feita a partir de cortes precisos e elipses curtas e um impressionante e rigoroso trabalho de composição do quadro, em que a variação do foco, as modulações da luz e o posicionamento dos atores dentro do plano potencializam ao extremo a força e os sentidos diretos e também paradoxais da palavra. Pois ‘Noites Brancas no Pier’ é um filme em que a palavra falada, o texto dito e encenado estão no centro da diegese. O filme mostra como as imagens, quando construídas em harmonia total com a palavra, podem fazer o texto escrito ser altamente cinematográfico.

Esse texto, baseado no livro de Dostoievski, incrementado e tornado contemporâneo pelo roteiro escrito pelo próprio Vecchiali, ganha força por meio dos gestos dos atores, pelas mudanças nas expressões de seus rostos, pela contenção de suas reações, pelos momentos de fuga como na sequência da dança, pela entonação com que dizem cada frase e na maneira como Vecchiali os dispõe dentro do quadro, trabalhando sempre a relação física dos corpos dentro de cena em função das modulações dramáticas propostas pelo texto. É notável como Vecchiali destaca a entrada e a saída dos personagens do quadro ou mesmo utiliza raros, mas marcantes movimentos de câmera sejam sutis aproximações frontais ou suaves travellings de ré.

‘Noites Brancas no Pier’ é composto por várias cenas noturnas (e algumas sequências distintas que interligam e comentam as cenas à noite), em que um casal se conhece, tornam-se amigos e contam fragmentos de suas vidas um para o outro, noite após noite. Ele é um solitário que se encontra em fase de recolhimento, ela é uma jovem que aguarda o retorno do grande amor de sua vida. Na evolução do relacionamento entre os dois, em meio às vivências compartilhadas, ele se apaixona por ela e ela passa ver nele uma salvação para caso seu amado não regresse. O filme vive da relação entre esses encontros, entre um presente diegético e a relação dele com o que cada um dos protagonistas carrega como bagagem de vida, como repertório existencial. O jogo entre o que está aparente dentro da cena e tudo aquilo que ocupa um imenso fora de campo dão a complexidade dialética para a dramaturgia de ‘Noites Brancas no Pier’.

Tudo isso é encenado de maneira epidérmica (com um lirismo onipresente, mas contido) por Vecchiali, com os personagens sempre em primeiro plano, dividindo a tela, ou com apenas um dos dois no quadro, enquanto o outro escuta próximo, mas fora de campo. O diretor trabalha esses primeiros planos pra dar ênfase ao texto falado, por vezes desfoca o ouvinte para deixar a nitidez naquele que fala e em outros momentos deixa quem está proferindo o discurso sob a luz enquanto aquele que ouve fica um passo a trás ou de lado, na penumbra. Os diálogos são ditos em ritmo lento, ressaltando a sonoridade e as significações das palavras. Principalmente o personagem masculino diz seus textos de uma maneira antinaturalista (muito próxima ao estilo de Straub e Huillet) ao mesmo tempo em que ele conter seus sentimentos por meio de gestos recolhidos, expressões ou olhares reprimidos, mas que nunca são capazes de camuflar por completo a intensidade do que ele sente. Os planos de fundo estão sempre fora de foco, aparecem como blocos escuros, luzes em flou, ou meras massas de cores opacas em meio à escuridão.

Trata-se de uma história de encontros e desencontros, recheada por vivências e experiências que os personagens carregam. São tipos frágeis, que vivem na incerteza do presente e nas dúvidas do que está por vir. Pessoas solitárias que projetam em seus sonhos uma variedade de esperanças tímidas, de possibilidades precárias que surgem nos instantes fugazes de um presente instável e imprevisível. O que Vecchiali faz, com sua encenação direta e a força que coloca na palavra é oferecer dois seres humanos que representam toda uma humanidade que sonha, sofre, teme, mas sempre espera por algo que os tire da banalidade. Um verdadeiro banho de humanidade.

‘Mapas para as Estrelas’, de David Cronenberg

Por Fernando Oriente

Mapas Para As Estrelas“Sabe o é o inferno? Um mundo sem narcóticos”. Essa frase dita logo na primeira parte do novo longa de David Cronenberg nos diz muito sobre o que é ‘Mapas Para As Estrelas’. O longa constrói, por meio de diversos personagens e situações paralelas que vão se inter-relacionando, o retrato de um mundo em que a condenação já é um destino garantido na vida de qualquer pessoa, só a alienação, seja por meio dos mais variados narcóticos possíveis (químicos, simbólicos ou emocionais) podem adiar ou aliviar o desfecho trágico da existência. O mal já foi feito, os pecados já foram consumados, a falácia da salvação só existe em ilusórios programas de auto-ajuda barata e na tentativa sempre insuficiente de se obter sucessos fugazes, pequenas conquistas narcísicas de auto-exposição da própria imagem como mercadoria de consumo. No mundo das aparências, do capital que transforma tudo e todos em objetos desse mesmo consumo, o individualismo tornou-se regra básica para se viver. As relações não passam de jogos de poder, de tentativas de se fazer do outro um meio para a consagração do eu cego.

Cronenberg retrata tudo isso de maneira cirúrgica. Escolhe como ambiente pra seu filme Hollywood, suas estrelas mirins, suas atrizes decadentes, seus agentes, produtores e todo um grupo de aspirantes ao sucesso, além de subempregados do showbiz que vagam em círculos em meio ao vazio existencial. Um mundo cheio de cores e com visual asséptico onde a superficialidade dos contatos humanos e a falta de sentido são as únicas coisas reais. Como também é real a presença constante de fantasmas que literalmente ganham presença física no filme e vem cobrar dos vivos a lucidez que eles tentam a todo custo manter reprimidas em seus devaneios egocêntricos. Mas não é apenas ao mundo do cinema, da indústria do entretenimento que Cronenberg se restringe. O discurso do filme é universal. Os personagens do filme são pessoas comuns, que apesar do meio em que vivem , são idênticos a qualquer homem ou mulher da sociedade contemporânea; pelo menos dentro desse mundo da aparência, do consumo e da alienação compulsivas que conduzem as sociedades capitalistas em que nada tem importância fora da sua capacidade de troca, de seu potencial de uso, de seu valor como mercadoria e espetáculo e em que a aparência anulou a essência.

David Cronenberg é um cineasta direto. ‘Mapas Para As Estrelas’ é construído por meio de uma mise-en-scène e uma decupagem extremamente frontais. O diretor retrata as mais complexas situações, compõe um painel cheio de camadas sobre a sociedade contemporânea mantendo os dramas, as texturas dos personagens, a evolução narrativa e as próprias ações na superfície de sua matéria fílmica. A naturalidade com que a câmera de Cronenberg registra tudo chega a ser desconcertante. A frontalidade do filme é tão objetiva que tira o espectador de sua posição de conforto e amplifica o potencial de tudo aquilo que é encenado. Cronenberg disseca o universo que aborda sem truques, tudo é colocado na cara do espectador. O confronto é proposto por meio da clareza com que o diretor encara a diegese e o discurso que dela surge.

‘Mapas Para As Estrelas’ é um filme que dá sequência natural a obra monumental que David Cronenberg vem construindo no cinema desde os anos 70. Se o diretor encaminhou seu cinema para uma maior interiorização das degenerações da condição humana desde ‘Marcas da Violência’, isso não significa que as deformidades, as transformações da carne e da alma não estejam mais presentes em seu cinema. Elas apenas passaram do exterior para interior dos personagens. Os corpos continuam em mutação e sendo mutilados e reconfigurados, só que esse processo se dá no interior dos tipos, em suas almas, naquilo que os leva a agir de forma brutal mesmo com seus corpos aparentemente sadios. As próprias situações dramáticas encenadas pelo cineasta são reflexos constantes dessa condição mutante do homem, mutação essa existencial e condicionante do estar no mundo e do agir de cada personagem.

Corpos continuam em primeiro plano no cinema de Cronenberg. Em ‘Mapas Para As Estrelas’ isso aparece na exposição da personagem Julianne Moore, que se despe para câmera em sessões de massagem, em uma bizarra cena de sexo a três em que ela sai da cama em meio à uma trepada frustrada e pede desculpas ao parceiro alegando ser uma “péssima lésbica” ou mesmo quando conversa com sua assistente sentada na privada cagando e peidando em meio a um diálogo banal. Corpos, fluídos, odores e a carnalidade do ser humano nunca abandonam os filmes de Cronenberg. Para completar ainda temos a personagem da jovem desfigurada por um incêndio, talvez a única personagem do filme capaz de levar a cabo um plano, a única que parece distante da alienação patológica em que todos os outros tipos do filme estão mergulhados, por mais paranóicas que possam parecer suas intenções. Mas a sofisticação de Cronenberg é a de naturalizar essas intenções e fazer delas uma saída conclusiva natural para a vida dos personagens envolvidos, nem um pouco menos paranóica que as existências aparentemente normais dos demais tipos que vemos em cena.

Outro ponto da acidez sarcástica do discurso de Cronenberg é sempre colocar os personagens de ‘Mapas Para As Estrelas’ como vítimas de relações familiares doentias, em que abusos sexuais, incesto, filhos que se anulam para se tornarem um duplo de seus próprios pais como solução para relacionamentos enfermos, ou a banalidade com que o ser humano transfere seus transtornos de personalidade a possíveis atos abusivos por parte de uma mãe ou um pai disfuncional, são fatos corriqueiros na vida contemporânea pós-psicanalítica. Cronenberg tece uma crítica à instituição familiar (não diminui o verdadeiro efeito destruidor das degenerações incrustadas no seio da família) ao mesmo tempo em que usa da transformação dessa disfuncionalidade em clichê e muleta para se justificar qualquer possível transtorno emocional na idade adulta, bem como uma forma de se auto-promover a imagem fazendo do papel de vítima de traumas de criação um elemento causador da empatia de um público ávido por conhecer e compartilhar com comiseração os sofrimentos das personalidades que admiram e consomem.

A família para Cronenberg carrega a sordidez da sociedade, é microcosmo de um mundo patologicamente doente, mas não faz disso um discurso moralizante ou piegas e usa a própria transformação dessa patologia em elemento de banalização da vida, em que a demência dos conflitos familiares apenas irão se estender para a base de ação do ser humano dentro da sociedade como um todo.

Como em vários de seus filmes e talvez mais ainda se pensarmos em ‘Marcas da Violência’ e ‘Senhores do Crime’, em ‘Mapas Para As Estrelas’ as explosões de brutalidade inerentes ao ser humano, bem como a ebulição e exteriorização dos instintos mais primários, virão sempre à torna e se tornarão atos físicos e violência pura que Cronenberg registra com a mesma frontalidade e dentro do mesmo processo direto de mise-en-scène com que constrói todo seu filme. A transparência da encenação, da construção dramática e da evolução narrativa tornam o filme ainda mais perturbador. Cronenberg, como um cirurgião, abre o os corpos de seus personagens para expor as entranhas de uma sociedade que ele sempre viu como doente.

Mostra de Tiradentes 2015 em SP: balanço e breves comentários sobre alguns filmes

Por Fernando Oriente

Cartaz Tiradentes 2015Se ao longo de 2014 o cinema independente brasileiro viveu entre impasses que apontavam certo saturamento do novo cinema praticado no país, com o surgimento de fórmulas, cacoetes e repetição superficial de alguns temas (deslocamentos, afeto, mal estar de viver, fusão ente ficção e documentário, excessos de metacinema e do uso do dispositivo como finalidade e não meio para o desenvolvimento dos filmes) ao mesmo tempo em que belos filmes apontavam caminhos interessantes a serem seguidos e afirmavam a qualidade de alguns realizadores, o ano de 2015 começou de maneira muito promissora. A 18ª Mostra de Tiradentes (principal plataforma para difusão e discussão do cinema independente contemporâneo no país ao lado da Semana dos Realizadores no Rio) teve em sua curadoria uma seleção de filmes fortes, que priorizaram a liberdade criativa, a inovação, o experimentalismo e exibiu filmes originais, dos mais diferentes estilos, que indicam que o cinema brasileiro independente está forte e não se encontra preso aos impasses citados acima e que tantas discussões levantaram ao longo dos último ano.

A Mostra de Tiradentes 2015 teve um recorte de sua programação exibido na cidade de São Paulo pelo terceiro ano consecutivo. O Tudo Vai Bem assistiu cinco longas e um curta desse recorte na capital paulista e podemos afirmar que a seleção de Tiradentes 2015 foi muito feliz. Com bons filmes, alguns irregulares, mas sempre com elementos interessantes, o cenário apontado por esses filmes traz uma injeção de vigor e consistentes provas de que o cinema contemporâneo brasileiro tem muito a oferecer.

Esse texto traz brevíssimas análises dos filmes assistidos pelo site em São Paulo.

‘Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer’, de Allan Ribeiro

Mais Do Que Eu Possa Me ReconheçerO filme de Allan Ribeiro aborda a solidão de uma maneira extremante original. Dentro dos códigos do documentário, e da relação complexa construída entre Allan e seu documentado, o artista plástico e vídeo-maker amador Darel, o longa penetra na casa e na intimidade do Darel para, por meio de depoimentos, imagens do cotidiano do artista, depoimentos e falas isoladas dele para a câmera e trechos dos vídeos gravados por Darel, construir um painel em forma de mosaico do cotidiano de um velho que vive das reminiscências de sua vida, de seus trabalhos como pintor, de suas imagens captadas e de suas memórias.

A fusão entre os tempos filmados por Allan, com as imagens produzidas por Darel aliados às memórias do artista, o amplo destaque que o filme dá ao ambiente de isolamento em que Darel vive e as lembranças da vida do personagem são construídas por meio de uma evolução narrativa livre, não-linear e que vai ganhando força ao desenrolar do filme e acaba por produzir um filme em que nada é explícito, tudo é sugerido, insinuado.

Imagens e depoimentos, bem como o registro dos silêncios, dos pequenos gestos e dos espaços formam um complexo conjunto visual e sonoro em que a passagem do tempo, as tragédias, a solidão, as perdas, as realizações de uma vida e as incertezas em relação ao futuro se fundem em uma matéria fílmica de rara originalidade e que conferem um caráter subjetivo e cheio de arestas para o discurso proposto por Allan Ribeiro. Um filme de detalhes e sutilezas, triste e melancólico, em que não se julga nada, em que tudo é transformado em reflexão e sensações. Um longa sofisticado no melhor sentido da palavra e que pede revisões constantes para que o espectador possa imergir nos diversos detalhes e camadas compostos pelo diretor.

‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’, de Rodrigo de Oliveira

Teobaldo Morto, Romeu ExiladoEm seu segundo longa, Rodrigo de Oliveira realiza um filme extremante pessoal (com uma sólida segurança em fazer um trabalho exatamente de seu jeito e sem concessões), em que com grande liberdade narrativa e de mise-en-scène (ao mesmo tempo em que impõe rigor e funcionalidade a essa encenação), constrói um jogo de representações por meio de personagens e situações dramáticas que nunca são o que aparentam ser. Tipos se desdobram, dramas se redefinem, novos conflitos surgem em meio à evolução narrativa. Passado e presente são colocados na tela dentro de um rigoroso processo dialético em que as significações se multiplicam e se abrem dentro das múltiplas capacidades de percepção das representações e simbologias que são o centro e a matéria de ‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’. Um filme que se desdobra em uma gama de tecidos interpretativos e possibilidades de leituras.

Um filme que respeita o tempo das ações e dos dramas, que permite o espectador absorver aquilo que vê na tela de maneira livre. Um belo trabalho de composição de planos, com precisa construção de quadros e bom uso de profundidade de campo dão mais densidade ao filme. Sequências marcantes como o longo plano sequência em que os amigos acertam suas contas com o passado, cenas carregadas de simbologia e força visual, um uso fortíssimo e dramático da música e uma cena de sexo de extremo vigor e urgência são alguns dos inúmeros destaques desse que é um dos grandes filmes de Tiradentes 2105.

‘O Animal Sonhado’, de Breno Batista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto e Victor Costa Lope

O Animal SonhadoIrregular como todo filme coletivo, embora mantenha uma coerente unidade entre suas partes, o filme tem um grande mérito por abordar o sexo de maneira frontal. As trepadas, a nudez, corpos em conflito direto e o desejo em estado puro são os temas do filme. Não existe a preocupação em se aprofundar nas situações dramáticas. O que os realizadores querem é abordar seus temas e as cenas de maneira frontal, direta; e isso o filme consegue.

Uma mesma simbologia do homem como animal sexual marca cada fotograma do filme. Com momentos fortes e algumas passagens mais fracas, ‘O Animal Sonhado’ cumpre o papel de sua proposta de maneira honesta. Abordar e colocar em primeiro plano o sexo direto, com a nudez dos corpos e o desejo escancarado é algo que anda em falta no atual cinema brasileiro. Só por isso, ‘O Animal Sonhado’ já tem méritos suficientes e merece ser visto como ele é, sem pretensões e com uma frontalidade bruta, em que os realizadores se entregam ao seu material de forma passional e sem medo do erro.

‘Medo do Escuro’, de Ivo Lopes Araújo

Medo Do EscuroUm ensaio, um filme experimental, um estudo de imagens, sons e texturas para compor um painel metafórico da condição do homem contemporâneo em meio a um mundo apocalíptico. Com complexa construção formal, uso constante de diferentes registros de captação (e a variação constante de texturas resultante desse processo), montagem ágil e muito movimento dentro dos quadros, Ivo Lopes Araújo faz de ‘Medo do Escuro’ uma experiência estética vigorosa, com situações de intensidade pulsante e algumas passagens em que o longa perde um pouco da força.

Um filme que se entrega e abraça com vigor elementos do experimentalismo, mas que não deixa de tecer comentários ácidos sobre a visão de mundo do diretor. Uma experiência estética rica (no sentido complexo e filosófico do termo estética, não apenas uma questão de forma). ‘Medo de Escuro’ pede a imersão total do espectador para atingir seus objetivos, e a trilha sonora executada ao vivo na sessão do filme em São Paulo potencializou ainda mais essa experiência. Imagens de grande impacto, simbolismos em primeiro plano e uma tensão constante e crescente que acompanha toda a evolução do filme fazem de ‘Medo de Escuro’ um exercício de cinema livre intenso e sensorial.

‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’, de Dellani Lima

O Tempo Não Existe no Lugar Em Que EstamosDellani Lima mostra em seu novo longa uma notável maturidade como encenador, constrói um filme em que o centro dramático está naquilo que é sugerido, nas entrelinhas e subtextos, na distância calculada que ele mantém daquilo que encena. Por meio da história de um foto jornalista e professor de fotografia, incapaz de se adaptar as novas tecnologias do digital, ao mesmo tempo em que vive uma fase de impasses existenciais em que revê sua história de vida, ‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’ é uma reflexão sobre a imagem, sobre a relação do que é registrado em oposição aos fatos e ao que é vivido pelo ser humano, bem como um tratado sobre o peso do tempo e da força das memórias no presente de um homem angustiado.

O filme de Dellani não cai em pieguices nem em discursos banais. Trata das emoções de maneira objetiva, em que o que está fora do quadro dialoga constantemente com as ações e a inércia dos pequenos dramas encenados. O destaque dado às significações, as possibilidade e limitações de imagens captadas (instantes congelados e eternizados em reproduções) ajudam a tecer um discurso sólido sobre o próprio papel do cinema no mundo. A distância que a câmera mantém das emoções e dos personagens, bem como a encenação sugestiva e controlada, que evita os arroubos sentimentais, tornam o filme ainda mais forte. Os momentos metafóricos são autênticos e as relações e analogias criadas por Dellani atingem uma força autêntica.

‘Filme Selvagem’, de Pedro Diogenes

Filme Selvagem

Em um dos melhores curtas dos últimos anos, Pedro Diogenes faz de ‘Filme Selvagem’ uma pequena obra-prima. Um filme godardiano com ecos de Walter Benjamin, Rogério Sganzerla e muito mais.

Com imagens belíssimas, um uso primoroso das texturas variadas dessas imagens (que dialogam dialeticamente com os textos narrados), uma montagem impressionante e um discurso extremamente complexo e urgente. Filmaço.

‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós

Por Fernando Oriente

Branco Sai. Preto FicaO novo longa de Adirley é um exemplo de como o cinema independente brasileiro pode encontrar caminhos para ser criativo, esteticamente forte e se adequar a questões do momento de forma orgânica e engenhosa, sem abrir mão da autenticidade e da independência formal e de conteúdo. ‘Branco Sai. Preto Fica’ consolida Adirley Queirós como um dos mais talentosos e criativos cineastas surgidos no país nos últimos anos. É um filme extremamente original em toda sua matéria e surge como um trabalho que dialoga de maneira espontânea com os curtas do diretor bem como com seu belo filme anterior, ‘A Cidade É Uma Só?’ (2011).

A tendência de fundir documentário e ficção, de abolir as fronteiras entre esses dois tipos de registro, viraram uma tendência e um cacoete dos muitos dos novos realizadores no país. Muitos usam como fórmula, mas Adirley faz esse processo com uma naturalidade assombrosa. Seu talento para o cinema é instintivo, seus filmes são de uma sinceridade desconcertante em que o diretor espontaneamente coloca a si mesmo e a sua história de vida como elementos dramáticos de tudo o que se vê na tela. Adirley Queirós faz filmes em que o ato de filmar, decupar, criar, cortar e unir sequências e planos parece tarefa fácil devido à fluência que atinge no desenvolvimento dramático e na evolução de seus trabalhos.

‘Branco Sai. Preto Fica’ usa a história real de conhecidos do diretor (dois deles foram vítimas de uma tragédia provocada pela brutalidade e o preconceito da policia do Distrito Federal nos anos 80) e recria esses fatos e outros elementos do cotidiano da vida de Adirley a partir de depoimentos diretos e por meio de uma ficcionalização do real que vai desde sequencias naturalistas que registram de forma frontal um espaço e um estar no mundo até cenas e sub-tramas de ficção científica, sempre usando e abusando do dispositivo que for necessário para dar vida ao que se deseja lembrar, contar e recriar. Tudo no filme existe em função da existência do próprio fazer cinema, narrar, reviver, tornar memória em imagens e transformar reflexões sobre o passado e o estado atual das coisas em filme, em discurso.

A integração entre os personagens, a câmera e a evolução da dramaturgia é um elemento forte em ‘Branco Sai, Perto Fica’. Adirley constrói planos cheios de vida e significado, registra tudo priorizando o pertencimento de seus personagens aquele espaço em que habitam. As relações entre os tipos é natural, o carinho, a amizade e as características comuns que os aproximam são de uma autenticidade rara no cinema. O gesto de afeto, tão exaurido no cinema contemporâneo do país, são gestos naturais, consequências óbvias da própria existência dos personagens e da relação que constroem entre si e com a câmera de Adirley.

O uso da música é fator fundamental no filme, as canções são uma manifestação da identidade cultural, uma afirmação dos gostos e escolhas que constroem a própria personalidade e a maneira de expressão dos personagens. A música é um prazer, um escape, uma forma de comunicação e compartilhamento.

A Ceilândia, lugar de Adirley, é personagem do filme. Ela surge registrada em planos abertos, uma característica comum nos trabalhos do diretor, bem como nos espaços fechados, na estetização criativa de alguns ambientes (elemento novo no cinema do diretor), nos códigos que pautam as trocas e os conflitos entre os personagens e na maneira como o se relacionar com uma identidade urbana periférica torna-se uma característica existencial. É um cinema do pertencimento. Pertencer a um espaço, a uma história pessoal e de comunidade. A Ceilândia está em todos e em tudo o que vemos na tela. Ela pulsa na razão de ser do filme.

Essa identidade da Ceilândia representa o universo subjetivo dos personagens bem como é um recorte do imenso universo das periferias na cultura brasileira. Espaço de sobrevivência, em que seus moradores são aviltados e abandonados pelos poderes constituídos, mas desenvolvem maneiras de interação e auto-afirmação dentro do tecido social do país.

Uma das melhores situações criadas por Adirley em ‘Branco Sai. Preto Fica’ (e que demonstra a capacidade do diretor em potencializar um clímax dentro da coerência do discurso) é uma ação de resistência, que serve como uma resposta violenta a um sistema opressor, em que os personagens constroem uma bomba para ser jogada sobre Brasília (mais uma vez um espaço proibido para quem é da Ceilândia e de onde saem as forças que agridem seus moradores). Essa bomba é constituída por sons e ruídos das ruas da Ceilândia e por músicas de vários gêneros que representam as expressões culturais e o próprio tecido das situações cotidianas distintas que são produzidas na cidade satélite. Explodir a bomba no coração das forças opressoras é uma das claras formas de ação política dos personagens e faz parte do discurso potente de interação e auto-afirmarão de identidade de Adirley Queirós.

O espaço como lugar de intervenção, como ambiente político e de resistência. O cinema de Adirley é um cinema de ação, não de lamentos, imobilismo e meros registros de um mal estar no mundo ou de problemas sociais. O cineasta acredita no movimento natural das coisas e das pessoas, movimento esse que ele incorpora as modulações internas de seu filme.

Adirley é sem dúvida um autor que realiza bons filmes e aponta um caminho muito promissor para a cinematografia brasileira contemporânea. Seu cinema, com sua autenticidade e com a coragem de colocar dentro de suas obras (sem medo o cálculos pré-fabricados dos erros e acertos que desse processo surgem), já é uma realidade entre o que de mais interessante se vê nas telas nos últimos anos.

‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’, de Rainer Werner Fassbinder (1976)

Por Fernando Oriente

Eu Quero Apensa Que Vocês Me AmemÀs vezes são exatamente nos filmes menos conhecidos de um autor que temos uma profusão das qualidades, do estilo e dos conceitos, bem como das bases do discurso artístico desse cineasta. ‘Eu Quero Apenas Que vocês Me Amem’, filme pouco comentado dentro da extensa obra de Rainer Werner Fassbinder, é um típico caso desse processo de possibilidade de análise de uma obra. Nessa longa de 1976, o cineasta alemão atinge uma força dramática assombrosa, elevando e subvertendo ao máximo as potências do melodrama (gênero tão fundamental para ele), fazendo os códigos da construção do melodrama serem a base, o ponto de partida e a finalidade de cada elemento de composição da mise-en-scéne, mas sempre indo além. Um filme de Rainer Werner Fassbinder é sempre uma experiência aberta ao mundo, ao meio que cercam os dramas, às questões de sua época e a visão personalíssima do cineasta.

Como em quase todos os seus filmes, ‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’ está impregnado em cada fotograma da habilidade de encenação de Fassbinder e de sua capacidade em preencher cada espaço de uma narrativa poderosa com seu discurso corrosivo, em que as construções em torno do melodrama apenas reforçam esse discurso, que vai além de qualquer gênero para assumir um tecido político social em que a construção dramática e a própria encenação são o suporte material para a expressão de signos, significantes e significados daquilo que Fassbinder quer abordar em múltiplas camadas dentro do todo de seu filme.

‘Eu Quero Apenas Que Vocês me Amem’ é um perfeito exemplo de como pouquíssimos cineastas na história tem capacidade e talento maior para compor quadros (e trabalhar as sequências dentro desses quadros) como Fassbinder. Seja por meio da disposição de personagens e objetos dentro planos, pela movimentação constante e ritmada da câmera aliadas aos posicionamentos funcionais dessa câmera na construção dos enquadramentos e pela contaminação dramática que ele impõe a cada gesto, a cada diálogo, aos silêncios e nos olhares de seus personagens. Fassbinder disseca seus ambientes como disseca o interior de seus personagens e os dramas em esses estão envolvidos: com densidade, acidez, crueldade e sarcasmo. Piedade não existe para Fassbinder, nem em seu cinema muito menos em sua visão de mundo.

Desde o título, que se mostra melancólico ao mesmo tempo em que cínico, o filme é a comprovação de como o melodrama, esse gênero tão comum no cinema clássico, pode ser transformado em agente de possibilidades dramáticas e comentários político-sociais. O melodrama nas mãos de Fassbinder atinge resultados opostos daquilo que para Brecht era o papel desse gênero dentro da dramaturgia burguesa. Se para o dramaturgo o melodrama limitava as denúncias de seus enunciados por meio de catarses no público, que não provocavam nada além de comiseração momentânea e tendências assistencialistas (além de reforçar valores morais), para Fassbinder ele se torna um mecanismo para a construção de dramas que penetram e subvertem as perspectivas do espectador, ao mesmo tempo em que abrem um leque de interpretações que levam a implosão da sociedade burguesa e a um corrosivo discurso político.

O sonho de ser um bom burguês é o que move Peter, personagem central de ‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’. Os sofrimentos que parecem não ter fim na vida do protagonista são provocados, antes de tudo, por seus próprios e incontroláveis desejos de felicidade, consumo e estabilidade afetiva e financeira. Felicidade que ele quer dar aos outros (mãe, mulher, pai, filho), mas que no fundo revelam o grau de enfermidade de seus anseios burgueses e sua deprimente resignação aos valores e códigos sociais conservadores. Dar aos outros, aos que ama, é o caminho lógico para Peter ser aceito e amado.

Como qualquer ser humano, Peter deseja, como diria Lacan, o desejo do Outro, mas sem nunca atingir uma consciência mínima desse movimento inconsciente dentro de limitada capacidade de percepção de si próprio. E como fruto de uma sociedade capitalista cujos códigos restritos de auto-determinação são baseados em produtividade, trabalho como fonte de sustento (trabalho esse que não oferece a mínima segurança e mantém o trabalhador em constante alienação) e consumismo como sinônimo de conforto e bem estar, Peter é incapaz sequer de entender aquilo que deseja, seus impulsos de querer algo se reduzem a uma constante necessidade de aprovação, de ser um modelo perfeito do pequeno burguês com potencial de crescer na vida, que cumpre suas obrigações e se adéqua ao modelo da máquina produtiva e que só consegue exprimir suas sensações, vontades e afetos por meio daquilo que lhe foi imposto como exemplar dentro da máquina trituradora de identidades do mundo capitalista alemão.

Sem cair em psicologismos simplistas, Fassbinder constrói os traumas e expectativas do personagem por meio de flashbacks, ao mesmo tempo em que anuncia a sua condenação em flashfowards numa construção da evolução narrativa não-linear dentro da montagem. Poucas cenas servem para deixar claro o relacionamento disfuncional de Peter com os pais. A partir dessa tensão introduzida, Fassbinder pode desenvolver a construção da condenação do personagem, passando pelo casamento, a mudança de cidade, o nascimento do filho e as relações de trabalho. A cena em flashback que mostra a punição de Peter quando criança, em que a bondade do menino é paga com dor, guarda a chave e dos procedimentos de como a vida irá castigar esse personagem incapaz de perceber que existe para ser constantemente esmagado pelas engrenagens do ambiente que o cerca e aprisiona constantemente.

Peter é construído, minuciosamente pela encenação e pela evolução dramática que Fassbinder impõe ao filme desde a primeira cena, como um fantasma. Alguém cuja presença é uma sombra. Sua danação também está apontada desde o início do filme. Sua não-vida, sua resignação constante, seus medos e o esmagamento emocional a que foi submetido desde sempre anunciam que a sua única reação autêntica a tudo isso só pode ser uma explosão de violência, em que tudo aflora em um gesto desesperador. Para fechar o filme com um toque tipicamente fassbinderiano a última pergunta feita a Peter, que é repetida três vezes em meio aos créditos finais, é: “Você está feliz por estar vivo?”

Conforme Fassbinder intensifica os sofrimentos de Peter, tirando o máximo de veemência de cada construção de cena por meio de matérias básicas do cinema como trabalho de câmera, profundidade de campo, cortes e organização do quadro, ele faz que ‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’ parta do melodrama e se funda ao drama de classe, filme político, suspense e horror psicológico. O cinema não pode ser mais intenso do que isso.

‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), de Philippe Garrel (2011)

Por Fernando Oriente

Um Verão EscaldantePhilippe Garrel traz em seu cinema toda uma bagagem de vida. Carrega seus filmes com a evolução (amarga) de sua percepção de mundo, com as inquietações de um artista que viveu intensamente as esperanças e, hoje, pesa a frustração e o sentimento de fracasso dos ideais que foram a força motora de seu cinema quando começou a carreira nos anos 60. Garrel é o cineasta que melhor filma a desilusão, a melancolia e a impossibilidade de ser do mundo contemporâneo. ‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), lançado em 2011, é um belo e doloroso retrato da dor de viver e do abandono existencial. A atualidade do filme impressiona. Aos 63 anos de idade, Philippe Garrel mostra uma percepção aguçada do que acontece nas entranhas da existência humana contemporânea. Como pano de fundo dos dramas que encena em “Um Verão Escaldante”, o cineasta tece comentários ácidos sobre a situação política da Europa e seu fracasso social.

Após usar de forma intensa as possibilidades do preto e branco em seus trabalhos anteriores (‘Amantes Constantes’ e ‘A Fronteira da Alvorada’) e em seu último filme, ‘O Ciúme’ (2013), Garrel volta à cor em ‘Um Verão Escaldante’. E volta de maneira arrebatadora. As cores são material sensível na própria encenação do longa. Essas cores pontuam, conduzem e indicam as situações encenadas. Tudo ampliado por um impressionante uso da luz. A forma no cinema de Garrel é fundamental para solidez de seus filmes e para complexidade e as possibilidades abertas dos dramas que encena. Em ‘Um Verão Escaldante’, o diretor reforça a beleza dos enquadramentos dentro da decupagem. Garrel posiciona a câmera de maneira cirúrgica, compõe o quadro com rigor total, se aproximando e se distanciando dos personagens e objetos na medida exata para enaltecer as ações e sensações. O uso da profundidade de campo é notável e a variação entre câmera fixa e planos trêmulos rege a oscilação emocional dos personagens.

Esse minucioso trabalho de construção formal é suporte estético para Garrel encenar com densidade extrema as dores e emoções de seus personagens. Os dois casais centrais de ‘Um Verão Escaldante’ vivem situações opostas, ao mesmo tempo em que a história de um indica os caminhos possíveis (ou não) do outro. Enquanto Fréderick e Angele vivem o desgaste de um amor intenso impossibilitado de se afirmar/confirmar, Paul e Elisabeth estão no início de uma relação terna em que o amor é quase uma salvação de suas almas inocentes e ressentidas em igual proporção. O que os quatro personagens têm em comum é a impossibilidade de existirem sem as dores, medos e inseguranças ante os sentimentos que transcendem suas razões individuais e suas etéreas (quase)certezas. São esses sentimentos, as emoções brutas dos personagens (que flutuam entre explosões e recalcamentos) que constituem a matéria central do filme. As emoções, sentimentos e sensações são a matéria da própria mise-en-scéne de Garrel.

A encenação de dramas tão intensos, que podem ser vistos como significantes de um pathos presente na desolação e no deslocamento do ser humano atual, é conduzida na diegese do filme por meio da intensa exploração visual dos gestos e, principalmente, das expressões nos rostos dos personagens. Garrel extrai o máximo de significados e põe seu próprio discurso fílimico nesses gestos e rostos. Essa construção dramática cria um tempo multifacetado no filme. As cenas se passam em um tempo presente que carrega vários tempos passados. Os personagens agem baseados na presença opressora do que já viveram e sempre receosos do que estão por viver. Essa expectativa pelo que virá a seguir é marcada pela desilusão, por mais que continuem em frente, os personagens sabem que não podem escapar do vazio e, com isso, a presença da morte se torna cada vez mais sentida no filme. Morte que pode ser tangenciada, como no caso de Paul e Elisabeth, mas que também pode ser vivida em forma de destino imediato e irremediável para Fréderick e Angele. É com essa estrutura montada e sustentada na forma e nas texturas dos dramas, que Garrel faz as emoções sensórias se metamosfosearem em presença física na tela.

Por meio dessa construção dramática Garrel se debruça não só sobre os conflitos internos do homem, mas também sobre a situação política da Europa. As ruínas emocionais dos tipos em cena ecoam as ruínas político-sociais de todo o continente (como as ruínas da Roma onde o longa se passa e os escombros do cenário no filme que Angele atua). A Europa da esperança e agitação libertária dos anos 60 deu lugar a um local de repressão e conservadorismo, com a falência de ideais e um sentimento revolucionário que só encontra porta-voz no idealista Paul. Hoje Garrel é um representante amargurado da Europa que não aconteceu. Como em quase todos os seus filmes, o diretor registra um retrato amargo do fracasso de sua geração.

Os tipos de ‘Um Verão Escaldante’ carregam no semblante toda a derrota existencial de que o próprio Garrel é um mensageiro. Louis Garrel, Monica Bellucci, Céline Sallette e Jérôme Robart trazem em seus rostos a mesma melancolia e angústia que estavam presentes nos filmes anteriores do cineasta. Essa tristeza profunda está nas faces de Jean-Piérre Léaud em “O Nascimento do Amor” (1993), de Johanna ter Steege em “Não Escuto a Guitarra” (1989), de Maurice Garrel em “Liberté, La Nuit” (1983), de Jacques Bonnaffé em “Elle a Passé Tant D’heures Sous les Sunlights” (1985), de Nico em “A Cicatriz Anterior” (1972) e em praticamente todo o cinema desse autor singular.

‘Um Verão Escaldante’ é o filme mais linear e direto de Garrel nas últimas décadas, nele o diretor abandona um pouco a densidade e as texturas de planos isolados que caracterizam seu cinema para dar maior ênfase ao desenrolar da dramaticidade na continuidade narrativa do longa. Aqui os planos funcionam mais em detrimento um do outro do que na maioria de seus filmes, em que takes isolados de alguns segundos carregam um universo de significados e possibilidades. Isso não é um problema para o filme, embora o ótimo ‘Um Verão Escaldante’ não alcance a excelência de ‘Amantes Constantes’, ‘A Fronteira da Alvorada’ e o ‘O Ciúme’, só para ficar nos últimos trabalhos de Garrel.

‘Sniper Americano’, de Clint Eastwood

Por Fernando Oriente

Sniper AmericanoO novo longa de Clint Eastwood é um filme que deixa claro o quanto a guerra, os assassinatos em campos de combate e as consequências dessa carnificina são irreparáveis não só para as vítimas e os combatentes de ambos os lados, mas como para o povo dos países invadidos e para os cidadãos do país invasor que ficaram em casa acompanhando de longe a cobertura parcial e tendenciosa de uma grande mídia militarista. O cineasta não faz um discurso piegas e sentimentalista para explicar isso ao espectador, muito pelo contrário: ele conta uma história de maneira direta, narrativa, sem juízos de valor e usando das potências cênicas dos recursos espetaculares e da grandiloquência que um filme de guerra pode ter. Clint respeita seu material dramático e é fiel a ele. Acredita na capacidade de julgamento que sua obra desperta. Ele conduz ‘Sniper Americano’ com o mesmo vigor de encenação que caracteriza toda sua obra e é uma de suas maiores virtudes como cineasta.

Eastwood faz um retrato fiel da demência da guerra e de como ela é naturalizada dentro da sociedade americana exatamente por construir seu filme pela ótica do protagonista, do sniper, da máquina de matar criada e bancada pelo exército. Eastwood não julga seu personagem nem suas ações, apenas as expõe da maneira mais clássica e direta dentro dos códigos da escola norte-americana do cinema de guerra e de ação. Cabe ao espectador o papel de mediador daquilo que está vendo na tela. Não é o cineasta que tem mastigar um discurso pronto para o público e sim esse público que tem a capacidade de julgar, assimilar e interpretar aquilo que está diante de seus olhos. “Sniper Americano’ é, à maneira de Eastwood, um veículo para explicitar as questões do desmoronamento e da fragilidade da idéia do heroísmo, da banalização em torno da construção de mitos por parte da sociedade aliada a uma mídia ávida por celebridades e da vulgarização que a morte pode ter na cabeça das pessoas. Não por acaso, muitas das cenas em que vemos o sniper abatendo suas vítimas lembram demais imagens de videogame, em que acertar alvos não passa de um ato mecânico que contam pontos para o jogador de sofá.

Uma das melhores maneiras que o cinema tem para expor as entranhas e os mecanismos de determinadas situações, comportamentos, ações e implicações ideológicas é mostrá-las de dentro, sem filtros morais ou maniqueísmos. E Clint Eastwood é mestre em desenvolver esse processo, o que fica claro em ‘Sniper Americano’. Vilões e heróis são retratados na tela pela visão dos protagonistas. Esses não estão certos nem errados, estão apenas de um lado de toda uma situação complexa e, como a maioria das pessoas, fazem de tudo para defenderem esse seu lado contra o outro, o diferente, aquele que ameaça aquilo em que acreditam.

Em ‘Sniper Americano’ temos breves flashbacks que contam a história de Chris Kyle antes dele se tornar o mais temido franco-atirador do exército americano, ou simplesmente um assassino com permissão para matar em quantidades cavalares os inimigos no campo de batalha e ser glorificado por isso. Acompanhamos a trajetória de um jovem caipira do Texas que aprendeu a atirar com o pai, era incentivado a entrar em brigas para resolver seus problemas na escola (como defender o irmão caçula de apanhar), a praticar rodeio para provar sua macheza e que se revolta quando assiste pela televisão que alvos americanos estão sendo atacados em diferentes partes do mundo.

Como um típico jovem estadunidense pós 11 de setembro, alienado pela doutrina Bush da guerra ao terror e da defesa incondicional do EUA e de seus valores, Kyle resolve se alistar e se tornar um defensor armado da pátria, pronto para ir a qualquer parte do planeta para matar todos aqueles que a América considera seus inimigos. Ele é produto do medo débil torna cegos milhões de americanos que vivem eternamente com pavor do outro, do que é diferente, de que algo terrível que vai invadir seus lares, suas mentes pré-condicionadas e acabar com suas falsas liberdades baseadas no poder de decidir para onde direcionar o consumismo que mantém a roda da América girando. Essa composição de personagem de Eastwood é fundamental para o desenvolvimento da narrativa, das ações e dos subtextos que o filme carrega.

Essa liberdade individualista de defender seus valores contra tudo e contra todos está na base da formação dos Estados Unidos como nação. É o tão defendido liberalismo americano que se aplica na capacidade e na permissão que cada indivíduo estadunidense tem de defender por si próprio os valores fundadores de sua nação, bem como aquilo em que ele acredita ser o certo e que o define como indivíduo livre. Sim, esse mecanismo levou e leva cada vez mais os Estados Unidos a ações condenáveis, destrutivas e assassinas pelos quatro cantos do mundo. Mas na cabeça do cidadão médio norte-americano, isso não passa de defesa de valores nobres, algo que eles têm que fazer por conta própria, independente dos limites do Estado/Nação. É dessa forma que pensam os personagens de Eastwood. É dessa maneira que pensa e luta seu sniper herói.

O cinema clássico americano está cheio de exemplos desse individualismo que passa por cima de tudo e de todos para que o homem comum conquiste seus objetivos. Seja o arquiteto vivido por Gregory Peck em ‘Vontade Indômita’ (The Fountainhead) de King Vidor, os cowboys vividos John Wayne em longas de John Ford ou Howard Hawks, seja o injustiçado Spencer Tracy que faz de tudo para punir seus agressores em ‘Fúria’, de Fritz Lang ou mesmo a jovem atriz vivida por Anne Baxter em ‘A Malvada’, de Joseph Mankiewicz. E é o próprio Clint Eastwood como o policial Dirty Harry no filme de Don Siegel (e em todas as suas continuações).

É bom situarmos ‘Sniper Americano’ em seu tempo, os anos 2000. Uma época em que a valorização do militarismo, do soldado e de tudo que tem a ver com as forças armadas norte-americanas são praticamente endeusadas pela grande maioria dos estadunidenses. Época bem diferente do final dos anos 60 e da década de 70, quando o povo norte-americano estava revoltado com a guerra do Vietnã e as palhaçadas militaristas de Nixon, Kissinger e Cia. Ltda., além da crise financeira que abalava o sonho americano. Naquela época, o cinema da chamada Nova Hollywood produziu inúmeros filmes que expunham de maneira orgânica o horror da guerra e suas consequências e faziam disso sua matéria central e ponto de partida para a construção da encenação e da evolução dramático-narrativa. ‘Apocalipse Now’, de Coppola e ‘O Franco Atirador’, de Michael Cimino, só para citar dois exemplos emblemáticos. Em ‘Sniper Americano’, Eastwood expõe esse mesmo horror da guerra e suas consequências, só que do contracampo em relação aos filmes mencionados acima. É pelo lado da glorificação torpe e do heroísmo falsificado do soldado e de seus assassinatos em campos de batalha que Clint escancara demência da guerra.

É nas sequelas que ficam no emocional de seu protagonista (e dos demais soldados) ao retornar do Iraque que as consequências nefastas dessa guerra entram em cena. E é também nas cenas em que os iraquianos, após terem seu país invadido, grande parte de sua população assassinada e suas cidades destruídas, ainda lutam e tentam resistir e sobreviver contra a máquina de guerra americana por meio do desespero, com suas mulheres e suas crianças, com os poucos milicianos ainda capazes de dar uma resposta à barbárie que foram vítimas. Os árabes não são tratados como vilões no filme (eles são vilões para Kyle e seus colegas – o que gera mais um ponto de má interpretação se esquecermos que todo o longa é visto e conduzido pela ótica de Chris Kyle). Os iraquianos são o outro lado do protagonista, o diferente e ‘Sniper Americano’ deixa nítido o estado de desespero bruto a que eles foram relegados.

Sniper Americano 2Podemos fazer um paralelo bem interessante entre ‘Sniper Americano’ e o primeiro longa de Peter Bogdanovich, ‘Na Mira da Morte’. No filme de Bogdanovich temos um jovem que acaba de voltar do Vietnã e resolve se posicionar como um sniper em pontos de uma cidadezinha no sul na Califórnia e assassinar a esmo todos aqueles que passam na sua frente, só que as vítimas aqui são seus conterrâneos; é a guerra literalmente sendo trazida de volta para casa pela demência de seus mecanismos de funcionamento.

O crítico Marcelo Miranda fez um comentário precioso sobre o novo filme de Clint, ele diz que “Eastwood fez aqui um filme com a câmera à altura da mira de um fuzil”. É exatamente o que Bogdanovich fez em seu filme de 1968. Os mecanismos, as escolhas de mise-en-scène e o ponto de vista dos protagonistas são diferentes, mas o discurso da violência, da banalidade da morte e da ação abjeta de um sniper (ou simplesmente assassino, se quisermos abolir o eufemismo) são as mesmas. Cabe sempre ao publico os julgamentos.

Tempos diferentes, cineastas com formações político-ideológicas diferentes (Bogdanovich um progressista, Eastwood um conservador – mas com grande capacidade de autocrítica, o que muitas vezes é esquecido pelos que lêem seus filmes de maneira rasa), mas um discurso muito próximo, que por mais diferente que sejam as abordagens, o que retratam é extremamente similar. Lógico que muitos assistirão ao filme e sairão com a nítida sensação que Chris Kyle é um herói, mas não é essa a idéia de Clint Eastwood (o cinismo da comoção cívica em imagens de arquivo piegas que fecham o filme é mais um aprova da inteligência crítica do diretor). Cabe aqui a cada espectador ver aquilo que quer. É assim que o cinema deve ser.

‘Amantes’, de James Gray (2008)

Por Fernando Oriente

AmantesApós ‘Os Donos da Noite’ (2007), ‘Amantes’ (2008) e seu mais recente filme, o ótimo ‘Era Uma Vez em Nova York’, não é exagero considerar James Gray um dos maiores diretores surgidos nas últimas décadas e um dos melhores cineastas em atividade hoje. ‘Amantes’ (Two Lovers) parte de situações prosaicas envolvendo pessoas sem nenhum glamour e consegue se desenvolver como uma obra sobre o amor e suas muitas manifestações, possibilidades e negações como há muito não se via no cinema. ‘Amantes’ é um filme de personagens e seus dramas interiores, ou melhor, de Leonard (Joaquin Phoenix, ótimo). Por mais que a narrativa ofereça momentos de impacto pela sucessão dos acontecimentos, a força central do longa está nos tipos e em como eles reagem ao que acontece ao seu redor. A sutileza e a densidade das relações contidas no filme, as reflexões sobre o desejo e a carência, tudo gira em torno da complexidade que Gray injeta em seu protagonista e nos que o cercam.

O interior, a alma atribulada de Leonard faz com que o drama, elegantemente encenado e filmado com um domínio impressionante na composição de cada plano, ganhe dimensões incapazes de serem atingidas se não fossem orquestradas por um cineasta que consegue fazer o que quer do material oferecido pelo argumento. James Gray dá a intensidade exata, nada a mais e nada a menos, à dramaticidade das situações. As emoções complexas que envolvem Leonard e aqueles à sua volta são retratadas em planos sofisticados, decupados com criatividade e sutileza e sem que exista o menor resquício de sentimentalismos ou pieguice.

Leonard ganha vida em cada detalhe da impressionante composição de Phoenix. Gray sabe como poucos revelar as camadas mais profundas de seus personagens por meio de gestos, olhares, posturas em cena e na forma e na intensidade como cada frase é dita. Não é só o protagonista que atinge essa densidade existencial. As duas mulheres com quem se envolve (sua paixão, Michelle – Gwyneth Paltrow – e seu amor-refúgio, Sandra – Vinessa Shaw -) são tipos que permitem com que o diretor desenvolva seu discurso sobre as inter-relações de uma maneira original e que foge aos padrões saturados que o cinema contemporâneo usa para discutir o tema.

Os pais de Leonard também são figuras bem compostas, fundamentais para o desenvolvimento da dramaticidade proposta no roteiro; principalmente a mãe vivida por Isabella Rossellini, que transparece seus sentimentos em meio à ternura e à resignação em relação ao que pode fazer seu filho menos infeliz. A direção dos atores é notável, os deslocamentos dos personagens no quadro em relação ao preciso posicionamento da câmera constituem a base da mise-en-scène envolvente de Gray, que domina o espaço fílmico com muita inventividade e funcionalismo estético.

‘Amantes’ é um filme adulto. Algo raro em meio a tantas produções voltadas para pré-adolescentes e dramas que abusam de fórmulas requentadas de desenvolvimento engessado. O longa de Gray transpira as sensações que aborda, cria identificações sinceras com o espectador e faz com que seus personagens e aquilo que vivem na tela passem a ser refrações de um cotidiano atual e verossímil.

Leonard é um típico representante do desconforto que cerca as pessoas no mundo atual. Seu tipo pode ser visto em qualquer grande cidade do mundo, onde pessoas trombam nas impossibilidades de estabelecer um contato mais seguro com o próximo, onde a consumação do desejo e a certeza da consolidação do amor parecem tarefas inatingíveis; se adaptar ao insucesso, reprimir sentimentos e seguir adiante com o pouco que o outro pode nos oferecer virou uma espécie de regra que conduz as relações humanas em um mundo desencantado. É esse estado das coisas que Gray registra, mesclando o distanciamento analítico com a ternura que dispensa aos seus personagens.

O amor, o desejo e a necessidade de compartilhamento, temas centrais de ‘Amantes’, são abordados por meio da necessidade que as pessoas têm de serem cuidadas e de cuidarem dos objetos de seus desejos, da ânsia que move o ser humano pela ternura máxima que o amor pode assumir e que serve de porto seguro, de refugio aconchegante em meio à desesperança e a falta de rumo que impulsionam suas vidas solitárias. É um amor que protege e que chega a assumir um caráter maternal, como na resignação consentida do amor de Sandra por Leonard.

A maneira precisa com que Gray controla as emoções encenadas faz das reações dos personagens um termômetro do paradoxo que impulsionam suas ações. A contradição entre se atirar à força do que sentem e reprimir o desejo e resistir à quase certeza do fracasso em detrimento de uma segura proteção contra a dor da desilusão parece ser a tônica em um ambiente de incertezas. A tenacidade do olhar com que Leonard procura Michelle através da janela de seu quarto na esperança de captar sua imagem ecoa na obstinação com que ele a segue até a estação de metrô. Por mais que fique claro a não-consumação de sua crescente paixão, o personagem de Joaquim Phoenix é incapaz de resistir ao amor e ao desejo que o dominam de maneira cada vez mais intensa.

São os fluxos dessa paixão, contrapostos com os desígnios deixados claros pelo destino, que o atormentam ainda mais. A grandeza de ‘Amantes’ está em oferecer múltiplas possibilidades para seus protagonistas. A significação de um personagem para o outro se transfere entre os tipos. Michelle é para Leonard o mesmo que seu amante casado é para ela. Esses papéis duplos que eles assumem ganham força em Sandra, que representa para o Leonard a mesma segurança e o mesmo amor terno e protetor que ele deseja oferecer para Michelle.

Toda essa complexidade dramática é atingida por meio de premissas ordinárias. Da aparente simplicidade das situações, Gray é capaz de desenvolver uma narrativa envolvente, personagens densos e situações de beleza pungente. A cena em que Leonard se declara para Michelle na cobertura do prédio onde moram é primorosa. Os poucos planos, emoldurados pela luz azulada do dia que nasce, captam a intensidade desesperada com que ele escancara seus sentimentos. Ângulos fechados registram a intensidade desse encontro, em que as palavras se perdem nos olhares incertos e na visceralidade com que Leonard a toma em seus braços, contraposta à tristeza com a que a jovem se entrega; não a um amante consentido, mas a alguém capaz de abrigar um coração despedaçado.

‘Amor, Plástico e Barulho’, de Renata Pinheiro

Por Fernando Oriente

Amor, Plástico e BarulhoRaros são os filmes que conseguem penetrar o universo que recriam, com seus personagens, cenários, seus tempos próprios e todas as relações que surgem entre eles, de maneira visceral e plena. Incursões essas que geram imagens e dramas carregados de uma sinceridade cinematográfica que permite a esses filmes extrapolarem a mera recriação de uma realidade e transformarem-se em registros orgânicos de um universo característico. Essa organicidade é um dos dois principais fatores que conferem a força de ‘Amor, Plástico e Barulho’, longa de Renata Pinheiro.

O outro fator é a atuação magistral (sem nenhum exagero) de Maeve Jinkings como uma das protagonistas. Embora Nash Laila (que vive a outra protagonista) esteja muito bem no papel, ‘Amor, Plástico e Barulho’ é um filme que pertence a Maeve Jinkings, que tem alguns momentos em que sua presença em cena chega a um verdadeiro estado de graça.

O longa de Renata retrata duas cantoras da música brega de Pernambuco, um universo que tem seus códigos próprios, onde estrelas, sucessos, galãs e musas surgem e desaparecem em uma velocidade incrível. Esse fragmento do mundo das celebridades, que tem sua força isolada na cena musical das periferias do Recife e de outras cidades pernambucanas, serve como uma metáfora para a fugacidade da vida, para a maneira caótica com que o sucesso e a realização de sonhos surgem e evaporam da noite para o dia, deixando seus protagonistas perdidos em meio ao desgaste de tudo aquilo que viveram (de maneira meio capenga) e que não voltará a se repetir. A fragilidade dessas mulheres (bem como a força enorme que elas têm), a solidão em meio a um fracasso que não tardará a tomar conta de suas vidas, contamina os dramas bem como as ações e inações das protagonistas. Esse sucesso fugaz que elas vivem nunca chega a completar ou afirmar seus desejos de autodeterminação. Tudo é precário, como os lugares onde elas se apresentam, os programas toscos de TVs regionais, os videoclipes de vinculação no Youtube e os alojamentos onde moram e ensaiam.

Os espaços em que o filme se passa retratam bem a precariedade de um glamour pobre, improvisado. Tudo é um simulacro despojado daquilo que seria o verdadeiro mundo das estrelas. Dessa forma, a opção de Renata Pinheiro em se concentrar na rotina das protagonistas (suas viagens, o antes e o depois das apresentações, a morosidade da vida no alojamento onde moram bem como suas idas à praia ou a bares) e não nos shows e nas músicas, confere um aspecto humano e frágil ao filme. ‘Amor, Plástico e Barulho’ é sobre essas mulheres, os homens que circulam de maneira etérea em suas vidas, seus deslocamentos, seus silêncios carregados de uma frustração que não tardará a se concretizar. É um filme sobre corpos, sobre o suor, sobre desilusão, sobre a fragilidade de existir e tentar de auto-determinar como sujeito.

A câmera de Renata está sempre em ângulos fechados que aprisionam suas personagens nas limitações de suas vidas. Closes, imagens de pernas, seios, rostos cansados com suas maquiagens borradas dão o tom dá mise-en-scéne da diretora, além do forte destaque para as cores que pintam o cenário de suas existências como promessas de uma vida de brilho. As pequenas elipses que conduzem a narrativa levam de uma cena a outra sem deixar de intensificar a sensação de melancolia que conduz a existência das protagonistas.

‘Amor, Plástico e Barulho’ é um filme irregular, que não tem medo de se atirar naquilo que retrata e, com acertos e erros, mostrar um envolvimento orgânico com seus personagens e ambientes. São dessas imperfeições e das oscilações de intensidade entre as sequências que muitas vezes nasce aquilo de mais sincero e visceral do filme. Renata não tem medo de se envolver até a medula com suas protagonistas e seus dramas e tirar deles momentos passionais e humanos de grande força.

Não existe em ‘Amor, Plástico e Barulho’ efeitos rasos para seduzir o espectador, a diretora se mantém fiel as suas personagens e a relação delas com tudo que as cerca. É daí que Renata Pinheiro tira seu discurso sólido sobre um Brasil atual, esse dos anos 2000 e pouco, em que a realização de sonhos de consumo e estrelato passou a fazer parte do dia a dia de milhões de pessoas que antes apenas se resignavam na falta de oportunidades de suas vidas. Esse processo não esconde as carências da vida dessas pessoas e o filme é cruel em relação ao destino de seus tipos, mas sem jamais cair em pieguice e lamentos elitistas, nem tirar a energia e a força da personalidade de suas protagonistas. Renata vê suas cantoras, os dançarinos, DJS e demais personagens de igual para igual, sem filtragens classistas ou comiserações elitistas.

Uma cena antológica pode ser vista como a síntese do filme. Nela, a personagem de Maeve Jinkings, já sentindo a decadência de sua carreira, expulsa todos os membros da banda para afinar sozinha o microfone antes de um show em algum precário clube de periferia adaptado em casa noturna. Em apenas três planos, dois abetos e um com Maeve em close, a cantora, com lágrimas nos olhos e uma expressão de dor e raiva canta a capela o refrão de uma consagrada música brega. A decupagem mínima de Renata Pinheiro, os posicionamentos de câmera e a atuação monumental de Maeve Jinkings, que com a variação das expressões de seu rosto, sua voz (cansada, com alta carga de erotismo e raivosa ao mesmo tempo) e com olhares que trazem um universo de sentimentos, simbologias e sensações à tona, fazem da cena, além do ponto alto do longa, a materialização de todo o discurso do filme.

‘Depois da Chuva’, de Cláudio Marques e Marília Hughes

Por Fernando Oriente

Depois da ChuvaSão raros os momentos em que o cinema, o brasileiro em especial, consegue entrar em um período histórico e retratar não só suas questões políticas como também tecer comentários sobre aspectos existenciais e de formação de personalidade que marcam essa determinada época histórica. ‘Depois da Chuva’, longa baiano dos cineastas Claudio Marques e Marília Hughes, consegue tudo isso e vai ainda mais longe ao retratar os anos 80 no Brasil (particularmente o ano de 1984, a campanha para as eleições diretas para presidente a eleição e morte de Tancredo Neves e o fim aparente do período da ditadura militar no país) com uma profunda sinceridade e um apuro estético e narrativo que transformam o filme em um registro ao mesmo tempo poético e sensitivo do que vemos na tela, com as especificidades e detalhes característicos da época expostas em cada plano.

‘Depois da Chuva’ acompanha o adolescente Caio, um jovem de classe média que frequenta uma escola particular para a elite de Salvador. Em meio às tensões do país, que vive a campanha popular das Diretas Já e o aguardado fim formal do período da ditadura, Caio passa seus dias com jovens mais velhos que ele, em andanças pelos casarões abandonados do centro histórico da cidade, ouvindo música punk, bebendo, fumando e participando de um programa de rádio pirata anarquista que prega contra a falácia da transição democrática que o Brasil vive. Para eles, as eleições e o fim dos militares no poder não irá mudar o estado das coisas. Os mesmos detentores do poder ficarão no comando, a elite e seus velhos representantes manterão todo o poder nas mãos.

Ao mesmo tempo, a escola elitista que Caio estuda vive um período de eleição para um recém criado grêmio estudantil. Aqui os diretores usam o universo da escola, as discussões sobre o valor das eleições e o verdadeiro poder que os alunos podem ter por meio dos votos e de sua associação em grêmio como um microcosmo das questões nacionais que envolviam o Brasil da época. Caio, fiel a sua postura anarquista, se mantém contra as eleições e acha que todo esse processo não irá garantir nada de concreto aos estudantes. Por outro lado, Marques e Hughes mostram outros estudantes se envolvendo de corpo e alma no processo de eleição para o grêmio.

Os dois lados são muito bem compostos. Tanto a descrença de Caio que representa toda a desilusão de grande parte da esquerda que sofreu duramente após o golpe dos militares e o estado ditatorial no Brasil e aqueles que tinham esperança nas mudanças democráticas que eram prometidas para o país. Temos discussões e tensões entre alunos, o surgimento daqueles que querem o poder pela vaidade e pelos benefícios gerados por esse poder, os ingênuos que repetem discursos libertários clichês como o uso banalizante da canção de Geraldo Vandré ‘Pra Não Dizer que Não Falei das Flores’ e as reações dos ainda donos do poder, muito bem representados no filme pela postura reacionária da escola em relação a uma redação escrita por Caio.

O ponto de tensão dramático na adolescência de Caio é o surgimento de seu interesse por uma colega de escola, a jovem Fernanda. Fernanda é mais maleável que Caio, acredita nas eleições e participa do processo em discussões e tomadas de posição em relação ao que acontece durante esse processo. O amor faz com que Caio abra mão de seu radicalismo, descubra a vaidade de ser popular (o que o leva a se candidatar para presidente do grêmio) e o faz entrar em crise de identidade com relação à ideologia de seus amigos anarquistas e tudo aquilo em que ele acreditava antes.

Os personagens secundários são complexos e cheios de texturas. Alguns dos melhores momentos do filme acontecem quando temos em cena o radialista anarquista amigo de Caio. Mais velho que o protagonista, ele não abre mão de seu ceticismo e da desilusão que o guiam ideologicamente. A cena em que ele pergunta se alguém o escuta durante a transmissão de um programa da rádio pirata é uma das mais belas do filme. A presença de Fernanda também é muito bem explorada, tanto em questões de evolução narrativa quantos em termos de intensidade dramática.

Claudio Marques e Marília Hughes compõem uma encenação em que os planos são em sua grande maioria com a câmera fechada nos personagens e em constante movimento. Um movimento que reflete as ações e as inquietações desses personagens. Os espaços onde se desenvolvem as ações são revelados por meio desses deslocamentos constantes da câmera. Tipos, objetos e ambientes são revelados aos espectadores sempre em movimento, nas bordas do quadro, entrando e saindo de cena ou em planos de fundo em que a imagem se mantém intencionalmente desfocada e a granulação desse embaçamento aumenta a recepção sensorial da dramaturgia no espectador. Os planos estáticos, quando surgem, são sempre marcantes pela composição do quadro e no uso potente das variações e intensidades da luz.

A direção de “Depois da Chuva’ é leve, sensível e sempre em sintonia com personagens e ações. A música é papel fundamental no filme. Muitas vezes a montagem é composta de acordo com a trilha sonora, que sempre tece comentários e realça aquilo que vemos em cena, além de conferir uma constante agitação e pulsão interna que alimenta a mise-en-scéne.

As variações de posição política de Caio, as posturas ideológicas dos demais personagens e muitos discursos e idéias defendidos pelos tipos do filme representam de maneira crítica as ambiguidades e a ingenuidade política de um Brasil que ainda não tinha encontrado sua identidade política, estava (como ainda está) gravemente ferido por anos de ditadura e décadas de opressão do povo pelos eternos detentores do poder. O filme de Cláudio Marques e Marília Hughes não é nada ingênuo, e de maneira orgânica expõe as contradições políticas e ideológicas que caracterizam o Brasil até os dias de hoje.

Muito da visceralidade de encenação, a maneira passional e sincera com que mergulha no universo dos jovens, fazem ‘Depois da Chuva’ lembrar muito ‘Água Fria’, a obra-prima que o cineasta francês Olivier Assayas filmou nos anos 90. A inspiração em Assayas, a mise-en-scéne poderosa, as texturas e representações políticas e existenciais, o uso de um universo bem delimitado de valores culturais dos anos 80 e um recorte honestíssimo de um pequeno e particular universo de Salvador são apenas alguns dos méritos de ‘Depois da Chuva’, desde já uma das grandes estreias que teremos no cinema nesse ano.

‘Acima das Nuvens’, de Olivier Assayas

Por Fernando Oriente

Acima das NuvensEm seu novo longa, Assayas recupera um pouco a força que tinha perdido em ‘Depois de Maio’, seu irregular trabalho anterior. Em ‘Acima das Nuvens’ temos novamente a encenação visceral do diretor francês, sempre com uma câmera inquieta e uma decupagem ágil. A intensidade narrativa e a carga dramática do filme se relacionam o tempo todo com uma sobreposição entre o tempo presente dos personagens e suas ações e a relação que eles mantêm com o passado e o que trazem desse passado, num jogo entre tempos distintos em que o processo de envelhecer (amadurecer) e encarar as marcas do que foi vivido (e deixado de viver) implica em escolhas e enfrentamentos num presente incerto cujas certezas são postas em dúvida por sensações de incompletude e uma falsa estabilidade emocional.

Esses conflitos são colocados por Assayas dentro da relação entre as cenas que vemos na tela e o peso que o extracampo traz (sejam as memórias, as relações mal resolvidas, as imaturidades e o medo de envelhecer da personagem de Juliette Binoche; bem como o que o diretor apenas sugere, deixando a complexidades dos tipos ainda mais abertas). No filme, a atriz interpretada por Binoche aceita participar de uma peça que fez quando tinha 18 anos. Só que dessa vez, ela interpretará a personagem mais velha do texto (uma mulher de 40 e poucos anos que se destrói por amor e obsessão por uma jovem que a seduz). Aqui Assayas faz da relação da protagonista com as duas mulheres da peça uma projeção sobre suas texturas emocionais: ela é as duas ao mesmo tempo, uma se projeta na outra, e a vivência da personagem de Binoche faz com que sua relação com as duas protagonistas ganhe novos contornos constantemente e se projetem sobre o momento em que vive.

Não esperem de ‘Acima das Nuvens’ um filme da grandeza de outros trabalhos de Assayas, como os ótimos ‘Água Fria’ (1994), ‘Irma Vep’ (1996) e ‘Clean’ (2004), entre outros. Desde meados da primeira década dos anos 2000, o diretor parece ter optado por filmes mais contidos, em que arrisca menos e garante de forma segura (e cômoda) uma qualidade razoável para manter seu cinema acima da média do que se produz hoje. Seus longas continuam bons, muitas vezes irregulares, mas sempre interessantes de se assistir. A sensação que Assayas transmite é de um realizador consciente de seu talento, que aborda temas complexos que consegue desenvolver bem, mas que acaba por fazer concessões em relação a uma dramaturgia mais tímida e convencional (que as vezes flerta de maneira perigosa com o cinema publicitário – caso de ‘Depois de Maio’), em que a força da mise-en-scéne de seus melhores trabalhos dá lugar a uma acomodação apaziguadora que evita os arroubos de encenação pasteuriza as texturas dos dramas para acomodar tudo de maneira mais fácil para ser assimilado por um público mais conservador e genérico.

De volta a ‘Acima das Nuvens’ é interessante notar que Assayas, ao fazer Binoche ensaiar a peça com sua jovem assistente vivida por Kristen Stewart (muito bem no papel), faz a relação entre as personagens da ficção e da vida real se sobreporem e muitos conflitos são sugeridos a partir daí, mas Assayas também os mantém no fora de quadro, seja por elipses ou por cortes bruscos.

Ao lerem o texto, Binoche e Stewart projetam as relações ficcionais do texto no cotidiano em que vivem (na vida real), e as relações de poder que estão na peça são subvertidas em um jogo em que dominadora e dominada invertem papéis. Mas o grande mérito de Assayas é compor toda essa dramaturgia densa de uma maneira sugestiva, evitando excessos emocionais e indicando caminhos muito mais do que os explicitando. A presença sempre ótima de Binoche em cena aumenta a força do filme. Não é o melhor Assayas, mas ‘Acima das Nuvens’ está dentro da lista de bons filmes assinados pelo diretor.

‘Cópia Fiel’, de Abbas Kiarostami (2010)

Por Fernando Oriente

Cópia FielUm autor como Abbas Kiarostami é alguém capaz de apropriar-se do material que compõe sua arte, o seu fazer, e a partir daí confeccionar obras que dialogam entre si, afirmando e contrariando um trabalho após o outro. Ser um cineasta de primeiro escalão, artista ímpar em meio a diretores que vão de bons a medíocres, é saber se sobressair, é ir além do que se espera dele e dar rumos distintos a obra em aberto que realiza com o passar dos anos. Após depurar o máximo de seu cinema por meio de uma complexa e falsa simplicidade em experiências fantásticas como “Dez”, “Five” e “Shirin”, Kiarostami realiza ‘Cópia Fiel’, um longa falsamente convencional, mas que em suas múltiplas texturas, ambiguidades e inúmeras possibilidades de apreensão elevam seu cinema a um patamar ainda mais rico.

Só que agora são mecanismos mais diretos que ele utiliza para discutir realidade e ficção, (re)criação e representação, cópia e original, sentimentos, frustrações e anseios. Tudo isso é posto em cena no filme, mas por trás daquilo que vemos e também daquilo que Kiarostami nos induz a questionar, estão os sentimentos, estão os conflitos entre o que se deseja com o que se pode realmente obter; os mistérios e impossibilidades do real. Desejo, expectativas, o peso do passado e as incertezas sobre a possibilidade de re-apropriar da própria existência para nela imprimir novos códigos, novos rumos e até mesmo uma nova realidade, uma outra verdade.

Kiarostami constrói ‘Copia Fiel’ utilizando a perfeição os recursos que compõem o que de melhor um cineasta pode tirar da misé-en-scene, passando pela elaboração do quadro e o posicionamento das figuras dramáticas dentro desse quadro e de suas oscilações, os movimentos de câmera, a decupagem, a profundidade de campo, a sucessão temporal/espacial e a duração dos takes. Longos planos em travelling que contextualizam o movimento dos personagens no cenário, desvendando ambientes, situações e relacionando os tipos e as ações com o fora de quadro se intercalam com sequências em campo e contra-campo, em que o que está ausente da tela participa de forma sofisticada da diegese.

A duração do longa, uma manhã, uma tarde e um anoitecer reduzem o espaço às exigências de uma temporalidade pré-determinada. Os personagens encontram-se limitados a agir e a representar, imaginar e relembrar, a contrapor criação/invenção com as sombras daquilo que realmente existe dentro deles e no exterior a que estão inseridos. Tudo isso é emoldurado e amplificado por um registro de luz que comenta tudo o que vemos e guia as sensações que o filme provoca.

Um escritor e uma dona de um antiquário encontram-se na Toscana, parte da Itália que é muito bem descrita no longa como um museu a céu aberto, e esse encontro leva os protagonistas a partirem para uma discussão sobre a validade das cópias em relação ao original, a importância dessa cópias como afirmação real do valor do original. A parir daí, Kiarostami começa a penetrar as camadas que compõe seus tipos, desvela suas texturas dramáticas e começa a revelar os sentimentos e contradições, as expectativas e frustrações que compõem o interior de seus tipos.

A discussão entre o casal passa a abortar questões filosóficas e cotidianas, histórias corriqueiras da rotina de ambos, entram em cena comentários sobre trabalho, filhos, irmãs e cunhados. Ela tenta formular um discurso em que busca encontrar boas ações e nobres sentimentos que possam caracterizar um bom casamento, questiona a dificuldade de entender-se com o filho de oito anos. O que vemos nas falas da personagem de Juliette Binoche é uma tentativa de tornar o mundo e a relação entre os tipos algo próximo do que ela considera normal. É nesse momento que o escritor vivido por William Shimell passa a exercer o papel opositor/confrontador, aquele que potencializa o caráter dialético da discussão dos protagonistas.

Os conflitos estabelecidos pelas idéias e pelo discurso do escritor não levam o filme a um mero embate entre opiniões e desconfortos de gênero. Kiarostami passa a introduzir elementos que potencializam os questionamentos de seus personagens utilizando-se de um dos recursos mais básicos do cinema; a criação de uma ficção (farsa), que em ‘Cópia Fiel’ assume o papel do jogo entre os protagonistas em criar para eles uma cópia, uma simulação de uma relação entre um casal em crise após 15 anos de casamento.

Ambos assumem o papel do casal que após anos de união passam a trazer a tona seus descontentamentos, suas desilusões em relação ao outro. O ambiente em que se desenrola o filme e a impressionante capacidade de Kiarostami em contextualizar o espaço cênico, ampliando o que está sendo literalmente encenado pelos protagonistas em contraponto com aquilo que os cerca inunda o filme de sutilezas e aumenta o valor da relação entre real e encenado, enche seu filme de significantes e abre um leque de significados para o espectador.

Ao redor deles vemos obras de arte originais, cópias, locais históricos, turistas e um grupo de noivos e noivas que acabam por representar (paro os protagonistas) a esperança e a ingenuidade que ambos poderiam ter vivido anos atrás, se realmente (?) tivessem se casado. O que é real? O que é copia ou encenado? O ambiente? As obras e suas cópias? As sensações daqueles que entram e saem de quadro? A ficção encenada pelos protagonistas? Kiarostami lida com sentimentos e dúvidas reais, desilusões e esperanças primitivas, que existem desde os primórdios e que são reproduzidos com o passar dos anos, dos séculos. O que fazem os seres humanos a não ser copiar sensações e desejos antigos? O sonho de se relacionar bem como os desgostos com a realidade vivida não são sempre os mesmos? Mudam apenas de cenário, adaptam-se às circunstâncias e tentam se inscrever em diferentes modas e momentos ideológico-históricos.

O que Kiarostami faz é utilizar-se do poder ambíguo e sarcástico do cinema como recriador e amplificador da realidade. Não do real, mas de uma realidade inventada e desejada pelo autor, absorvida e projetada pelas múltiplas possibilidades da imagem, que como bem disse Godard: “Uma imagem nunca é inocente”. Para Kiarostami, os dispositivos do cinema são uma ótima maneira de se recriar o mundo como cópia, como simulacro, mesmo sendo essa cópia autenticada e cheia de possibilidades. Grande cinema.

‘Gran Torino’, de Clint Eastwood (2008)

Por Fernando Oriente

Gran TorinoClint Eastwood, ao lado de James Gray, pode ser considerado, no atual cenário cinematográfico norte-americano, o único diretor realmente autoral que trabalha diretamente com o cinema clássico (Cronenberg usa esses recursos, mas subverte na temática). É a partir dele que retira os elementos que constituem uma obra rica em densidade e de dramaturgia complexa e sofisticada. É no classicismo revisitado (com forte influência dos cinemas modernos dos anos 60, do cinema italiano e da nova Hollywood) que Clint expressa seus traços autorais. Com oitenta anos, o cineasta mostra cada vez mais domínio na direção e na condução de seus filmes e consegue traduzir sua visão social e política em longas preciosos.

‘Gran Torino’, filme de 2008, traz Clint como protagonista de uma história em que a tensão entre valores e princípios conduz a narrativa e o choque entre passado e presente se faz sentir por todo o filme. Esse conflito entre gerações, faixas etárias e culturas, tudo em meio a um clima de tensão onipresente, expõe um Estados Unidos onde as mudanças sociais e a o esfacelamento do sonho democrático e dos valores de bem-estar capitalistas ecoam por todos os lados. A América do fim da era Bush Jr é habitada por diferentes povos, que se sentem como invasores mal-quistos, e por americanos, que se sentem ameaçados por tipos estranhos que estão invadindo seu espaço e desvirtuando seus códigos morais. Essa “invasão”, que anuncia uma iminente explosão de violência, começa pelas periferias, local aonde os povos recém chegados se fecham em grupos, gangues e tribos para tentar sobreviver nesse ambiente inóspito.

O personagem de Eastwood é um representante de uma época que se apaga. Não é um tipo simpático a primeira vista; é preconceituoso, mal-humorado, misantropo e grosso com quase todos aqueles que o cercam. Essa rudeza de caráter é uma armadura que usa para reprimir seus medos, fracassos e o saudosismo que carrega de um tempo que não volta mais (bem como a constante presença do pensamento político conservador de Eastwood, que está em todos os seus filmes, mas sempre acompanhada de uma sofisticada autocrítica).

A figura de Clint ator, com todo o peso de sua história no cinema e a força de sua imagem que enche a tela com uma presença mais do que marcante, ajudam muito a moldar o personagem. Esse protagonista, anti-herói, lutou pela ideologia americana na Guerra da Coréia, trabalhou décadas como operário na linha montagem da Ford (símbolo do apogeu do capitalismo clássico estadunidense) e casou com uma boa moça de família com a qual construiu um lar e criou seus filhos no subúrbio romântico que agora é ocupado por diferentes tipos que não estão nem ai para a falência dos valores americanos que ele sempre defendeu.

O carro, cujo modelo dá nome ao filme, tem um valor simbólico fundamental. Ele representa, não só, os valores e o sucesso da ideologia americana pós-segunda guerra, como o aspecto estético dessa época. O veículo, que o personagem de Eastwood guarda como um tesouro, foi feito por ele e seus colegas operários na fábrica da Ford (uma das mega indústrias norte-americanas que mais sofrem com a atual crise econômica provocado pelas políticas de livre mercado do Estado oco de Bush). É um produto e um bem de consumo Made in USA com mão de obra local e que servia de modelo para a indústria mundial. Representava a qualidade, o desempenho e a opulência do estilo de vida de um país que acreditava no bem-estar gerado pelo capitalismo e na força do consumo e do dinheiro.

Tudo isso é lembrança e saudosismo no mundo de hoje e o carro serve apenas como significante dos princípios que norteiam a personalidade do seu dono. Para os personagens mais novos, o Gran Torino é um carro “cool”, um sinal de status, mas desprovido de valor simbólico. Ao passar o carro para o jovem asiático que “adota”, Clint está transmitindo tudo aquilo que acredita e tudo aquilo que sempre defendeu; é seu legado que passa para as mãos do garoto.

O final de ‘Gran Torino’ remete ao de ‘Os Imperdoáveis’, obra-prima que o diretor lançou em 1992. A tensão crescente do filme culmina em uma explosão catártica de violência, em que as ações a serem tomadas devem seguir princípios de reparação e justiça que conduzem os personagens e que acabam por consolidar a essência de suas personalidades. Só que em ‘Gran Torino’, Clint inverte o mecanismo de ação do protagonista; o caubói punidor de ‘Os Imperdoáveis’ vira vítima voluntária. Mas a mudança nos meios acaba por levar aos mesmos fins.

‘Gran Torino’ é cinema direto, narrativo e construído em cima de uma estética clássica atualizada, em que Clint Eastwood explora múltiplas texturas dramáticas e propõe diversas discussões. O diretor constrói a dramaturgia com clareza e transparência e põe as ações no centro das cenas. É dentro do quadro (mas sempre com o peso do extra-campo) que Clint desenvolve as tensões e os conflitos e explora de forma direta as sensações e os sentimentos do drama. Como em todos os seus filmes, o posicionamento da câmera e a composição do quadro são destaques a parte, bem como os movimentos que compõem os planos. A elegância e a discrição na direção são características típicas de Eastwood, que sempre prioriza a história que quer contar e os efeitos que dessa narrativa pode retirar.

‘O Ciúme’, de Philippe Garrel

Por Fernando Oriente

O CiúmeExiste no cinema de Garrel um elemento que é sensível ao longo de todos os planos, presente em cada sequência e matéria fundadora de seus temas, histórias e discursos: uma melancolia profunda e uma desilusão permanente em relação aos fracassos de sua geração em alcançar as mudanças sociais, políticas e existências que foram sonhadas e transformadas em lutas por eles nos anos 60. Esse sentimento amargo, Garrel transmite por meio da incapacidade de seus personagens se relacionarem, na fragilidade dos afetos, na incompletude e instabilidade dos relacionamentos que seus tipos vivem, na inevitabilidade dos afastamentos. Seus filmes são sobre rupturas, amores fugazes que se diluem e terminam em meio a uma melancolia que impede as pessoas de se auto-determinarem. Essa ferida que a geração de Garrel carrega é transmitida a todas as gerações seguintes.

Nos filmes de Garrel, os tipos são sempre condenados a uma solidão que não tem remédio. O outro nunca é suficiente para completar esse vazio que corrói corações e mentes de pessoas presas em um mundo já há muito desencantado, a existência é feita de desencontros, o eu de cada um nunca poderá ser completado. A inconstância da vida, a presença constante da possibilidade da morte (física e simbólica) tornam seus tipos ainda mais frágeis. Mas sobreviver pode ser ainda mais amargurante.

Garrel constrói tudo isso com uma elegância poética assombrosa. Seus planos isolados contêm um universo. Olhares, silêncios, diálogos fragmentados, tudo mostra a fragilidade dos tipos no momento da ação (ou inação) registrada, mas remetem a um enorme extra-campo onde as angústias do homem incompleto e fracassado existencialmente são o condicionante da existência. A câmera do diretor está sempre na posição precisa para o peso sensorial que ele extrai de cada tomada. Os travellings laterais, comuns em seus filmes, pontuam a movimentação constante de personagens que caminham sem um destino certo, que fazem do movimento (da câmera, do cinema) mais uma expressão desse deslocamento existencial sem sentido.

Esse universo de texturas múltiplas está presente de maneira preciosa em ‘O Ciúme’, um longa em que Garrel eleva seu discurso e seu forma fílmica a um potencial de sensibilidade estética assombroso. A decupagem de Garrel em ‘O Ciúme’ injeta uma força desconcertante nas cenas, reduz à essência os fragmentos de narrativa (as sequências isoladas unidas por elipses bem demarcadas) que compões a força do filme. Sequências em que três ou quatro planos trazem inúmeros significados, expõem as entranhas do que duas pessoas viveram e que termina diante da amarga leveza de frases interrompidas, lágrimas e a certeza de que rupturas são inevitáveis. Closes que traduzem todo o estado de espírito do personagem; suas almas são trazidas à tona nos ângulos de câmera fechados de Garrel. O tempo, o peso do tempo vivido, da incoerência do presente e da dúvida em relação ao futuro são elementos que contaminam cada imagem do longa.

A dor dos tipos é exposta em seu íntimo por meio de ações banais (o apagar de um abajur, os punhos cerrados do personagem de Louis Garrel sentado, uma porta que se fecha, mas que insiste em ficar entreaberta), olhares perdidos, silêncios pesados, diálogos interrompidos. Em ‘O Ciúme’ temos a força independente de cada sequência isolada se relacionando o tempo todo com aquilo que está fora do quadro: a vida, o não pertencimento, as angústias, a dor de existir. A paixão tão fugaz quanto o próprio existir.

Não são apenas os relacionamentos entre homens e mulheres (que se conhecem, se apaixonam – ou acreditam que se apaixonam -, se relacionam e se separam) que pontuam o filme. As dificuldades no convívio e nos diálogos com os filhos, a impossibilidade de encontrar no trabalho um espaço de segurança, as precariedades de se montar uma casa (algo minimamente próximo a um lar), tudo pesa para que os personagens de Garrel sejam apenas fantasmas em meio a um mundo em preto e branco.

Philippe Garrel se confessa herdeiro dos cineastas da Nouvelle Vague, o que se percebe em seus filmes, mas ele usa essas referências para construir seus longas com elementos extremamente particulares. Seu cinema é ímpar. Uma imagem ou um plano de Garrel são sempre inconfundíveis.

Garrel coloca em primeiro plano toda a poética do desencanto de viver, mas nunca cai em sentimentalismos. Suas cenas são de uma elegância espantosa, de uma contenção que condensa tudo na beleza amarga do que é visto (e principalmente sugerido) na tela e como isso se relaciona a um mundo imenso em que os personagens e as ações estão inseridos apenas como fragmentos. As angústias são retratadas por meio das sugestões, o interior de seus tipos é explorado e dissecado nas texturas poéticas de imagens ricas em significado, em construções de cena que buscam esses significados por meio da força dos significantes (os planos em si). Garrel é um cineasta da potência das imagens, das multiplicidades de leitura dos planos, de frases isoladas, daquilo que não é dito, da força significativa dos rostos, do que é sentido no olhar, nas expressões de seus personagens.

‘Nova Dubai’, de Gustavo Vinagre

Por Fernando Oriente

Nova DubaiO média de Gustavo Vinagre é um desses filmes de difícil classificação. Sua originalidade e inegável força vêm da transformação em matéria cinematográfica da própria estrutura dramática, das situações recriadas, da encenação direta e extremamente frontal e dos discursos enfáticos em relação às ambiguidades do lidar com o desejo (e com a superação dos interditos sexuais) e à precariedade do pertencimento do sujeito em um mundo atual de difícil diagnóstico. Transformação essa no sentido de devir, de vir a ser. ‘Nova Dubai’ é uma obra de resistência, um filme político ao extremo e, mais que tudo, um grande gesto. Gesto de confronto, de negação de um status quo homogenizador. Um gesto de resistência que procura de maneira direta a auto-afirmação dos sujeitos por meio de seus atos, suas pulsões e suas ações, bem como por meio de suas incompletudes, suas dores e pelas potências de seus corpos.

Gustavo Vinagre filma algumas das melhores e mais intensas cenas de sexo do cinema recente. De maneira frontal e agressiva, não esconde nada, é explícito. O sexo é afirmação ao mesmo tempo em que é confronto e dominação. Trepadas que sempre procuram o tesão e o gozo enérgico, que paradoxalmente subjugam e reafirmam normas ao mesmo tempo em que expõem a força da alma dos personagens por meio das explosões de seus corpos, dos jorros de seus fluídos, pelo ato de possuir e deixar ser possuído, pelo desejo sempre pronto para ser realizado. Sexo que é consensual e também ato de violência. Sexo que é tanto mostrado como narrado. Diversas vezes vemos personagens descrevendo seus atos sexuais detalhadamente, seja um para o outro ou mesmo diretamente para a câmera.

‘Nova Dubai’ é um filme em que personagens ocupam espaços, andam pelas ruas de uma cidade em acelerada transformação, fruto de uma especulação imobiliária que ergue em ritmo acelerado prédios, torres, conjuntos de edifícios e escritórios que violentam a paisagem e anulam as identidades urbanas e arquitetônicas. Um capitalismo imobiliário que cada vez mais toma conta de todos os cantos do país. Os personagens andam por construções, passam em frentes novos e cafonas prédios envidraçados em estilo de torres futuristas, conversam e trepam com operários da construção civil, transam entre eles em canteiros de obras e terrenos lacrados para futuras construções. Ocupar (e trepar) é resistir, mesmo que essa resistência seja condenada ao fracasso. ‘Nova Dubai’, por mais vigor que tenha em seus personagens e ações, é um filme melancólico, que indica que o gesto de resistência de seus protagonistas será aniquilado por forças muito mais destrutivas. É um filme sobre a inexorabilidade da morte que interrompe o desejo de ação e pensamento.

O filme de Gustavo Vinagre busca sempre os personagens, suas ações, suas histórias, o que vivem e viveram. Depoimentos são dados diretamente para câmera, o passado é lembrado entre recordações melancólicas, desejos não realizados e violências sofridas. Os tipos conversam constantemente, se desnudam em palavras. Tudo é falado de maneira natural e direta. A vida, as histórias e a própria existência dos personagens são matéria do filme por meio da força do texto falado, das descrições proferidas em frente à câmera e entre os personagens. Câmera essa que é presença física central em ‘Nova Dubai’, que não deixa de registrar nada, que tem interesse por tudo. A decupagem prioriza sempre a relação dialética entre os tipos humanos e os cenários, os deslocamentos do humano em meio a um espaço em degeneração identitária e simbólica.

O filme de Gustavo tem uma força visceral que parece ter vida própria. ‘Nova Dubai’ chega ao espectador como gesto bruto, necessário, natural e existencial de seu diretor. É a visão de mundo, o discurso do realizador traduzido com uma desafetação desconcertante em imagens, diálogos e movimentos. A mise-en-scéne de Gustavo Vinagre é uma extensão espontânea desse seu discurso, vai ao caminho oposto de muitos filmes atuais que seguem fórmulas e tendências pré-estabelecidas. ‘Nova Dubai’ evita o efeito raso dos afetos como inércia, dos deslocamentos como recursos vazios e meramente estatizantes. Tudo no filme tem peso, força e singularidade.

A sinceridade desconcertante e a brutalidade das cenas compostas por Gustavo são a força propulsora de um filme que busca a verdade imperfeita do discurso e das imagens, a franqueza da forma; o gesto em suas potências máximas. Gestos encenados, e, mais ainda, o gesto político maior de filmar.

VI Semana dos Realizadores: ‘É Tudo Mentira’, do coletivo No Passaran! e a seleção dos filmes do Indie Lisboa

Por Fernando Oriente

‘É Tudo Mentira’, do Coletivo No Passaran! (Brasil, 2014)              

Esse ano surgiram os primeiros filmes que tentam traduzir um pouco o que foram os protestos de rua no Brasil em 2013, principalmente os de junho. O melhor resultado foi alcançado pelo filme coletivo ‘Rio em Chamas’ (leia crítica aqui), que mesmo com suas naturais irregularidades entre os diversos segmentos, traz um forte conjunto de imagens, ficções e depoimentos que procuram levantar questões e propor um debate sobre o que aconteceu no país no ano passado, sem chegar a conclusões apressadas, ao mesmo tempo em quecoloca em cena as ações criminosas da PM. Por outro lado, tivemos o fraquíssimo ‘Junho – O Mês que Abalou o Brasil’, de João Wainer, em que o pior da estética publicitária, do tom oficial de grande imprensa e da visão elitista e classistapoluem o debate, tornam as conclusões rasas e manipulam os fatos para tendenciosas conclusões que buscam vilanizar e condenar manifestantes, atacar o Governo Federal ao mesmo tempo em que aliviam para a polícia militar e para os governos estaduais, principalmente o do PSDB em São Paulo.

É Tudo Mentira‘É Tudo Mentira’ não tem as texturas e a dialética de ‘Rio em Chamas’, que ao aliar imagens dos protestos e das repressões policiais a cenas de ficção e depoimentos, tem um poder de questionamento e de exposição interpretativa mais profundo do que foram as manifestações de 2013. Mas por outro lado, o filme do coletivo No Passaran! tem uma força enorme na variedade de imagens e registros (nas mais diferentes formas de captação e em diversas resoluções de imagens, indo do HD às câmeras de celular e transmissões em streaming) dos protestos, da violência dos policiais, da intensidade das massas nas ruas e do efeito catártico que os protestos atingiram.

Logicamente, os motivos, as intensões e as forças propulsoras das manifestações de 2013 foram as mais variadas, é impossível se chegar a consensos sobre uma ou outra reinvindicação principal. O que temos certeza é que os protestos começaram graças a uma intensa mobilização popular contra o aumento das passagens no transporte público e seguiram caminhos diversos, tendo causas urgentes como o direito à cidade, a democratização dos espaços, o fim da violência policial, a desmilitarização das polícias, os direitos LGBT, a igualdade de gênero exigida pelas mulheres, o direito à moradia por parte dos movimentos dos trabalhadores sem teto e o rechaçamentodas remoções forçadas e da ocupação física e simbólica do país pela FIFA, o COI e seus patrocinadores.

Em meio a todas essas causas, surgiram forças conservadoras que tentaram se aproveitar do momento de ebulição social para impor pautas capengas com base em moralismos e ataques ao Governo Federal, numa tentativa de impor mudanças no cenário eleitoral de 2014.

De volta a ‘É Tudo Mentira’. Além da imensa variedade de imagens e dos detalhes que essas imagens revelam, o impacto do filme vem primordialmente de uma edição vertiginosa, criativa e extremamente funcional, que funde sequências em ritmo frenético e acabam por envolver o espectador em meio à força dessas imagens e das ações que elas expõem de maneira frontal. ‘É Tudo Mentira’ é um filme manifesto, e como tal, naturalmente oferece um discurso em defesa dos protestos.

‘É Tudo Mentira’ também aponta o caráter de espetacularização que os protestos têm, um fator que acaba por entorpecer em uma espécie de êxtase os manifestantes e por transformar os atos nas ruas em verdadeiros happenings. Por outro lado, essa construção discursiva no interior do filme tende, em alguns momentos, a tornar as imagens, a matéria do longa e os próprios protestos em fetiche. Por vezes o filme se ancora demais nas músicas, no aspecto romantizado das ações espetacularazidas dos manifestantes e no ritmo intenso e entorpecente da edição. A sedução das imagens e dos sons aliados aos ideais nobres daqueles que tomam as ruas em nome de suas causas e com isso enfrentam uma cruel e fascista repressão da polícia e das forças de segurança é um elemento poderoso demais e, se usado sem freios de autorreflexão, questionamentos e proposições de conflitos, diluem as capacidades e as texturas de análise e debates do material central do filme.

Se por lado esse aspecto o longa fica refém do fetichismo, o papel dos grandes veículos de imprensa na manipulação dos fatos e das imagens é tratado de maneira preciosa. Várias cenas de telejornais da Globo, Globonews, Record e Bandeirantes são inseridos e mostram como esses veículos ultrapassam o patético em abordagens bisonhas dos manifestantes (taxados o tempo todo de vândalos e baderneiros), tentam desesperadamente deslegitimar as causas dos protestos ao mesmo tempo que defendem a polícia e os governos estaduais com falsas acusações aos manifestantes, mentiras e discursos oficiais de governadores (mais especificamente Geraldo Alckmin e Sergio Cabral).

‘É Tudo Mentira’ expõe o jornalismo mal feito, as manipulações mal intencionadas das grandes redes de TV (principalmente a Globo) e o quão ridículo é o discurso preconceituoso e reacionário de colunistas como Arnaldo Jabor, que tem duas de suas falas no Jornal da Globo, com uma distância de apenas alguns dias de uma para a outra, montadas paralelamente e que desmascaram a incoerência, a canalhice e o quão tendencioso Jabor é. São momentos constrangedores para o ex-cineasta e atual porta voz da moral da classe média desgostosa, mas de imensa diversão para o espectador.

Filmes do Indie Lisboa

Um dos grandes destaques da VI Semana dos Realizadores foi a inclusão de uma seleção de filmes portugueses que estiveram em edições recentes do festival Indie Lisboa, um dos mais conceituados do mundo em termos de cinema independente e contemporâneo. Os filmes exibidos na Semana foram escolhidos pelos próprios curadores do Indie Lisboa.

LacrauForam exibidos no festival carioca filmes como o longa ‘Lacrau’ (foto ao lado), de João Vladimiro, um ensaio simples e sofisticado que não segue nenhum preceito narrativo para registrar o sublime por meio de imagens e sons de paisagens e ambientes portugueses, do interior de país (tanto em uma vila, com seus moradores e suas pequenas ações, quanto em espaços abertos como florestas, rios e montanhas)aos cenários urbanos como o subúrbio de cidades, com suas construções em ruínas, sua arquitetura envelhecida e a presença espectral de seus moradores anônimos. Vladimiro registra tudo por meio de uma rigorosa construção de planos, variações constantes na captação da luz, mudanças na janela de exibição dentro da evolução do filme e constantes contrastes entre o foco e a granulação das imagens. Um filme que não perde a força em nenhum instante e mantém os sentidos do espectador sempre em estado de provocação entre a simplicidade e a beleza quase metafísica de suas cenas.

Outro filme português de impacto inegável é o média ‘Cama de Gato’, ficção dirigida por Filipa Reis e João Guerra. O filme faz uma abordagem frontal em estilo cinema direto para construir um realismo intenso, com câmera ágil, muito movimento dentro dos quadros e uma aproximação orgânica dos personagens. Sem apelar para situações abjetas, dramas intoleráveis e exploração de misérias, o filme retrata o cotidiano de adolescentes portugueses que enfrentam a precariedade da vida em um subúrbio pobre de Lisboa. ‘Cama de Gato’ é irregular, muito pela extrema visceralidade dos diretores, que levam a eventuais excessos narrativos, mas tem um tratamento do real próximo ao cinema dos anos 70, aquele de Pialat e Eustache, entre outros.

Outros destaques do Indie Lisboa na VI Semana dos Realizadores foram os três curtas do diretor Gabriel Abrantes (‘Liberdade’, ‘Taprobana’ e ‘Ennui Ennui’). Abrantes é um cineasta original, que trafega entre a sátira, a comédia, o cinema de invenção eo drama como muita competência e segurança. E ainda tivemos um belo e forte curta ‘Rafa’, dirigido por João Salaviza, que mostra claras influências de Pedro Costa, mas sem cair em emulações toscas.

‘Noite’, de Paula Gaitán e ‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente na VI Semana dos Realizadores

Por Fernando Oriente

‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente. (Brasil, 2014)

A Misteriosa Morte de PérolaO novo filme de Guto Parente é uma imersão claustrofóbica em códigos do terror psicológico por meio de uma manipulação precisa por parte do diretor de elementos básicos do cinema, mais especificamente a construção dos planos, os cortes e um uso primoroso do som, tanto dos ruídos quando dos efeitos e fragmentos musicais da banda sonora, além de um funcional uso das modulações da luz no quadro. ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ é um filme que usa as potências do terror e do suspense psicológico para construir um tecido dramático em que a solidão e as saudades são exploradas em seus efeitos mais extremos, como sentimentos perturbadores e destrutivos. A ausência do ser amado e a solidão provocada por uma vida isolada em outro país são transformadas em forças capazes de levar à loucura e a morte.

Parente compõe seu filme basicamente de planos estáticos, em que a composição do quadro, com suas variações de luz e cortes sempre precisos entre as cenas imprimem à mise-en-scène um vigor de onde o diretor extrai as potências da progressão do suspense e dos dramas, dramas esses que são construídos a partir das sensações da protagonista: a jovem Pérola, que se encontra em um país da Europa remoída pelas saudades de sua vida no Brasil e do namorado e pela solidão de sua nova rotina em um ambiente estranho.

O filme se passa quase todo no apartamento em que Pérola mora na Europa. Parente revela os ambientes desse apartamento detalhadamente, explorando os espaços e a relação entre os cômodos, ao mesmo tempo em cria tensões entre o ambiente interno da casa com o extracampo, aquilo que se passa do outro lado das portas e janelas do apartamento, aquilo que o espectador percebe apenas por meio dos sons, da luz e das angústias da protagonista.

As cenas que não são compostas de planos estáticos são as sequências oníricas dos pesadelos de Pérola e as imagens em VHS, tanto aquelas em que as memórias da personagem sobre sua vida no Brasil nos são apresentadas, bem como as que são feitas pelo seu namorado na segunda parte do filme, quando esse chega ao apartamento onde Pérola viveu seus pesadelos, acompanhado de sua câmera de vídeo.

As imagens de VHS são um achado estético do filme, as texturas e imperfeições do vídeo relacionadas com a memória e as saudades de Pérola, bem como as novas imagens que seu namorado grava no apartamento, tentando por meio delas encontra-la novamente, se contrapõem dialeticamente com as cenas gravadas em câmeras digitais modernas de alta resolução e montadas em planos estáticos. Dessa dialética nascem algumas das mais interessantes tensões do filme, em que Parente explora o valor das imagens dentro de um processo de definição das identidades por meio das memórias e a força que o registro visual tem de recriar o mundo e ressignificar os espaços.

Entre as várias referências que Guto Parente usa para fazer de ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ um filme rico em camadas de interpretação estão alguns elementos do Romantismo do século 19, sobretudo aquele de escritores como E.T.A. Hoffmann e Lord Byron, principalmente nas questões que envolvem os personagens e seus duplos e a intensidade de uma celebração do amor que se concretiza (apenas) após os tormentos da morte.

‘Noite’, de Paula Gaitán. (Brasil, 2014)

NoiteO novo longa de Paula Gaitán trilha caminhos que a cineasta conhece bem e explora há anos: o ensaio poético por meio de imagens, sons e potências da montagem. Em ‘Noite’, Paula compõe um registro extremamente pessoal da música e seus efeitos e relações com as pessoas nas noites do Rio de Janeiro. Nada no cinema da diretora é óbvio. Paula busca as sensações contidas no poder dos belíssimos planos que constrói, nos choques entre as sequências por meio da força do corte seco, nas capacidades das diferentes texturas de imagem que utiliza e no complexo trabalho de foco que impõem a cada take. Quando ela penetra um universo musical imagético como as noites cariocas, é sempre por meio de sua subjetividade que ela busca tecer seus discursos, captar e transmitir suas próprias sensações desse mundo que registra.

‘Noite’ é composto de planos fechados, em que o que interessa a cineasta são os rostos, as expressões, os corpos, o movimento e o suor daqueles que aparecem na tela. A música condiciona as ações de todos, sejam daqueles que dançam, dos que tocam instrumentos, catam, fazem discotecagens ou apenas observam e escutam as mais variadas melodias. A trilha sonora do filme é composta por diversos gêneros, que vão da música eletrônica ao jazz experimental, da MPB ao rock, do pop ao industrial.

Da mesma forma com que Paula Gaitán trabalha as distorções das imagens, seja pelas aproximações e movimentos bruscos de câmera, seja pela variação das granulações do quadro ou mesmo pela velocidade adulterada das sequências (com uso eficaz de variações de slow, sobreposições de planos em tempos distintos ou mesmo o congelamento das imagens) ela também trabalha o som, basicamente as músicas e os ruídos, dentro de registros distintos, em que as melodias são distorcidas, sobrepostas ou mesmo reduzidas a sons abstratos. Todo esse tecido estético permite a Paula ser subjetiva ao máximo dentro do processo do cinema de poesia que sempre cultivou. ‘Noite’ é um filme em primeiríssima pessoa, em que Paula Gaitán transmite um jorro de sensações visuais e sonoras por meio de um registro sensorial. É um filme que se sente, que trabalha na subjetividade de cada espectador.

Um das principais forças do filme vem do uso precioso que Paula Gaitán faz das luzes artificiais presentes nos clubes, casas de show ou mesmo nas ruas onde pessoas se juntam em função da música. As várias intensidades dessas luzes, os efeitos provocados pela variedade de cores e a relação entre os efeitos artificiais que as modulações das cores impõem às personagens e à própria imagem tornam a experiência estética de ‘Noite’ ainda mais envolvente.

Dos efeitos da música na noite carioca emergem corpos em êxtase, em movimento, em explosões eróticas latentes ou mesmo entorpecidos na inércia sedutora dos sons em meio aos espaços.

 

Cobertura da VI Semana dos Realizadores (parte 1)

Por Fernando Oriente

‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas (Brasil, 2014)

Sinfonia da NecrópoleEm seu primeiro longa solo, Juliana Rojas mantém várias características que marcaram sua carreira como curta metragista e que também estavam presentes em ‘Trabalhar Cansa’, o belo longa-metragem que ela assina em parceria como Marco Dutra. Mas em ‘Sinfonia da Necrópole’ vemos Juliana caminhar por novos caminhos e introduzir outros elementos em seu cinema.

Juliana sempre trabalhou dentro do registro dos gêneros cinematográficos, mais notadamente o horror e o terror psicológico. Nesse seu novo filme, o que mais chama atenção é a facilidade como a diretora encena com notável competência um filme de forte apelo popular, mas que não abre mão do rigor da construção e as texturas analíticas presentes na mise en scéne. ‘Sinfonia da Necrópole’ traz elementos carregados de comédia, conta com vários números musicais e ainda mantém o clima de suspense e terror psicológico que a cineasta domina tão bem.

A força dessa abordagem popular escolhida por Juliana é sustenta principalmente na construção do protagonista, o aprendiz de coveiro Deodato, um típico personagem do cinema clássico: jovem, simplório, recém-chegado a uma cidade grande vindo do interior, tímido e sensível. Deodato terá, ao longo do filme, a tarefa simbólica de completar sua jornada de iniciação na vida de uma grande metrópole como São Paulo. Ele irá aprender a viver em meio ao caos urbano e sua amplidão desordenada e desumanizadora, sentirá as dificuldades de adaptação ao processo de trabalho e ao ritmo de vida e ainda experimentará o amor, ao se apaixonar por uma colega de trabalho. Um amor (praticamente) não correspondido e constituído dentro dos preceitos clássicos do romantismo, como a admiração crescente e tímida do objeto de desejo e a idealização da mulher amada.

Juliana Rojas transforma o cemitério em que Deodato trabalha e onde se passam quase todas as cenas do filme em um reflexo estetizado de São Paulo. É a metrópole que se reflete na necrópole. Esse recurso permite que várias questões urbanas urgentes sejam inseridas simbolicamente por Juliana em meio aos dramas de Deodato.

A cidade representada, esse simulacro da metrópole que é o cemitério, enfrenta problemas como a desocupação forçada de imóveis (túmulos), a remoção compulsória (dos cadáveres) e a reorganização espacial urbana presente na verticalização dos espaços com a construção de novos túmulos dentro de pequenos “prédios”, que substituirão os antigos jazigos.

Toda essa alegoria é tratada com muita naturalidade e leveza dentro da encenação de Juliana. A mise en scéne é pensada em função dos movimentos evolutivos dos tecidos dramáticos (e cômicos) do filme. Situações de humor ingênuo (mas sempre perspicazes) são intercaladas por diversos números musicais de estilo clássico (em que os personagens dizem suas falas cantando e dançando). Momentos fantásticos em clima de cinema de horror, momentos românticos de sedução e devaneios de amor platônico também fazem parte do leque de gêneros que Julian costura com competência e ainda encontra espaços para tecer comentários sobre a finitude da vida e o conflito eterno entre a atração e o medo presentes na ideia da morte.

‘Sinfonia da Necrópole’ é um filme de encenação mais leve a ágil, algo que a proposta desse longa de Juliana exige. Não vemos a rigidez detalhista de encenação e decupagem presentes no trabalho anterior da diretora, o ótimo curta ‘O Duplo’, mas Juliana Rojas é uma encenadora de mão cheia e, em meio à leveza melancólica de seu novo filme, mostra sempre ótima composição de quadro, belos enquadramentos e elegantes movimentos de câmera.

Seu novo trabalho é apenas a mais recente confirmação do talento de Juliana Rojas. A facilidade como ela circula por gêneros diversos (e o apelo universal que esses gêneros carregam dentro de seus códigos internos), tanto em curta quanto em longa duração, fazem da diretora um nome certo para se esperar com ansiedade por seus novos projetos. Em meio a um momento de impasse da maioria do cinema contemporâneo praticado no país, Juliana é uma das que apresentam soluções criativas, complexas e ainda com sincero e natural apelo popular, que respeita o espectador sem nunca cair em formatos engessados ou vulgaridades.

‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa. (Brasil, 2014)

A Vizinhança do TigreO longa de Affonso Uchoa é um ponto alto do cinema contemporâneo brasileiro. É como se vários elementos característicos desse cinema encontrassem em ‘Vizinhança do Tigre’ sua melhor expressão. A construção coletiva do roteiro e a encenação da vida de jovens da periferia de Contagem por eles mesmos como atores. A busca de uma representação do real por meio da força de uma mise em scéne porosa entre os dramas, os personagens e os espaços das ações, bem como uma preocupação com o que de mais humano e corriqueiro existe na frugalidade do cotidiano, todos esses elementos estão em sintonia no filme. Nada é forçado e nenhum recurso usado pelo diretor segue fórmulas pré-estabelecidas.

‘Vizinhança do Tigre’ alterna cenas longas em que a simples presença dos personagens em cena, seus diálogos, silêncios, brincadeiras e os momentos em que se preocupam com a precariedade da vida que levam atingem um alto grau de encantamento. É a vida e seus pormenores, encenadas com talento por Uchoa, que dão força orgânica ao filme.

O diretor alterna cenas estáticas, em que o a variação da luz pontua o quadro com passagens de câmera ágil, que confere dinâmica as ações sem nunca abrir mão de destacar a força do que vemos em cena. Os gestos, olhares, as expressões de alegria, tristeza e preocupação dos personagens bem como a força das relações que estabelecem um com o outro são ressaltadas pela mise em scéne e potencializadas pelo cuidado como Uchoa constrói a evolução natural das situações.

A ternura que por vezes domina o filme vem da maneira sincera com que o universo do longa é composto. As gírias, o jeito de falar, as roupas dos meninos, as músicas que escutam e cantam, as preocupações com a aparência que cada um carrega traduzem códigos de autoafirmação de pessoas que vivem a margem da sociedade de consumo, mas que por meio de pequenos gestos e gostos, se inserem no mundo com identidade e autenticidade. Tudo isso é matéria central para a composição de Uchoa.

‘Vizinhança do Tigre’ é um filme que da sua aparente simplicidade extraí uma sofisticada concepção do mundo por meio de uma rica expressão cinematográfica e de uma encenação extremamente intensa e bem composta; é um filme político em cada fotograma, faz o espectador cúmplice do universo e das pessoas que retrata, um longa sobre a construção de identidades em meio à precariedade. Um dos grandes filmes do ano.

‘Flutuantes’, de Rodrigo Savastano (Brasil, 2013)

FlutuantesO filme de Savastano é um típico representante do momento de impasse do cinema contemporâneo brasileiro. Um filme que contém um sincero e visceral desejo de se fazer cinema por parte de seu diretor, um tema atual que de desdobra em subtemas também atuais, o registro documental por meio de encenações e explicitamento dos dispositivos cinematográficos, a busca pelo gesto afetivo e puro dos personagens e o amontoado de referências intelectuais que acabam se perdendo ou entrando em conflito com a evolução do filme.

Ao retratar a vida de dois personagens que tem suas vidas ligadas ao mar, ao lixo acumulado nas águas e a reutilização desse lixo para a fabricação simbólica e prática de objetos funcionais ou de valor estético, ‘Flutuantes’ alterna momentos fortes como alguns dos depoimentos dos protagonistas, a força de suas criações (as casas flutuantes e as obras de arte interativas e de função ecológicas), os espaços onde eles vivem e atuam com momentos em que se nota apenas o desejo do diretor em mostrar imagens belas em registros de captação improváveis e discursos políticos que perdem a força ao querem abraçar uma representação de mundo que vai além das capacidades de ação de seus personagens (que são ótimas por si só, não precisam ser ampliadas a padrões gigantes para terem uma força que já carregam naturalmente) e do próprio poder de ordenar a relação das imagens com esses discursos dentro dos dispositivos do filme. Um pouco mais de confiança em seus fortes protagonistas e um menor desejo de correlacioná-los a grandes questões universais dariam muito mais força e unidade ao longa

O filme de Savastano é irregular, mas não tem medo de se atirar nas suas intenções e acaba por se perder em alguns momentos justamente na inocência da ideia tão comum ao nosso cinema independente de que apenas as intenções, os afetos, as referências e o escancaramento dos processos cinematográficos garantem a força de um filme.

 

Semana dos Realizadores chega a sua sexta edição com a exibição de alguns dos melhores filmes brasileiros do ano

Por Fernando Oriente

VI Semana dos RealizadoresA VI Semana dos Realizadores, que acontece de 19 a 26 de novembro no Rio de Janeiro, conseguiu, por meio de um ótimo trabalho de curadoria, reunir alguns dos melhores filmes brasileiros do ano. Filmes que passaram em poucos festivais pelo país, mas ainda não entraram em cartaz, além de filmes que terão sua primeira exibição durante o festival. Mantendo o perfil de investir em jovens realizadores do cinema independente contemporâneo brasileiro, aliados à exibição de novos trabalhos de cineastas autorais consagrados, a Semana de 2014 conta ainda com uma retrospectiva completa dos curtas e longas do diretor Kleber Mendonça Filho, o mais consagrado autor da nova geração do nosso cinema. Kleber também dará uma Masterclass no evento.

Entre os filmes programados pela Semana desse ano já assistidos pelo Tudo Vai Bem, estão os altamente recomendados ‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa, ‘Batguano’, de Tavinho Teixeira, ‘Ela Volta na Quinta’, de Andre Novais, ‘Com os Punhos Cerrados’, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti e ‘Branco Sai Preto Fica’, de Adirley Queirós.

Outros longas (ainda não vistos pelo site) também chamam a atenção na programação, como ‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas, ‘Nova Dubai’, de Gustavo Vinagre, ‘Noite’, novo trabalho da talentosa Paula Gaitán (primeiro filme da cineasta após o ótimo ‘Exilados do Vulcão, vencedor do Festival de Brasília de 2013) e o novo longa do mestre Luiz Rosemberg Filho, ‘Dois Casamentos’.

Também fazem parte da programação da sexta edição da Semana dos Realizadores filmes do prestigioso festival português Indie Lisboa.

O Tudo Vai Bem irá cobrir a Semana dos Realizadores de 2014 e publicaremos críticas dos filmes ao longo do evento.

Para começar, seguem links com resenhas do site para dois belos filmes que serão exibidos no festival carioca desse ano:

‘Batguano’, de Tavinho Teixeira; lei crítica aqui

‘Com Os Punhos Cerrados’, de Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti; leia crítica aqui

Veja a programação completa da VI Semana dos Realizadores aqui

 

‘Pocilga’, de Pier Paolo Pasolini (1969)

Por Fernando Oriente

PocilgaEm “Pocilga” notam-se claramente alguns dos principais elementos com que Pier Paolo Pasolini construía seu discurso político-estético. Estão presentes no longa de 1969 tanto a retórica política ácida quanto a crueldade cínica com que o cineasta italiano enxergava a perdição da sociedade capitalista na era do consumo massificado (leia aqui a alienação da indústria cultural e o processo de massificação e aniquilamento de valores e das identidades sócio-culturais das sociedades). Pasolini parte de uma recriação simbólica e poética da realidade de dois tempos distintos para fazer dessas representações alegóricas comentários de um discurso sólido sobre o real estado do mundo em que vivia, sempre com uma câmera ágil, elipses acentuadas e uma encenação que busca destacar os efeitos, os simbolismos e os subtextos do que vemos na tela.

Os desejos viscerais sempre em choque com a dialética entre culpa e consentimento, os interesses acumulativos de uma burguesia sempre propensa a abraçar o fascismo com fervor na defesa de seus interesses individualistas e o massacre das ideologias diante uma máquina social impiedosa e trituradora. A redução do homem ao seu estado primitivo e animalesco. De um lado os donos dos poder e sua indiferença, suas mulheres coniventes, seus filhos alienados, do outro uma horda de miseráveis reduzidos ao mínimo denominador comum da sobrevivência.

A poesia da existência, o viver as pulsões em comunhão com a essência é uma impossibilidade para qualquer um em um meio em que apenas se perpetuam a continuação dos desmandos e a incessante crueldade de uma sociedade que não mede esforços para manter a estratificação de classes como condição básica de sua razão de ser. A fraqueza dos filhos dessa elite e o desamparo em que o capital abandona os fracos em uma seleção natural do viver pelo lucro se contrapõem com a ausência de humanidade com que seus pais, os provedores e mantenedores do status quo, se movem em meio à indiferença de conchavos e de cumplicidade. Esses pais, esses progenitores do lucro, manipulam vidas com a mesma funcionalidade com que operam seus negócios, mudam de rosto, assumem novos discursos, se unem e se aniquilam ao mesmo tempo em que seu ideário se perpetua por osmose.

A figura do pai é onipresente em “Pocilga’. Está nas duas histórias que se desenvolvem paralelamente. Na parte situada no século 16, Pierre Clementi faz um Cristo abandonado que perambula por uma terra desencantada e árida. O pai aqui já não existe mais, foi negado e devorado pelo filho pródigo, que ao devorar a carne humana, entra em comunhão com esses seres que sabe que não poderá mais salvar e que servem de alimento em meio à escassez de um mundo árido e miserável. No final de sua jornada, ao encarar uma morte em que não há possibilidade de redenção, encontra o êxtase na negação, na certeza de que a virtude não existe e de que a danação sempre abraçará a todos.

A história se desenrola em um tempo passado e apocalíptico, mas que pode, ao mesmo tempo, ser o futuro para o qual a sociedade retornará de forma cíclica; ambos como representação da distopia do mundo capitalista. No passado temos os miseráveis em cena, no presente os pobres estão quase sempre fora de quadro, entram em cena apenas para comunicarem o trágico desfecho do protagonista para, logo depois, serem condenados ao silêncio novamente (o gesto final de Ugo Tognazzi que encerra o filme).

Na história estrelada por Jean-Pierre Léaud, é a figura de seu pai, antigo nazista transformado em proeminente burguês da nova Alemanha capitalista que se destaca como esse agente manipulador cujo poder molda-se às transformações do tempo para legitimar a mesma abjeção de tempos passados.

A presença do lado visceral e instintivo do homem permeia o longa e move os personagens, mas a maneira de lidar com isso é que ressoa de formas diferentes. Essa condição básica, essa essência do ser humano, é tema constante na obra de Pasolini e a forma com que o mundo civilizado pelo capital nega essas pulsões naturais é uma das raízes de seu mal-estar ao mesmo tempo em que é fonte de lucro. O prazer é sempre carregado de culpa, existe, na maioria das vezes, no júbilo de se gozar aquilo que é negado, aquilo que é considerado imoral dentro dos valores burgueses. Esse desejo então é transportado, é direcionado para os extremos, para o grotesco, para perversão como um escape, como a superação dos interditos da moral. Uma perversão que purifica, que desprende o homem das regras morais e da conduta asséptica que a sociedade exige dele, mas que não o faz superar nada.

Esse grotesco que escandaliza a moral está presente nas duas histórias como o último recurso para aqueles que sentem que não há espaço para ideais revolucionários ou mesmo chances mínimas para autodeterminação dos seres. É um comentário de Pasolini sobre sua descrença na possibilidade de se mudar o mundo, é uma constatação do fracasso daquilo que gerou Maio 68 e de todas as esperanças da juventude da época. Essa profecia fúnebre de Pasolini está na desorientação que move tanto os personagens de Léaud como o de Anne Wiazemsky. Esmaga as possibilidades de ficarem juntos, condena a falsa inocência do conformismo idealista dela e reafirma a resignação dele. Ambos estão atados a incapacidade de tornar seus discursos ambíguos em ações práticas e muitas vezes esse fervor do discurso serve apenas para encobrir a indiferença e a alienação a que estão condenados.

É nesse momento que os personagens de Léaud e Clementi se aproximam, seguem juntos para o mesmo fim. O impulso de se entregar aos porcos, de “amar” essa representação do lado grotesco e metafórico do burguês, faz com que Léaud seja devorado por aquilo que ele é em essência, mas é incapaz de enfrentar em meio ao seu conformismo alienado. É devorado pela representação mais caricata da burguesia que o gerou, por aqueles cuja convivência ele nunca soube assumir ao mesmo tempo em que foi incapaz de negar. É a sua essência, é ao seu próprio lado sórdido que se entrega.

O canibalismo do Cristo de Clementi existe também como negação do meio e confirmação dos fins. Ele devora aquilo a que se assemelha, aquela carne da qual não pode salvar a alma, mas ao mesmo tempo se alimenta de sua essência, libertando-a. É esse impulso que o levará a uma morte já programada, mas incapaz de restaurar a esperança para uma sociedade condenada por seus próprios pais. A antropofagia está presente nas duas histórias, porcos e homens têm o mesmo peso simbólico para Pasolini.

‘Pocilga’ é um filme ligado diretamente ao trabalho anterior de Pasolini, ‘Teorema’ (1968). Em ‘Pocilga’ ele amplia o discurso sobre a essência do modus operandi burguês de que ele havia registrado o colapso existencial em ‘Teorema’. Nos dois filmes temos a presença da terra negra e seca que representa o deserto da alma humana. Nos dois filmes existe a luz dourada que por meio de rebatedores geram uma constante sensação de crepúsculo dentro dos planos. Crepúsculo esse que representa o estágio de toda a sociedade corrompida que Pasolini disseca com poesia e acidez.

38ª mostra de SP: outras duas pequenas críticas e alguns comentários

Por Fernando Oriente

‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, de Daniel Aragão. (Brasil, 2014)

Prometo um Dia Deixar Essa Cidae_Bianca Joy PorteMais um trabalho interessante de Daniel Aragão, ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’ é um filme melhor que o anterior do diretor, ‘Boa Sorte Meu Amor’ (2012). Em seu novo longa, Aragão se mostra mais passional com seu material, se arrisca ao extremo e não teme cometer excessos e se atirar junto com o filme na fúria dramática que conduz a narrativa. O resultado é um filme intenso, irregular, muito subjetivo, mas com camadas de interpretação variadas.

Toda a força do filme vem da atriz Bianca Joy Porte e da relação que se estabelece entre ela, a câmera e a encenação do diretor, que constrói tudo na relação visceral com sua protagonista. Tudo no longa passa pelo filtro da percepção e dos sentimentos da personagem Joli, vivida por Bianca. As angústias, as incertezas, a loucura, a força brutal, as fragilidades e a sensação de não pertencimento da personagem conduzem o tecido dramático e a evolução da narrativa.

Bianca Joy Porte realiza um trabalho excelente em ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’. Sua entrega física, emocional e psicológica ao filme fazem de sua atuação uma das melhores não só do ano, mas como dos últimos tempos. Bianca é uma verdadeira atriz de cinema, no nível das nossas melhores como Maeve Jinkings, Djin Sganzerla e Caroline Abras. São atrizes que vivem de forma precisa, em múltiplas texturas, qualquer personagem. Não carregam vícios de atuação em TV e nem interpretam a si mesmas, como acontece com muitos atores e atrizes consagrados, principalmente no Brasil.

‘Prometo Um Dia Deixar Essa cidade’ é um filme intenso, que tira o espectador da posição de conforto e que sabe que dramas são potencializados e se tornam mais poderosos dentro de uma relação aguda entre direção e atuação. Méritos para Aragão e, principalmente, para Bianca Joy Porte.

‘Anna’, de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi. (Itália, 1975)

AnnaFilme impressionante (no sentido de maravilhamento provocado no espectador) dirigido por Massimo Sarchielli e Alberto Grifi, ‘Anna’ é um belo exemplo da forma como o cinema da primeira metade dos anos 70, depois do advento do cinema moderno dos anos 60 e dos cinemas novos na mesma década, lida de maneira radical com o processo de recriação e reconstrução do real como mecanismo central.

O longa é um extenso processo de aproximação, reconhecimento e compartilhamento entre a personagem central (a jovem Anna, de 16 anos de idade, grávida e moradora de rua) a câmera e a mise-en-scène orgânica e direta dos cineastas. Temos um filme em que o suporte – a gravação em vídeo transferida para 16 mm – torna o filme sensível em sua matéria, em sua estrutura física de registro e processamento de imagens. Um filme em que as imperfeições da captação em vídeo (uma novidade com poucos recursos no início dos anos 70), as texturas desse formato ampliadas e misturadas com a granulação do 16 mm torna o processo fílmico em um objeto físico de apropriação do real.

O tempo todo somos lembrados dessa existência física, material das imagens dentro do suporte. Os diretores partem desse fator e criam dispositivos distintos dentro do filme que expõem e questionam a apropriação que fazem da realidade e dos dramas que encenam e recriam. A agilidade dos movimentos de câmera permitida pelo uso do vídeo, sua capacidade de zoom e seus closes extremos dão uma inquietude constante na evolução do filme.

Os longos planos em que os personagens (Anna, os diretores, a equipe do filme e pessoas do círculo de amizade deles) discutem os mais variados temas, como nas impressionantes cenas captadas de maneira frontal dos debates políticos e sociais na Praça Navona em Roma, as cenas em que a intimidade de Anna é explorada em seus mínimos detalhes pela câmera (planos de seu corpo nu, de sua barriga de grávida, de seus seios de gestante) como na notável sequência em que a garota toma banho e um dos diretores caça piolhos em sua cabeça, bem como as passagens em que se discute o próprio processo da feitura do filme (com exposição dos microfones, falsos racccords e os debates sobre como serão rodadas uma sequência) tudo isso faz de “Anna’ uma explosão de realidade bruta na tela.

É interessante notar a relação que ‘Anna’ tem com o monumental filme de Robert Kramer ‘Milestones’ (1975), rodado e lançado na mesma época. O filme de Kramer tem proporções continentais e uma infinidade de personagens, enquanto ‘Anna’ se restringe a um universo bem mais fechado de espaços e personagens. Mas a relação de desnudamento e exposição de um momento sócio-político e cultural (tanto na Itália de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi quanto nos EUA de Robert Kramer) atinge a mesma intensidade nos dois longas. E, ambos os filmes, remetem ao tratamento que o diretor francês Jean Eustache dá a apropriação do real, principalmente em filmes como ‘Les Mauvais Fréquentations’ (1963) e ‘A Mãe e a Puta’ (1973). Tudo isso, e muito mais que só se percebe ao assistir a o filme, faz de ‘Anna’ uma obra-prima.

 Mais alguns comentários sobre destaques da 38ª Mostra internacional de Cinema em São Paulo

Do Que Vem AntesDentro da programação da Mostra em 2014, vários filmes merecem críticas e análises. Entre esses, o excelente novo filme do filipino Lav Diaz, ‘Do Que Vem Antes’ (na foto ao lado), em que temos um trabalho impressionante de encenação, construção de planos e um tratamento primoroso do tempo. Um longa que elabora uma sofisticada reconstrução da memória dentro da história recente das Filipinas. Em um filme de 5 horas e 40 minutos, Lav Diaz constrói uma narrativa sólida, ancorada no poder das imagens, na força autônoma de cada sequência e em que nada é supérfluo. Nem um minuto sequer do longa existe sem uma razão e uma função. Sua duração é exata, o filme dura o tempo que precisa durar. Um dos grandes filmes de 2014.

‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do americano Thom Andersen traça um painel da maneira como a cidade foi representada no cinema ao longo da história. A primeira parte é usada por Andersen para construir um painel sobre identidade, representações, espaços urbanos, arquitetura e evolução histórica de Los Angeles. Na segunda parte, o cineasta entra em análises complexas sob um viés político, social, simbólico, cultural e crítico da relação entre a cidade e os filmes que a retratam.

Outros longas merecem destaque: o uso originalíssimo e complexo que o mestre norte-americano do cinema experimental Ken Jacobs (com 82 anos de idade) faz do 3D em ‘Os Convidados’. Jacobs parte de um curta de 1896 dos irmãos Lumière para, por meio do uso de fotogramas desse curta em sobreposições de imagens que geram o efeito em três dimensões, fazer um estudo sobre perspectivas de quadro, função das imagens, profundidade de campo e da própria evolução da relação entre imagem e cinema ao longo dos tempos. ‘El Mudo’, filme peruano dirigido pelos irmãos Daniel e Diego Vega, faz um retrato seco e direto dos dilemas ético-morais que assolam as sociedades latino-americanas por meio da história de um juiz obcecado pelos valores do trabalho, da justiça e do direito. ‘Jauja’, do argentino Lisandro Alonso e com ótima presença de Viggo Mortensen como protagonista, é o melhor filme de Alonso desde ‘Los Muertos’ de 2004.

E ainda um destaque especialíssimo para a antológica sessão com três curtas (‘Lacrimosa’_de 1970, ‘O Porto de Santos’_de 1978 e ‘O Tigre e a Gazela’_de 1977) e o seminal longa ‘Noites Paraguayas’ (1982) do cineasta e fotógrafo Aloysio Raulino. Uma sessão toda em cópias 35 mm restauradas pela Cinemateca Brasileira.

 

Pequenas críticas de filmes da 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (1)

Por Fernando Oriente

‘A Vida Invisível’, de Vítor Gonçalves (Portugal, 2013)

A Vida InvisívelSem dúvida, um dos melhores filmes dentro da Mostra desse ano. O longa de Gonçalves é um primoroso tratado sobre o tempo suspenso, a solidão e a incapacidade de agir. O protagonista Hugo vive imerso nesse tempo suspenso. Na inação e na solidão em que passas seus dias ele carrega o peso de um passado de memórias mal resolvidas, desencantos, rupturas e experiências deixadas por viver. Em meio a isso, ele enfrenta questionamentos existências sobre sua vida incerta como um foragido do mundo e receios em relação ao seu próprio futuro, que se refletem na morte iminente de um amigo de trabalho e nas impossibilidades de se relacionar com a mulher que ama.

Esse complexo tecido dramático é construído por Gonçalves por meio da força dos planos, em que a composição radical do quadro, a autonomia das sequências e as elipses narrativas gradualmente tecem uma carga dramática sensorial que se infiltra por toda a matéria do filme. Filme de sensações, em que tudo é sugerido pelo poder do discurso das imagens, pelo rigor como o quadro é geometricamente composto e na maneira como os planos são compostos como representações dos tumultos existenciais de Hugo.

‘A Vida Invisível’ traz um dos mais sofisticados tratamentos de luz vistos no cinema recente (comparável a ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa – não acaso, os dois filmes são fotografados por Leonardo Simões). As sequências com luminosidade subexposta, a relação entre os focos de luz em meio a penumbras e sombras, o uso dramático dos ambientes escuros como reflexos da alma do protagonista, as diferentes texturas de luminosidade do quadro e as sequências em que a luz é abundante (seja no fundo do plano através de janelas ou em sequências a beira mar) são um dos pilares fundamentais da grandeza estética do filme.

Muitas das questões existenciais e dos elementos dramáticos (tratados com alto teor de sofisticação) e as opções estéticas de ‘A Vida Invisível’ remetem a temas caros para o cinema e a arte portuguesa, bem como lembram o rigor do quadro e o uso dos planos como agentes significantes presentes no cinema de Michelangelo Antonioni.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierComo era de se esperar, conhecendo o cinema de Paul Vecchiali, seu novo filme ‘Noites Brancas no Pier’ se confirma como mais um ótimo trabalho na carreira do diretor. Feito com orçamento baixíssimo, essa adaptação da novela curta de Dostoievski usa estruturas básicas de mise-en-scène, uma montagem enxuta feita a partir de elipses curtas e se apóia na força e nos sentidos paradoxais da palavra.

São várias cenas noturnas, em que um casal se conhece, tornam-se amigos e contam suas vidas um para o outro, noite após noite. Ele é um solitário que se encontra em fase de recolhimento, ela é uma jovem que aguarda o retorno do grande amor de sua vida. Na evolução do relacionamento entre os dois, em meio às vivências compartilhadas, ele se apaixona por ela e ela passa ver nele uma salvação para caso seu amado não regresse.

Tudo isso é encenado de maneira frontal e epidérmica por Vecchiali, com os personagens sempre em primeiro plano, dividindo a tela, ou com apenas um dos dois no quadro, enquanto o outro escuta próximo, mas fora de campo. O diretor trabalha esses primeiros planos pra dar ênfase ao texto falado, por vezes desfoca o ouvinte para deixar a nitidez naquele que fala e em outros momentos deixa quem está proferindo o discurso sob a luz enquanto aquele que ouve fica um passo a trás, na penumbra. Os diálogos são ditos em ritmo lento, ressaltando a sonoridade e as significações das palavras. Principalmente o personagem masculino diz seus textos de uma maneira antinaturalista (muito próxima ao estilo de Straub e Huillet) ao mesmo tempo em que ele evita demonstrar seus sentimentos por meio de gestos, expressões ou olhares. Os planos de fundo estão sempre fora de foco, aparecem como blocos de escuridão, luzes em flou, ou meras massas de cores opacas em meio à escuridão.

Trata-se de uma história de encontros e desencontros, recheada por vivências e experiências que os personagens carregam. São tipos frágeis, que vivem na incerteza do presente e nas dúvidas do que está por vir. Pessoas solitárias que projetam em seus sonhos uma variedade de esperanças tímidas, de possibilidades precárias. O que Vecchiali faz, com sua encenação direta e a força que coloca na palavra é oferecer dois seres humanos que representam toda uma humanidade que sonha, sofre, teme, mas sempre espera por algo que os tire da banalidade. Um verdadeiro banho de humanidade.

‘Salto no Vazio’, de Marco Bellocchio (Itália, 1980)

Salto no VazioUm dos melhores filmes da carreira de Bellocchio, o que já faz dele um dos imperdíveis da 38ª Mostra. Em ‘Salto no Vazio’, o cineasta italiano aborda um tema caro em sua obra: as relações tensas dentro do seio da instituição familiar e o caráter político que elas assumem. Temos no longa uma das mais radicais incursões de Bellocchio nesse terreno, um filme que trata a família burguesa como patologia e suas estruturas de dominação como expressão primal dos impulsos reacionários que comandam a sociedade. Além disso, ‘Salto no Vazio’ é um cruel retrato dos efeitos abjetos do machismo e do massacre psicológico e castrador sofrido desde sempre pela mulher.

Com uma encenação fortíssima, que carrega na complexidade das camadas narrativas para elevar as texturas dramáticas a extremos de tensão, Bellocchio usa estruturas alegóricas de sobreposição de tempos, referências à tragédia grega e ainda compõe um painel sobre os papéis políticos das classes sociais na Itália do final dos anos 70 e início dos 80, com o pano de fundo do choque (sempre fora de quadro e pouco mencionado na diegese) entre o conservadorismo democrata cristão, a presença de valores de anarquismo libertário e os ecos das ações das Brigadas Vermelhas e demais grupos de extrema esquerda, além da derrocada da representatividade dos partidos comunistas e socialistas tradicionais. Ao situar um drama íntimo em meio a uma instabilidade político-social de alta magnitude, Bellocchio faz de seu microcosmo dramático um fragmento que representa e amplia os valores e a significação da situação nacional italiana da época.

‘Winter Sleeps’, de Nuri Bilge Ceylan. (Turquia, 2014)

Winter SleepsCeylan é um caso raro no cinema. Após três filmes muito ruins – ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008) – em que fazia emulações embusteiras do cinema moderno europeu, principalmente Antonioni, o diretor turco fez o bom ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011). ‘Winter Sleep’, seu último longa em cartaz na Mostra desse ano, é mais um bom filme (embora inferior ao anterior), o que mostra que o cineasta encontrou uma maneira e um estilo de fazer um cinema sólido e autêntico em que faz fluir seus discursos e idéias.

Em seu novo trabalho, Ceylan volta ambientar todo o longa na região da Anatólia na Turquia. Seus dois últimos filmes mantêm um forte diálogo entre si. Se em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ tínhamos elementos do cinema policial, em ‘Winter Sleeps’ Ceylan já dirige seu discurso para o terreno do drama familiar e social. Mas a relação entre as ações de tipos carregados pelo peso do passado, os conflitos reprimidos no interior dos personagens que rompem em tensões dramáticas cheias de ressentimentos e uma situação de confronto insolúvel entre classes sociais estão presentes de maneira epidérmica nos dois filmes. É notável como em fazer filme com duração maior (2hora e 37 minutos em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ e 3 horas de 20 minutos em ‘Winter Sleeps’) Ceylan encontrou a maneira certa para desenvolver com firmeza suas narrativas e trabalhar bem as questões dramáticas dentro de uma relação mais bem construída com o tempo e os espaços dos planos e sequências.

‘Winter Sleeps’ chega a ter momentos fortíssimos, em que uma encenação sólida e uma decupagem funcional criam cenas marcantes, como as discussões cheias de crueldade e violência reprimida entre o protagonista e sua irmã e depois com sua mulher. As tensões familiares, a força dos conflitos entre os irmãos, a família afastada em um lugar atemporal no interior de um país dialogam diretamente com o universo de Anton Tchekhov, com quem o filme faz referências explícitas que merecem destaque até nos créditos finais. Nuri Bilge Ceylan virou um bom diretor, ‘Winter Sleeps’ é a prova que ‘Era Uma Vez em Anatólia’ não foi um acaso, e sim o momento em que Ceylan encontrou a força de seu cinema.

‘Non-Fiction Diary’, de Jung Yoon-Suk. (Coréia do Sul, 2013)

±¤ÁÖ ÁöÁ¸ÆÄÀÇ ÇöÀå°ËÁõEsse documentário sul-coreano faz um belo painel da história político-econômica e social recente da Coréia do Sul (sem deixar de contextualizar com épocas mais antigas na história do país) por meio de um fato principal (os assassinatos em série cometidos por um grupo de fanáticos) e dois paralelos (os desabamentos de loja de departamentos e de uma ponte). As três tragédias ocorreram entre 1993 e 1995, período em que a Coréia saia de um regime militar e entrava em uma democracia de orientação neoliberal. Outros assuntos são levantados durante o longa, como o perdão aos ditadores e seus crimes cometidos, questões envolvendo a exploração religiosa dos acontecimentos, a pena de morte na Coréia bem como os caminhos que o desenvolvimento acelerado trouxe para o país. É impossível ver o filme e não pensar no atual momento coreano, com sua economia inchada em meio à mega-corporações como Samsung e Hyundai, entre outras

O tema central no discurso do diretor Jung Yoon-Suk são os efeitos contraditórios e muitas vezes nocivos que o desenvolvimento capitalista traz para um país de terceiro mundo que se encontra em fase de crescimento econômico. Esses efeitos são sentidos por todos os lados e parecem ser inevitáveis consequências de imposições inerentes ao capitalismo, como as desigualdades sociais, a obsessão pelo lucro o descaso com a população em geral e a ausência de uma presença regulatória e protetora do Estado.

O filme é construído por meio de muitos depoimentos, mas ao contrário de inúmeros documentários que apenas acumulam testemunhos de forma rápida demais, esses depoimentos de ‘Non-Fiction Diary’ se relacionam entre si, ampliam as questões e os questionamentos levantados bem como sempre retomam temas e os aprofundam ainda mais. Imagens de arquivos bem editadas, textos impressos e imagens feitas nos dias atuais potencializam o caráter dialético do filme. ‘Non-Fiction Diary’ serve muito bem a nós brasileiros, principalmente se lembramos das políticas neoliberais insanas aplicadas por FHC no Brasil nos anos 90, na relação conivente que a Justiça brasileira tem com os criminosos da nossa ditadura que continuam impunes e nos conflitos que surgem decorrentes de desigualdades sociais aberrantes.