Gran Torino

‘Gran Torino’, de Clint Eastwood (2008)

Por Fernando Oriente

Gran TorinoClint Eastwood, ao lado de James Gray, pode ser considerado, no atual cenário cinematográfico norte-americano, o único diretor realmente autoral que trabalha diretamente com o cinema clássico (Cronenberg usa esses recursos, mas subverte na temática). É a partir dele que retira os elementos que constituem uma obra rica em densidade e de dramaturgia complexa e sofisticada. É no classicismo revisitado (com forte influência dos cinemas modernos dos anos 60, do cinema italiano e da nova Hollywood) que Clint expressa seus traços autorais. Com oitenta anos, o cineasta mostra cada vez mais domínio na direção e na condução de seus filmes e consegue traduzir sua visão social e política em longas preciosos.

‘Gran Torino’, filme de 2008, traz Clint como protagonista de uma história em que a tensão entre valores e princípios conduz a narrativa e o choque entre passado e presente se faz sentir por todo o filme. Esse conflito entre gerações, faixas etárias e culturas, tudo em meio a um clima de tensão onipresente, expõe um Estados Unidos onde as mudanças sociais e a o esfacelamento do sonho democrático e dos valores de bem-estar capitalistas ecoam por todos os lados. A América do fim da era Bush Jr é habitada por diferentes povos, que se sentem como invasores mal-quistos, e por americanos, que se sentem ameaçados por tipos estranhos que estão invadindo seu espaço e desvirtuando seus códigos morais. Essa “invasão”, que anuncia uma iminente explosão de violência, começa pelas periferias, local aonde os povos recém chegados se fecham em grupos, gangues e tribos para tentar sobreviver nesse ambiente inóspito.

O personagem de Eastwood é um representante de uma época que se apaga. Não é um tipo simpático a primeira vista; é preconceituoso, mal-humorado, misantropo e grosso com quase todos aqueles que o cercam. Essa rudeza de caráter é uma armadura que usa para reprimir seus medos, fracassos e o saudosismo que carrega de um tempo que não volta mais (bem como a constante presença do pensamento político conservador de Eastwood, que está em todos os seus filmes, mas sempre acompanhada de uma sofisticada autocrítica).

A figura de Clint ator, com todo o peso de sua história no cinema e a força de sua imagem que enche a tela com uma presença mais do que marcante, ajudam muito a moldar o personagem. Esse protagonista, anti-herói, lutou pela ideologia americana na Guerra da Coréia, trabalhou décadas como operário na linha montagem da Ford (símbolo do apogeu do capitalismo clássico estadunidense) e casou com uma boa moça de família com a qual construiu um lar e criou seus filhos no subúrbio romântico que agora é ocupado por diferentes tipos que não estão nem ai para a falência dos valores americanos que ele sempre defendeu.

O carro, cujo modelo dá nome ao filme, tem um valor simbólico fundamental. Ele representa, não só, os valores e o sucesso da ideologia americana pós-segunda guerra, como o aspecto estético dessa época. O veículo, que o personagem de Eastwood guarda como um tesouro, foi feito por ele e seus colegas operários na fábrica da Ford (uma das mega indústrias norte-americanas que mais sofrem com a atual crise econômica provocado pelas políticas de livre mercado do Estado oco de Bush). É um produto e um bem de consumo Made in USA com mão de obra local e que servia de modelo para a indústria mundial. Representava a qualidade, o desempenho e a opulência do estilo de vida de um país que acreditava no bem-estar gerado pelo capitalismo e na força do consumo e do dinheiro.

Tudo isso é lembrança e saudosismo no mundo de hoje e o carro serve apenas como significante dos princípios que norteiam a personalidade do seu dono. Para os personagens mais novos, o Gran Torino é um carro “cool”, um sinal de status, mas desprovido de valor simbólico. Ao passar o carro para o jovem asiático que “adota”, Clint está transmitindo tudo aquilo que acredita e tudo aquilo que sempre defendeu; é seu legado que passa para as mãos do garoto.

O final de ‘Gran Torino’ remete ao de ‘Os Imperdoáveis’, obra-prima que o diretor lançou em 1992. A tensão crescente do filme culmina em uma explosão catártica de violência, em que as ações a serem tomadas devem seguir princípios de reparação e justiça que conduzem os personagens e que acabam por consolidar a essência de suas personalidades. Só que em ‘Gran Torino’, Clint inverte o mecanismo de ação do protagonista; o caubói punidor de ‘Os Imperdoáveis’ vira vítima voluntária. Mas a mudança nos meios acaba por levar aos mesmos fins.

‘Gran Torino’ é cinema direto, narrativo e construído em cima de uma estética clássica atualizada, em que Clint Eastwood explora múltiplas texturas dramáticas e propõe diversas discussões. O diretor constrói a dramaturgia com clareza e transparência e põe as ações no centro das cenas. É dentro do quadro (mas sempre com o peso do extra-campo) que Clint desenvolve as tensões e os conflitos e explora de forma direta as sensações e os sentimentos do drama. Como em todos os seus filmes, o posicionamento da câmera e a composição do quadro são destaques a parte, bem como os movimentos que compõem os planos. A elegância e a discrição na direção são características típicas de Eastwood, que sempre prioriza a história que quer contar e os efeitos que dessa narrativa pode retirar.

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