Críticas

‘Todas as Cores da Noite’, de Pedro Severien

Por Fernando Oriente

Todas as Cores da NoiteO primeiro longa de Severien confirma o talento que o diretor havia mostrado em seus curtas anteriores, ‘Canção Para Minha Irmã’ (2012) e principalmente o ótimo ‘Loja de Répteis (2014). ‘Todas as Cores da Noite’ (que será exibido dentro da programação da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que tem início no próximo dia 21 de outubro) é um filme que se mantém todo o tempo no campo das tensões existenciais, dialoga diretamente com o cinema de gênero – no caso o suspense e o horror psicológico -, mas faz tudo isso de uma maneira densa, compondo camadas de dramaticidade, deslocando o espectador constantemente de sua posição de conforto e desenvolvendo um discurso complexo e aberto que pode ser visto como um grande pesadelo, um caos existencial em que personagens se deslocam entre um presente suspenso no tempo (uma espécie de limbo) e marcas do passado, marcas essas carregas de ressentimento, vazio emocional, mágoas e uma violência reprimida que pode explodir a qualquer momento. Os personagens constantemente se projetam em outros, assumem sentimentos e dores do outro, suas vidas esvaziadas de sentido ganham projeção no que foi vivido pelo outro. Temos um recorte de um mundo burguês, em que tipos de classe média alta agem como zumbis em meio à falta de sentido de suas vidas e a pulsão constante de agredir qualquer um que esteja ao seu lado. A inércia das vidas vazias é sempre compensada pela violência, física ou emocional.

A narrativa do estranho e deslocado tempo presente nos coloca em contato com uma mulher (Iris, interpretado por Sabrina Greve em mais uma atuação fortíssima), moradora de um apartamento de luxo, de frente para o mar, que acorda após uma festa e encontra um cadáver em sua sala. Ela pensa que não conhece ou não lembra quem é o morto, chama uma antiga amiga, que não via há tempos, para ajudá-la a se livrar do cadáver. A partir desse evento, o filme se abre para narrativas do passado, em que Iris, sua amiga e a misteriosa empregada que chega ao apartamento contam histórias trágicas e fantásticas envolvendo pessoas e eventos de seus passados. O fortíssimo prólogo do filme conta com Iris narrando em um monólogo a história de Tiara, uma amiga de infância que atropelou e matou um amigo da turma após uma festa e depois sofreu com as consequências até sumir e não deixar rastros. Toda essa história aparece em flashback na tela em imagens e sons, montadas em elipses bruscas, em que os fatos que vemos na tela são pontuados pela narração em off de Sabrina Greve.

O paralelo entre Iris e Tiara é estabelecido logo no início, a presença dessa amiga (que ninguém sabe exatamente o que aconteceu com ela, embora no prólogo Iris dê sua explicação para o desaparecimento da garota, em uma cena em que a violência gráfica se destaca como um dos pontos altos do filme) irá se projetar nos temores e nas incertezas e na própria personalidade de Iris, ela irá se ver refletida na angústia e nos tormentos dessa amiga desaparecida. Temos o início de uma espiral em que as existências dos personagens começam a se fundir, a se refletir e se moldar uma nas outras. O tom do filme é de um constante pesadelo, um tempo suspenso em que as cenas são contaminadas por uma atmosfera de tensão muito bem impregnada em cada plano pela encenação precisa de Severien. A relação de ódio e descaso, os rancores que as personagens têm em relação a Iris vão surgindo. A amiga que vai ao apartamento para ajudá-la narra (em outro monólogo com grande intensidade dramática) fatos traumáticos de sua juventude enquanto Iris dorme, logo depois, após Iris fisicamente agredir e ser agredida pela empregada, a amiga se dirige à protagonista com um ódio intenso e ritmado, calcado pelo rancor que carrega há anos, e a humilha em um discurso de alta carga de crueldade. Iria é constantemente agredida e provocada, mas não reage. Ela é perturbada pela presença do cadáver, pela crise existencial e pela angústia que marcam sua vida e vem à tona de maneira violenta após a morte do rapaz em seu apartamento, é confrontada pela empregada, que em outro grande monólogo do filme narra uma história fantástica com elementos de horror surrealista (baseada em um conto escrito pelo próprio Pedro Severien) e sofre as ofensas da amiga, tudo sem reagir. Seu rosto está sempre transtornado por desespero, vazio existencial, impotência, incapacidade de (re)agir e dor. O tom de pesadelo reflete o interior da personagem de Sabrina Greve.

'Todas as Cores da Noite'A conclusão de ‘Todas as Cores da Noite’ é um dos pontos altos filme. Numa cena belíssima, em que o filme se atira de vez ao fantástico, Iris conversa com o cadáver, que em mais um monólogo narra uma história de seu passado, em que conta como foi cruel como uma antiga namorada. Ele termina dizendo que foi até a festa de Iris por achá-la muito parecida com essa namorada (outra personagem que também desapareceu) e pergunta de Iris não é ela. Iris diz que se lembra, conta uma história sobre os dois no passado e se projeta em uma outra mulher, novamente fundindo sua identidade com um outro imaginado e se joga ao rapaz numa belíssima cena de sexo, cheia de tensão, melancolia e angústia. Severien acerta em cheio ao manter todo seu filme no registro do anti-naturalismo, sempre aberto ao fantástico, as sobreposições de tempos e identidades, com uma tensão constante, que vai do horror ao desespero existencial, mas tudo encenado com rigor e contensão, o que torna a experiência sensória do filme muito mais densa e complexa.

Toda a força do filme se consolida materialmente na tela graças à excelente mise-en-scéne de Pedro Severien, que funciona o tempo todo ligada ao discurso; a construção das estruturas formais do longa trabalham em sintonia com as propostas narrativas e dramáticas, bem como com as atmosferas e os temas que Severien trabalha em ‘Todas as Cores da Noite’. Diretor de talento, ele compõe precisamente cada plano, a decupagem é rigorosamente trabalhada em função das tensões dramáticas e das brechas narrativas que aumentam a sensação de desconforto e uma composição do quadro que é construída minuciosamente, com enquadramentos que potencializam os espaços e a presença fantasmática de personagens atormentados em cena, a distância entre câmera e personagens varia de acordo com as modulações da tensão imposta aos planos, temos ângulos fechados e claustrofóbicos intercalado com planos abertos e estáticos que tornam e estranheza dos espaços, das presenças dos personagens e das ações ainda mais intensas. A fotografia é centrada nas variações da luz, que ditam as sensações das cenas, pontuam e preenchem o quadro com ainda mais estranheza. A direção de arte permite um uso narrativo marcante dos espaços – o apartamento é como um personagem do filme, um invólucro para os dramas, para as sugestões e para a onipresente tensão que dominam e marcam o filme. Outro detalhe enriquecedor de ‘Todas as Cores da Noite’ é o constante plano de fundo nas cenas internas do apartamento de Iris: pelas janelas sem cortinas vemos apenas a vastidão do mar esverdeado, o que isola ainda mais os tipos dentro do espaço a que estão confinados com seus dramas, angústias e sentimentos reprimidos. Após a força de seus curtas, Pedro Severien chega ao longa e se mostra como um dos mais interessantes realizadores brasileiros contemporâneos, daqueles que passamos a aguardar com ansiedade por seus próximos trabalhos.

‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’, de Petrus Cariry

Por Fernando Oriente

Clarisse ou Aguma Coisa Sobre Nós DoisO cinema de Petrus Cariry se concentra no tempo e nos espaços. A grandeza e amplidão dos espaços e o peso de múltiplos tempos que se somam e se sobrepõem, o tempo presente multifacetado que carrega fragmentos e o peso dos tempos passados, dos tempos vividos, lembrados ou imaginados. O ser humano sempre aparece deslocado em meio a essas forças, potências muito maiores que suas existências mínimas. Clarisse, a protagonista do novo filme de Petrus é talvez a sua personagem mais deslocada de todas. Seu desconforto não é só em relação aos ambientes, ao peso do que foi vivido e as incertezas do presente. Seu deslocamento se manifesta na forma como ela se relaciona com todos a sua volta, seu marido, sua filha e seu pai. Existe um claro desconforto que pauta as relações e o convívio de Clarisse com todos a sua volta. ‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ é o filme mais tenso de Petrus Cariry, nele temos explosões de violência simbólica, dor e angústia colocadas em primeiro plano. A precariedade do ser humano, suas limitações físicas e existências e o peso da morte, da finitude assume um caráter material no longa.

A ternura melancólica que marcava a relação entre os personagens nos longas anteriores de Petrus ‘O Grão’ e ‘Mãe e Filha’ cedem espaço em ‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ ao conflito, ao ressentimento e ao desespero reprimido que por vezes transborda em ações extremas. Clarisse (Sabrina Greve, ótima como sempre) viaja para encontrar seu pai (Everaldo Pontes), que vive recluso em uma casa na Serra de Maranguape, próxima a Fortaleza. A relação de Clarisse com o pai e pautada na distância e na ausência de afeto e é marcada pela morte prematura da mãe da protagonista e principalmente pela morte do irmão de Clarisse quando ainda era criança, vítima de uma tragédia. Seu pai encontra-se doente, fraco, próximo do fim. Seu corpo carrega o peso da decomposição, sua carne é marcada por feridas, é uma carne que apodrece.

Na casa isolada onde seu pai definha lentamente, Clarisse entra em contato com os traumas do passado, com elementos formadores de sua personalidade, em rusgas marcadas no tempo que ela carrega como feridas na angústia e no desconforto existencial com que vive sua vida. Petrus sobrepõe de maneira densa na encenação o tempo passado esmagando o presente. Clarisse sonha com o irmão morto, ouve gravações de áudio em que a voz da mãe anuncia a proximidade de sua morte, ouve a voz do irmão momentos antes de morrer e escuta sua própria voz de criança, seu outro eu. É o conflito entre a Clarisse do passado sendo perseguida pelos fantasmas dos que já morreram e por ela mesma, a Clarisse menina, frágil que chama pelo irmão sem obter resposta.

Tudo na casa é carregado pelo tempo passado, por um tempo morto que insiste em se sobrepor ao presente. Os espaços por onde os personagens se deslocam é marcado pela presença física de um tempo multifacetado, por traumas e dores que se instalam nos ambientes, que esmagam os tipos; uma presença temporal densa e onipresente. Petrus Cariry constrói tudo isso por meio de uma mise-en-scéne primorosa. Todos os seus planos são minuciosamente preparados e pensados em seus detalhes. Desde os posicionamentos de câmera, a composição de quadro tanto nas cenas em ângulo aberto quanto nos fechados, a disposição dos personagens e objetos no plano, tudo potencializado por uso completo do scope, em que o diretor trabalha todo o quadro. Os planos são longos, sentimos a duração das ações e dos gestos dos personagens, reparamos em cada detalhe dos ambientes que a câmera de Petrus registra, dando força máxima aos espaços enquadrados. Os movimentos de câmera são suaves, lentos, as panorâmicas deslocam o olhar do espectador dentro da relação formal da construção dramática construída na valorização do tempo das ações. Quando surgem os travellings, esses são potencializadores de tensão, são usados sempre em que o desconforto, a tensão ou a proximidade de algo perturbador se anuncia.

‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ é um filme em que a dialética entre o imaterial e o material marca toda a dramaturgia. Ao mesmo tempo em que a encenação de Petrus Cariry constrói e potencializa a presença dos múltiplos tempos e suas relações com os espaços, temos um destaque frontal ao corpo dos personagens. Os corpos são perecíveis, frágeis e incapazes de comportar todo o peso existencial e as complexidades das subjetividades que formam a essência identitária dos indivíduos e suas dores. Mesmo os corpos mais jovens podem morrer a qualquer instante, os que sobrevivem caminham para a decomposição, para a fragilidade da carne cada vez mais exposta. Clarisse, uma mulher jovem tem no seu corpo um limitador de seus desejos, seja quando faz sexo sem sentir nenhum prazer com marido, seja quando sangra ao ser picada por um inseto ou mesmo na sequência poderosa em que se masturba com violência e desespero e o sangue brota de seu sexo num misto de dor e ódio.

O sangue e sua relação com a carne são simbólicos para Petrus Cariry compor uma alegoria desse sangue como algo que pulsa mais forte do que a carne é capaz de conter. O mesmo sangue que saiu do corpo do irmão morto de Clarisse para marcar a finitude da carne é o sangue que irrompe na impressionante sequência final em que o sexo desesperado de Clarisse com seu marido faz jorrar muito sangue para afirmar sua existência, seu desejo sendo concretizado em meio à dor, ao desgaste e a limitação do corpo. O corpo, a carne é incapaz de comportar todo o peso da existência humana e de seus desejos, bem como é incapaz de reprimir o sangue de ser expelido para fora do corpo; sangue que materializa as pulsões. Para existência ir além da carne, além dos invólucros do corpo é necessário que o sangue jorre e reafirme a vida, o desejo e as pulsões ao mesmo tempo em que não irá garantir a sobrevivência carnal ou mesmo existencial de ninguém.

‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’, de Sidney Lumet (2007)

Por Fernando Oriente

Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está MortoO conceito de “looser” (perdedor, fracassado) é um dos maiores complexos que assolam a sociedade nos Estados Unidos. País símbolo do capitalismo de mercado e da capacidade de consumo, habitat natural do “self made man”, a terra do Tio Sam não permite que seus filhos sejam frustrados economicamente e que não possam consumir tudo o que desejam; a vida e a felicidade de seus cidadãos dependem do sucesso que eles têm em termos de dinheiro e poder de compra. Ser um perdedor é não ter capital para bancar a existência plena dentro do “sonho americano”.

‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’, último filme de Sidney Lumet, centra sua trama na tentativa de dois irmãos de cometerem um roubo perfeito e com isso resolverem seus problemas financeiros. Andy (Philip Seymour Hoffman) e Hank (Ethan Hawke) são atormentados por diferentes motivos que os fazem sentirem-se loosers. São cobrados por familiares, pressionados por dívidas e, principalmente, carregam uma ambição incontrolável de encontrar a felicidade através do dinheiro.

O ambiente em que vivem e, sobretudo as relações que têm entre eles e com todos que os cercam são pautados pela amoralidade – no sentido em que valores morais não têm peso nem significado afetivo. Lumet mostra um universo onde códigos éticos e não encontram espaço. O cineasta adentra o espaço da família, o que teoricamente seria o último baluarte dos valores nobres entre os indivíduos (o ideário patriarcal da felicidade e segurança do ser humano como agente do capitalismo), e o decompõe. Desde o início do longa, essa desconstrução familiar é conduzida com vigor pelo diretor, até o final, em que literalmente a família americana e seus valores são implodidos.

‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ tem momentos em que o drama atinge potências máximas, tudo dentro de uma orquestração precisa de Lumet, baseada na força da montagem fragmentada, nas escolhas de posicionamento e movimentação de câmera (bem como na variação entre os enquadramentos), na decupagem das cenas – que são de uma funcionalidade dramático-narrativa impressionante, na intensidade da encenação e na maneira como a narrativa se encorpa e ganha ainda mais força na parte final do filme, quando mergulhamos de vez numa jornada de destruição e explosões de violência que envolve todos os personagens. A tudo isso se some ainda a presença monstruosa de Philip Seymour Hoffman, em uma atuação desconcertante.

A montagem não-linear e cíclica é um dos principais trunfos de ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’. Esse recurso (que muitas vezes é utilizado para camuflar defeitos e fraqueza narrativa ou até mesmo criar um “perfume’ estético para filmes rasos) é muito bem aproveitado por Lumet. A montagem descontínua ajuda a construir tensão dramática e suspense, refletir o interior fraturado dos personagens além de permitir que os esses personagens ganhem densidade ao longo do filme, já que os mesmos acontecimentos são registrados repetidas vezes, cada uma delas pelo ponto de vista de um dos protagonistas. Esse processo de decomposição e multiplicação de pontos de vistas da narrativa potencializa a jornada dentro caos em que os tipos estão inseridos desde o início e o que os levará claramente ao abismo. Essa tensão é a base da força evolutiva do longa, o que permite que Lumet conduza o espectador, sem perder o ritmo, do thriller ao melodrama trágico (pois o filme tem muito da tragédia no sentido clássico, mas não se rende totalmente aos seus preceitos, já que não se trata de uma tragédia da qual, a partir do total colapso dos personagens seria possível apontarmos algum caminho possível para a reconstrução. No filme não existe possibilidades de se construir nada a partir dos destroços; estamos no campo do caos, da queda absoluta)

O tema do roubo que dá errado permite que se faça uma relação entre ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ e ‘Um Dia de Cão’, longa dirigido por Lumet nos anos 70. A situação limite vivida pelos personagens serve de combustível para o cineasta trabalhar o colapso psicológico e o desespero que põe na tela, explorando o caos que essas situações limite trazem para a vida das pessoas. É o desespero do homem que possibilita que Lumet faça esse percurso cíclico do thriller ao melodrama com coerência dramática e potência visceral de encenação.

'Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto'A questão da moral (um conceito subjetivo e uma das formas de controle dos afetos usada pela sociedade, seja tanto na moral religiosa quanto naquela dos pactos sociais), em um sentido quase metafísico do termo, é retomada por Lumet dos antigos filmes do cinema noir, em que o crime cobra sempre um preço alto daqueles que o praticam (um tipo de conceito que pode ser visto, na maioria dos casos, como conservador). O pecado exige uma punição, um castigo. Aqueles que desafiam a normas de conduta da sociedade estão condenados a sofrer, e esse martírio começa sempre com o sofrimento psicológico, que invariavelmente conduz ao colapso completo do indivíduo infrator. Mas aqui não estamos mais sob regência dos códigos éticos morais, estamos no mundo da falência dos valores, do rompimento dos vínculos transformadores do afeto; estamos em uma sociedade em ruínas, em que a violência e a agressão ao outro são meros exercícios ilusórios de sobrevivência e tentativa de auto-afirmação, mesmo que uma auto-afirmarão nunca possível. Afinal, estamos nos Estados Unidos da era Bush filho, na era da anulação dos indivíduos, de seus corpos e mentes como agentes de possível ação ou transformação. O desamparo dos corpos não é campo para se reconstituir individualidades e subjetividades e sim espaço de anulação e esmagamento pelo consumo ou pela incapacidade de se produzir dinheiro.

Sidney Lumet, que realizou ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ com mais de 80 anos de idade, é um dos mais competentes diretores americanos da história. Em seus filmes, ele sempre demonstra o domínio dos principais elementos que caracterizam a boa cinematografia do seu país, soube migrar do cinema clássico tardio ao cinema moderno absorvendo organicamente elementos estéticos e de discurso da Nova Hollywood e entrar em sintonia com as questões e as angústias que tomaram a sociedade de assalto após os anos 60 e 70, bem como o colapso social provocado pela ascensão neoliberal promovida por Reagan na década de 80. Embora tenha momentos irregulares dentro de sua obra, merecia um maior reconhecimento dentro da indústria na qual trabalha desde os anos 50.

Conhecido por dirigir grandes atores e lhes proporcionar atuações poderosas, Lumet oferece em seu último filme um grupo de tipos humanos totalmente desglamourizados (além de Hoffman, todo o elenco está preciso e a presença de uma ótima Marisa Tomei dá ainda mais força ao filme). Vemos na tela pessoas que na maior parte do tempo são antipáticas e ao mesmo tempo frágeis, em um recurso que garante maior coerência com a proposta do roteiro de retratar um universo caótico de amoralidade, derrocada e falência de valores. Os espaços são contaminados pela sujeira das ruas, pela desordem dos ambientes que refratam o interior dos personagens. E Lumet faz um ótimo trabalho de decupagem ao inserir e criar constantes tensões entre os personagens e os espaços, entre os tipos, seus gestos, a agressividade dos diálogos, as explosões de violência, e suas aflições em meio aos ambientes em que estão inseridos, num processo de encenação que usa com vigor e energia a câmera e a variação dos planos, que quebra o tempo e mostra os acontecimentos de diferentes ângulos, de distintos pontos de vista. O último filme de Sidney Lumet é grande, assim como foi sua carreira.

‘A Pele de Vênus’, de Roman Polanski*

Por Fernando Oriente

'A Pele de Venus'Roman Polanski é um realizador que transparece sua inquietude artística pela maneira como varia de gênero de um filme para o outro. O diretor faz questão de escolher projetos novos radicalmente opostos aos seus trabalhos anteriores. Assim, após filmar uma comédia ele produz um longa de terror, que é seguido por um thriller, esse por um drama que por sua vez dá lugar a uma aventura ou uma sátira. Seu último longa, ‘A Pele de Vênus’, remete ao filme anterior de Polanski, ‘O Deus da Carnificina’, apenas na origem, ambos são peças de teatro adaptadas para o cinema. Os filmes em si, e as intenções do cineasta, são bem diferentes nos dois casos.

Esse processo de criação é ajudado muito pela maneira como Polanski é capaz de traduzir a época em que faz um filme. Ele consegue como poucos se apropriar de elementos temáticos e formais do momento social, político e cultural em que desenvolve um projeto. Seus filmes refletem de maneira sofisticada e crítica (muitas vezes sarcástica) os fatores inquietantes que pautam o estado das coisas no momento em que essas obras são criadas. É um cinema permeável ao mundo que está a sua volta em uma determinada e específica época. A complexidade e a as qualidades estruturais, narrativas e formais de seus longas impedem que eles se tornem datados.

A mise-en-scène de Polanski segue uma fluência clássica, sua presença como diretor é notada pelo rigor discreto e eficiente como compões seus planos, ao mesmo tempo em que escolhe os momentos precisos para incorporar ângulos de câmera pouco convencionais e que sempre funcionam com catalisadores das tensões dentro do quadro. São notáveis também as escolhas sólidas de decupagem e o domínio do ritmo que sempre imprime nos desenvolvimentos narrativos de seus filmes.

‘A Pele de Vênus’ é uma farsa, uma comédia cínica sobre inversão de papéis e relações de dominação e poder. Com apenas dois personagens, Polanski faz do filme a representação de um conflito milenar entre dois pólos que se afastam, se atraem e se subvertem: o homem e a mulher. O roteiro, escrito pelo diretor e David Ives, é baseado em uma peça do próprio Ives, que recria como sátira o clássico livro de Leopold Von Sacher-Masoch, “A Vênus em Peles”. O livro de Sacher-Masoch é um ícone do conflito erótico entre os gêneros, e dele surgiu o termo masoquismo, a relação de poder que surge na entrega sexual voluntária a um algoz sádico.

Vanda, uma atriz, entra atrasada em um teatro decadente onde Thomas, o diretor e escritor (“adaptador”) da peça fazia seus testes para o papel principal de sua próxima encenação. Embora ele queira ir embora, Vanda o convence a fazer o teste com ela. Começa o embate.

Existe em ‘A Pele de Vênus’ uma constante tensão entre o espaço claustrofóbico onde a dramaturgia se desenrola e a relação simbólica que as ações desses dramas têm com o mundo exterior. A vida está fora daquele espaço em que os dois protagonistas interagem, mas é nessa prisão que eles encenam suas pulsões mais intensas. O espaço restrito é o palco (o teatro) em que os dois personagens representam toda uma bagagem de vida e vivência e que trazem do mundo exterior toda carga do choque entre os gêneros que a sociedade impõe ao homem e a mulher desde o princípio dos tempos. E é nesse teatro, por meio do jogo e do confronto, que esses papéis serão engendrados, super postos, trocados e superados.

No filme temos um dos motivos mais fortes no cinema de Polanski: o conflito. Os dois personagens de ‘A Pele de Vênus’ percorrem os diferentes caminhos dentro da dialética noção de confronto onipresente na obra do diretor. São ambos vítima e algoz, exercem e invertem os papeis da tensão sexual como representação de poder e dominação tão caras à Polanski, ao mesmo tempo em que fazem desse conflito um jogo, com regras pré existentes que são constantemente quebradas, em que a superação de qualquer conceito moral é denominador comum. Estamos no campo privado das representações políticas.

O jogo em ‘A Pele de Vênus’ tem início exatamente quando o texto da peça começa a tomar forma e a ser encenado. É nesse momento que os papéis começam a se inverter. O texto, a recriação do texto por Vanda e Thomas inicia o processo de empoderamento da mulher. Tem início uma dominação dele por ela que já se insinuava no fascínio que ela passa a exercer sobre ele desde o instante em que ela veste o figurino para o teste. Aqui temos os papéis iniciais: o homem é o diretor, tem o poder. A mulher é a aspirante a atriz, se subordina ao poder do macho artista e criador.

Esse processo que dá abertura ao jogo mostra como o poder do texto, do drama recriado, interfere na vida real. Um realizador como Polanski valoriza o papel transformador da encenação do drama, da transformação de um texto em mise-en-scéne; em suma: o poder do cinema. O que interessa em ‘A Pele de Vênus’ é o jogo, o que tem peso no cinema de Polanski é o conflito e seus mecanismos, o processo que leva à dominação, os significantes. Logicamente que o filme tem muito de seus fundamentos na questão da confrontação entre os gêneros e a re-significação dos papéis de homem e mulher em uma realidade alternativa, mas possível. Mas são os significantes contidos nesse processo como embate que são a verdadeira matéria de Polanski no longa.

Em ‘A Pele de Vênus’, é o teste da atriz que dispara os elementos e as regras para o jogo de sedução. Seduzir e subjugar o outro é dominar. Ser dominado é ceder ao desejo de ser esmagado pelo objeto desse desejo. Esse processo é, ao mesmo tempo, consciente e inconsciente. Nesse embate, ela (a mulher) coloca ele (o homem) no papel de um adolescente desajeitado, quase bobo, que não sabe onde e o que fazer com seu desejo e suas intenções.

O conflito entre Vanda e Thomas é um processo criativo, uma metalinguagem usada por Polanski para se referir ao seu próprio processo como criador. A peça que está sendo ensaiada é reescrita e melhorada em meio e por meio da dialética do embate entre a atriz e o diretor. Em ‘A Pele de Vênus’ a criação está na subversão do texto original, no surgimento de novos significados pela atualização e recriação da peça ensaiada. Para Polanski, cinema é subversão, processo de re-significação de roteiro, da transformação de texto em imagens dentro de um processo de decupagem.

É notável que Polanski faça, em ‘A Pele de Vênus’ e também em ‘O Deus da Carnificina’ (só que de maneira bem menos feliz do que no novo filme), do encontro com o teatro o mesmo que fez Alain Resnais (em longas como ‘Melô’, ‘Smoking’, ‘No Smoking’ ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’). Os dois cineastas fazem do teatro o material lhes dá uma total liberdade de criação cinematográfica, os textos e os mecanismos teatrais permitem aos realizadores serem altamente criativos e contemporâneos na concepção de um material extremamente cinematográfico. O teatro é superado como meio para se chegar a um cinema moderno, criativo e inquieto.

A Pele de VenusCineasta maduro, no melhor sentido do termo, sem se deixar acomodar na relação com a arte que produz, Polanski domina toda matéria e o fazer cinematográfico, se desloca minuciosamente pela dramaturgia com segurança total. Ele estabelece os meios pelo qual o conflito e o jogo irão dar corpo ao filme. ‘A Pele de Vênus’ é composto na precisão da decupagem, na modulação das intensidades dramáticas da encenação. Cada posicionamento de câmera, com suas relativas distâncias e aproximações dos atores e das situações a que eles estão inseridos, a duração dos planos e os cortes, bem como a variação entre esses planos ressaltam sempre o tom certo de cada passagem narrativa. Impressiona demais, também, o trabalho de variação de luz na fotografia de Pawel Edelman, que modula todas as ações dentro do quadro.

As expressões dos atores são captadas em suas mínimas nuances, bem como a relação entre os tipos e os espaços das ações. E por falar em atores, Emmanuele Seigner e Mathieu Amalric estão ótimos. Amalric é um dos grandes atores de sua geração, sabe entrar e dar força a qualquer papel que interpreta. Emmanuelle cresceu demais como atriz desde o início de sua carreira nos anos 80. Em ‘A Pele de Vênus’ ela está extremamente sedutora, alterna com desenvoltura a sofisticação e a vulgaridade da personagem e modula muito bem o sarcasmo e o cinismo que Polanski imprime em sua presença de sedutora.

O cinismo é dos mais fortes pontos de apoio da encenação e da evolução dramática. A troca de papéis, a inversão de poder entre os sexos é calcada em uma dose alta de sarcasmo em relação às regras do confronto entre os personagens, bem como em todo o processo de novos significados que o texto encenado adquire. Vanda e Thomas saem dos diálogos da peça que ensaiam e emendam naturalmente discussões paralelas como se o texto fosse o mesmo. Cada comentário que eles fazem nas entrelinhas do roteiro que interpretam é parte integrante desse mesmo roteiro, é a expansão e a atualização do texto original em uma única narrativa que faz a fusão dos tempos e ressalta a contemporaneidade dessa confrontação.

Polanski chega ao cúmulo de encenar Thomas como um paciente, deitado em um divã, em meio ao que parece uma sessão de análise em que Vanda é a psicanalista, vestida como tal e posicionada em relação a ele como se estivessem em uma sessão de um consultório de psicanálise qualquer. Isso, executado com a naturalidade com que essa cena é construída, reforça o poder que o diretor tem sobre a matéria que encena.

Tudo isso leva o espectador à conclusão do filme, ao momento em que a consumação da troca de papéis é materializada, física e simbolicamente. Uma troca de papéis entre diretor e atriz, entre homem e mulher. Esse processo é concretizado na cena em que Vanda dança como uma bacante enfurecida, como a Vênus que se move nua e poderosa em frente ao pobre homem acorrentado e indefeso. O poder já está em outras mãos. O significado do texto já é outro.

O belo plano final retoma literalmente o movimento iniciado na primeira cena do filme. Só que se no começo temos um travelling frontal, na conclusão esse travelling é de ré. Muda-se o sentido da câmera como se muda o significado dos papéis dramáticos e das posições de poder dos sexos. Polanski faz de ‘A Pele de Vênus’ seu melhor filme desde ‘Lua de Fel’ (1992) e um dos melhores de sua carreira. E isso é muito.

*Crítica originalmente escrita para, e publicada, na Revista Teorema, edição 24, de agosto de 2014.

‘Já Visto Jamais Visto’, de Andrea Tonacci

Por Fernando Oriente

Já Visto Jamais VistoSe a memória é uma ilha de edição, como escreveu Waly Salomão, a memória também é o refúgio subjetivo de nossos afetos vividos, um espaço mental borrado, cheio de imprecisões, dúvidas, fantasias, saudades, recordações e um amontoado impreciso de fatos vividos, mas muitas vezes imaginados, ficcionalizados ou idealizados. Essas definições podem ajudar a propor uma leitura sobre ‘Já Visto Jamais Visto’, novo filme de Andrea Tonacci que entra em cartaz em São Paulo, após ser exibido no projeto Rumos do Itaú Cultural e na Mostra de Tiradentes, entre outras exibições especiais que aconteceram pelo país. Por meio de imagens de arquivo que Tonacci que gravou ao longo de décadas (desde sua infância até a metade dos anos 1990), trechos de alguns de seus curtas e longas, fragmentos de filmes que nunca realizou e finalizou, estudos de cenas que gravou para projetos que não foram adiante Tonacci compõe em seu ‘Já Visto Jamais Visto’ um painel, um caleidoscópio cíclico e elíptico personalíssimo de suas vivências, recordações, experiências, encontros, afetos, recortes de vida e sua visão de mundo.

Tudo no filme é potencializado e tornado experiência visual em que as potências e possibilidades de leitura e significação das imagens traduzem, questionam, propõem e explicitam signos da vida, do que foi vivido e registrado pela câmera de Tonacci, muitas vezes manuseada por seus familiares, amigos e colaboradores. ‘Já Visto Jamais Visto’ é um filme pessoal, de invenção, pautado pela redescoberta por parte de Tonacci de imagens, momentos vividos, lugares, pessoas, ideias, desejos bem como pela saudade e as memórias do diretor, tudo isso ressignificado pela revisão dessas imagens e pela forma como Tonacci as organiza e rearranja por meio da montagem. Andrea Tonacci, toda vez que apresenta o filme para o público, conta que descobriu essas imagens em sua casa e não fazia ideia do que existiam nessas dezenas de rolos que estavam armazenados e esquecidos em sua casa.

Muitas das cenas que estão no filme foram redescobertas por ele, muitas ele nem sabia que existiam. A ideia de usar esse material para fazer um filme, um ensaio visual, torna ‘Já Visto Jamais Visto’ um processo muito mais pessoal para o diretor do que a simples realização de um filme. Selecionar as cenas, ordená-las em sequências, confrontar imagens (que são recortes de seu passado, de suas experiências vividas) é uma forma do próprio Tonacci (re)descobrir a ele mesmo por meio dessas imagens, desses fragmentos registrados do tempo e do que foi vivido. Tanto em Tiradentes quanto na apresentação do filme antes da pré-estreia em São Paulo, o cineasta disse que esse filme mostra para ele muito mais do que ele é do que do que simplesmente traduz para o espectador o que ele pensa ou como vê o mundo. ‘Já Visto Jamais Visto’ é antes de tudo uma experiência visual e cinematográfica que dialoga primeiro com o cineasta, ajudando a redefini-lo como sujeito do que um filme que apresenta ao público um discurso construído para dialogar com o espectador.

Em ‘Já Visto Jamais Visto’ a câmera é um dos personagens centrais. Vemos diversas câmeras nas mãos de Tonacci, de seus familiares e colaboradores, vemos sombras de quem filma com a câmera na mão, vemos reflexos do ato de filmar em janelas, portas e espelhos. Filmar é um devir para Tonacci e a presença material constante da câmera, mesmo que muitas vezes uma presença sugerida, fixada com ênfase no extracampo, é o mecanismo de aprofundamento desse devir. Toda uma vida, fragmentos dessa vida capturados em imagens de diversos formatos (já que no filme temos cenas gravadas em 8mm, super 8, 16mm, 35mm e vídeo) são materializados em imagens. A câmera reorganiza a memória, as experiências, os projetos, as ideias, aquilo que foi visto, esquecido e sentido. A câmera captura a presença corpórea das pessoas que o diretor ama e amou, dos lugares que viveu e visitou. Muitas vezes vemos imagens de livros, gravuras, quadros, desenhos, esculturas, quadrinhos, tudo filtrado, tornado matéria pelo registro da câmera, pelo ato de filmar.

‘Já Visto Jamais Visto’ é também um ato de afeição, de afeto de Tonacci para com aqueles que ama, bem como em relação a sua própria subjetividade. A câmera filma com ternura, em close, os rostos e expressões de seu filho Daniel, de suas companheiras e do próprio diretor (que aparece diversas vezes em cena). Filma seus gestos, seus movimentos, seu simples estar no mundo. O filme é um estudo da força do gesto natural, da presença espontânea dos corpos no espaço e no tempo. São fortes e significativas as cenas de Daniel encenando o ato de ir dormir, colocando o despertador e depois acordando na manhã seguinte. O mesmo Daniel é visto se encantando com o que vê em uma viagem que fez ao lado do pai à Itália, se maravilhando diante de construções históricas, igrejas, praças e esculturas. Existe esse mesmo maravilhamento nas cenas em que Daniel é visto brincando, caminhando pelos campos que cercam a casa da família em Campos do Jordão, subindo em uma casa de árvore que o menino usava como esconderijo, espaço de suas individualidades e segredos. Se existe um personagem principal no filme, ele é Daniel. Tanto que o filme abre com um plano em que a câmera de Tonacci se desloca pelo apartamento da família até enquadrar Daniel tocando piano. Essa cena é retomada no final do filme, com Daniel ainda tocando piano até perceber a presença da câmera do pai e virar para ele e dizer: “Para pai!”. Esses momentos orgânicos, espontâneos, esses registros personalíssimos da vida cotidiana, das trocas afetivas entre pai e filho são pontos altos e que estão presentes ao longo de todo o filme.

Mas não são apenas as lembranças afetivas, familiares e amorosas que compõem ‘Já Visto Jamais Visto’. Ao usar cenas de seus filmes como ‘Olho Por Olho’ (1966), ‘Blábláblá’ (1968) e ‘Bang Bang’ (1970), além de obras não finalizadas e contrapô-las com imagens de arquivo filmadas pelo diretor nos anos 60 e 70 (cenas da presença de militares em desfile, da tropa de choque), Tonacci relembra e dá ênfase contextualizadora dentro de seu processo de reconstrução de vida e de suas memórias ao período da ditadura civil-militar que comandou o Brasil por 25 anos e que atrapalhou e censurou demais o trabalho do cineasta, bem como deixou traumas e violências gravadas no tecido social do país.

'Já Visto Jamais Visto'Um destaque forte em ‘Já Visto Jamais Visto’ é o provocado pelos choques entre as cenas. A montagem criativa e potente de Tonacci e sua mulher Cristina Amaral (uma das melhores montadoras do cinema brasileiro), que intercala de maneira elíptica cenas contrastantes, momentos de tempo distintos, criam uma dialética interna a própria reconstituição de vida e história que Tonacci propõe com o filme. A força desse conflito entre sequências distintas vem dos cortes bruscos, que interpõem períodos históricos distantes e ações distintas, que quebram a continuidade das micro narrativas. Mas muito da força que esses processos de montagem criam vem da sobreposição entre cenas gravadas em diferentes texturas. Vamos, por meio de elipses e cortes secos, de sequências captadas em 8mm a outras registradas em vídeo, de cenas em super 8mm a passagens gravadas em 16mm ou 35mm. Esse processo promove a potencialização da beleza e das possibilidades da imagem por meio do conflito expositivo entre as diversas texturas e granulações da imagem. Tonacci é enfático ao ressaltar a presença material da imagem.

‘Já Visto Jamais’ visto, por ser um recorte extremamente pessoal de materiais de arquivo de Tonacci acaba por tornar-se um exemplo da força do cinema de montagem, aquele mesmo teorizado pelo cinema soviético dos anos 20, por Rogério Sganzerla, que dava destaque fundamental aos processos de montagem dentro da realização dos filmes e fez obras ímpares dentro desse mecanismo ao longo de sua carreira, principalmente em filmes como ‘Nem Tudo É Verdade’ (1986) e ‘Tudo É Brasil’ (1997). E também nos remete diretamente a Jean-Luc Godard e suas experiências com a montagem como desconstrução e como novas possibilidades de composição fílmicas, desde seus primeiros longas e principalmente após seus filmes mais políticos a partir de 1967 e dentro de seu trabalho no coletivo Dziga Vertov, além de seus trabalhos em vídeo nos anos 70 e culminando com seu monumental ‘Histoire(s) du Cinema’ (1988-1998) e também muito presente em seus filmes dos anos 90 e atuais, como ‘Nossa Música’ (2004), ‘Film Socialisme’ (2010) e ‘Adeus à Linguagem’ (2014).

‘Já Visto Jamais Visto’ é, como já foi dito diversas vezes, uma experiência personalíssima de seu realizador, um belíssimo filme ensaio poético e, mais do que tudo, uma grande ode minimalista de Tonacci que discute e amplia os mecanismos de se pensar e fazer cinema de forma inventiva, com múltiplas linguagens em sintonia e aberta ao mundo, às experiências vividas e a memória individual e coletiva. Após o seminal ‘Serras da Desordem’ (2006) Andrea Tonacci nos presenteia com mais uma obra ímpar e desconcertante.

‘La Sapienza’, de Eugène Green

Por Fernando Oriente

La SapienzaConstruir espaços em torno do vazio para que esse vazio seja preenchido pela luz e por pessoas. Essa definição que um dos personagens de ‘La Sapienza’ dá para a função da arquitetura pode muito bem ser usada para definir o trabalho do diretor Eugène Green no filme, bem como em toda sua obra. Green pega a tela vazia, em branco, e a preenche com luz, pessoas, gestos, construções, movimentos e textos. Por meio desse processo, tanto a arquitetura quanto o cinema permitem que a beleza e a sabedoria sejam atingidas. A beleza e o conhecimento são, para Green, um caminho metafísico em direção de algo superior, em que se atinge a sabedoria, uma força maior que representa os mistérios e a salvação equivalentes ao poder de Deus. Nas mãos de qualquer um, trabalhar essas questões poderia ter resultados tenebrosos, mas nas mãos de Eugène Green, um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, o que temos é um filme sublime como ‘La Sapienza’, que vem se somar aos demais trabalhos do diretor num processo contínuo de construção de uma filmografia ímpar que busca sempre a integração dos espaços com o ser humano e a palavra, e dessa relação promove conflitos dialéticos em que as imagens e o texto estão em constante pulsão em direção aos questionamentos existências e sua relação com o tempo, com o passado e o presente e como nos colocamos no mundo mediante uma beleza e uma sabedoria que somos incapazes de absorver e compreender em sua totalidade.

Em ‘La Sapienza’ acompanhamos a viagem do arquiteto Alexandre e sua mulher Aliénor à Itália, onde Alexandre pretende revisitar as obras do arquiteto barroco Francesco Borromini, bem como de contemporâneos de Borromini como Guarini e Bernini, desde a cidade de Stresa até Roma, onde ele trabalhou até sua morte em meados do século 17. A viagem serve para Alexandre e Aliénor tentarem se encontrar existencialmente, em meio às crises que vivem em suas carreiras profissionais, a angústia que se instalou no relacionamento do casal bem como à melancolia com que os dois se posicionam diante das dúvidas do presente, os medos e traumas que carregam do passado. Eugène Green trabalha a questão das texturas emocionais dos personagens sempre na relação entre o passado e seus fantasmas e o presente e suas incertezas. Logo em Stresa, eles conhecem dois irmãos adolescentes, Goffredo e Lavinia. A menina sofre de uma estranha doença que a faz desmaiar e passar dias reclusos, sem forças, em seu quarto. Já o jovem recém saído do colegial, se prepara para ir a Veneza iniciar seus estudos na faculdade de arquitetura.

A partir desse momento, Green divide o filme em dois focos narrativos. Aliénor fica em Stresa para acompanhar a recuperação de Lavinia e Alexandre e Goffredo seguem viagem, de Turim até Roma (sempre visitando construções barrocas clássicas de Guarini, Bernini e principalmente Borromini), num processo que a principio serviria de aprendizado ao aspirante de arquitetura, já que será acompanhado por um arquiteto renomado.

Mas é partir das relações complexas que irão surgir entre os personagens, tanto a mulher mais velha com a menina quanto o experiente arquiteto cético com o jovem aspirante a aprendiz, cheio de vida e fome de conhecimento, que Green irá discutir questões existenciais que evolvem os personagens; seus traumas do passado (fantasmas como isso é dito no filme) que carregam com eles como feridas não cicatrizadas e as incertezas, medos e o vazio espiritual com que lidam com o presente, numa ausência de lógica, um sentimento de deslocamento temporal e uma falta de rumo para seguirem adiante. Eugène Green contextualiza sempre o interior conflitante dos personagens com os espaços, as construções barrocas e os monumentos que visitam. Green impregna esses ambientes e principalmente as construções barrocas com um peso temporal e significativo imensos, como se as pedras, o cimento, os vidros e adornos que constituem a base, a matéria dessas construções carregassem todo um legado, toda uma possibilidade de leitura por meio de seu peso histórico, seus significados projetados no interior dos homens ao longo dos séculos. Ser humano e construções materiais se relacionam dialeticamente num processo em que o homem é refletido, questionado e confrontado com o significado e o peso do tempo que essas construções projetam em seu interior, em suas essências e características existenciais.

'La Sapienza'A viagem dos personagens se transforma em uma jornada de autoconhecimento, de reflexão, aprendizado, de trocas de experiência de vida, de abertura e desnudamento diante do outro. Eles passam por um processo em que o exterior, as construções e seus significados transcendentes dentro de uma relação complexa entre a fusão de tempos passados com o presente e o efeito que esse ambiente externo, essas obras clássicas da arquitetura barroca dialogam diretamente com as essências dos personagens, fazem com que passem a encarar seus fantasmas, seus passados para reorganizar suas percepções sobre o presente, sobre si mesmos e como se redefinem como indivíduos em um processo de reordenamento de suas subjetividades. Eles se abrem para trocas com um com o outro, para a fragilidade de suas próprias vivências e (in)certezas, bem como para a influência que a história e seus saberes acumulados, cheio de possibilidades de beleza e sabedoria exercem sobre eles. Green é um cineasta sofisticado, introduz essas relações de maneira complexa, gradual em que as texturas dramáticas dos personagens estão sempre se reorganizando pelo movimento interior e exterior dessa jornada em que se encontram.

Eugène Green é um autor que acredita na força transgressora da beleza, no poder simbólico e transformador da absorção dos valores do passado pelo ser humano de hoje, ele acha que a salvação existe dentro de um processo de ascese que é atingido pela busca constante do conhecimento, tanto de si mesmo, quanto do mundo que nos cerca. É a sabedoria, o amor e a beleza que irá levar seus quatro personagens centrais a salvação. Tanto que numa das cenas finais do filme, após tudo o que passaram, Alexandre acorda no meio da noite e, aliviado e sereno, diz “estamos salvos”.

Tudo o que Green constrói é potencializado pelas escolhas extremante originais de encenação, que são ao mesmo tempo fieis ao rigor com que conduz sua mise-en-scéne, mas simples, diretas (mesmo em suas complexidades) e sem arroubos estéticos desnecessários. Green trabalha na contenção dramática de sua encenação. Seus diálogos são falados de maneira lenta, quase recitados pelos personagens. O diretor dá valor e peso a cada palavra dita, isso nos remete muito ao cinema de Straub e Huillet e de Robert Bresson e a forma como esses cineastas davam ênfase ao texto falado por meio do anti-naturalismo dos diálogos e da encenação do gesto. Esse processo visa destacar o peso do texto e da palavra em meio à força das imagens. Green compõe suas sequências de diálogos quase todas em campo e contracampo. Filma quem está falando e corta para o interlocutor quando esse toma a palavra. Muitas vezes nesse jogo entre campo e contracampo, Green posiciona seus personagens de frente para a câmera, encarando com o olhar o antecampo, aquilo que está à frente da imagem (da tela), ou mais diretamente, o próprio espectador. Esse processo de filmagem, de encenação valoriza e destaca o texto, a palavra falada e sua relação que transborda os diálogos entre os personagens, que passam a se dirigir diretamente para nós. Os gestos dos atores, bem como seus olhares e deslocamentos no quadro também são compassados, fogem do naturalismo. Todo movimento, cada fala, todos os gestos e expressões são cadenciados e potencializam sua presença material significante na tela.

Os planos de Green são compostos com muita precisão, enquadramentos sóbrios, movimentos de câmera sempre lentos, aproximação e recuo em relação aos espaços, personagens e ações extremante calculados. Tudo na mise-en-scéne do diretor busca a multiplicidade e as texturas significativas das imagens, a contextualização entre personagens, ambientes, ações, texto e movimentos sempre em função dos significados que quer atingir em cada sequência. Em ‘La Sapienza’, tanto pelas questões da busca de ascese em direção a forças superiores (sabedoria, beleza) quanto por filmar detalhadamente construções barrocas imponentes, a câmera de Green constantemente se move para cima e segue lentamente até atingir o topo das igrejas e palácios e em muitas ocasiões segue ainda mais em direção ao alto para focalizar o céu, como o destino final da busca metafísica pelo conhecimento. A amplidão do firmamento que reserva as possibilidades de acesso ao sublime.

O uso da luz é fator constituinte de cada plano de ‘La Sapienza’. O trabalho de fotografia que busca dar peso sensorial e simbólico à luz é percebido pelos tons de luminosidade que invadem e preenchem o quadro, envolvendo de maneira densa os personagens e os espaços. Uma luz clara, que evoca sensações de conforto, funciona como catalisador dramático, como se a luminosidade pautasse tudo o que acontece na tela e guiasse o olhar dos personagens, conferisse novas formas e possibilidades de ver (perceber) os espaços e as construções e projetasse no espectador as sensações de transcendência que Green busca em suas cenas.

O barroco, influência marcante em toda a obra do diretor, ganha ainda mais potência dramática e força de condução narrativa em ‘La Sapienza’. Green é um artesão da imagem e do texto, um cineasta que constrói seus filmes a partir do esmero com que elabora cada plano em seus mínimos detalhes, dentro de sua visão extremamente particular do mundo, da história e do papel complexo e paradoxal de mulheres e homens no meio em que vivem e dentro dos processos históricos que carregam na construção de suas subjetividades. Trabalha o valor da palavra e do texto de maneira intensa e relaciona tudo com a força subjetiva e sensorial de suas imagens e da luz que ilumina suas cenas e apontam um caminho a ser segundo na busca pelo sublime, pela beleza e pela sabedoria (Sapienza) no que ela tem de mais transformador e potente.

‘Corrente do Mal’ (It Follows), de David Robert Mitchell

Por Fernando Oriente

'Corrente do Mal'Um filme de horror, que trabalha dentro dos códigos do cinema gênero, é campo fértil para um cineasta competente utilizar os elementos cinematográficos para construir um filme que irá dialogar primeiro com os sentidos do espectador, suspendendo momentaneamente a razão para mexer com direto com as sensações. Os processos envolvidos na relação entre as imagens e os sentidos são potencializados no cinema de gênero, que de maneira mais visceral podem abordar temas das mais distintas complexidades, com camadas discursivas densas e ampliar esses efeitos numa dialética centrada em conflitos subjetivos e muitas vezes reprimidos e que não seguem códigos racionais. O sobrenatural, o medo, o desconhecido que parece muito mais próximo e real pelas potências do cinema fazem de um bom filme de horror uma experiência complexa, que expõe como o cinema tem força de causar impactos profundos e reorganizar os processos de percepção.

Dito isso, vamos a ‘Corrente do Mal’ (It Follows) um dos grandes filmes do ano e um dos melhores filmes de horror das últimas décadas. O longa de David Robert Mitchell, desde o primeiro plano, nos remete ao cinema de John Carpenter, mais especificamente Halloween (1978). A câmera baixa, fixa no meio de uma rua de subúrbio classe média norte-americano, com suas casas de dois andares, carros na garagem, gramados, árvores e aparente tranquilidade, começa a se deslocar lentamente em panorâmica até enquadrar uma das casas de onde uma menina sai em desespero, correndo, fugindo de algo que não vemos. Ela se desloca transtornada, a câmera a segue lentamente à distância, não vemos nada atrás dela, mas seu pavor é visceral, algo invisível para o espectador e para os demais personagens que entram em cena persegue a garota, que vestida com shorts, camiseta e uma sapato vermelho de salto alto que visualmente se sobressai e transforma-se em elemento dramático de desconforto, se desloca em pânico pela rua até entrar em um carro e sair em alta velocidade. Mitchell filma toda essa cena em um plano-sequência em que a câmera se desloca sutilmente, lentamente registrando a menina, seu desespero e a presença sensorial de algo terrível e incapaz de ser visto, mas que podemos sentir. A distância fria, analítica que a câmera de Mitchell mantém da personagem, contextualizando suas ações em meio à amplitude do espaço, potencializa o desconforto e desestabiliza o espectador já nos primeiros momentos de ‘Corrente do Mal’.

Após o desfecho desse prólogo poderosíssimo, com a imagem brutal da garota morta na areia, em um amanhecer à beira do lago Michigan, com suas pernas destroçadas, o filme volta a registrar o subúrbio e após alguns planos, focaliza a protagonista (a adolescente Jay) que entra em uma piscina no quintal de sua casa e com ar ausente, com expressões dúbias em seu rosto e observa atentamente tudo a sua volta enquanto relaxa dentro d’água. A cena lenta, em que os movimentos de Jay, aquilo que ela vê, os detalhes e espaços a sua volta são registrados de maneira analítica por Mitchell ajudam a introduzir uma sensação de desconforto que sentimos como um prenúncio dos tormentos que irão acontecer. É na aparente normalidade, banalidade do cotidiano que se esconde o mal, o horror que irá tomar conta do filme, gradativamente, lentamente, numa espiral crescente de pavor.

Jay segue sua vida tranqüila, ao lado de sua irmã, seus amigos e o garoto com quem está saindo, num início de namoro. Após fazer sexo com o rapaz no banco de trás de um carro (cena clássica no cinema americano) o filme entra de vez no terreno do horror. O rapaz amarra Jay, a leva a um prédio em ruínas e no meio da noite confessa que ela está contaminada, que o sexo entre os dois transmitiu a ela uma maldição: ela será sempre seguida por algo, uma força maligna que não tem explicação, que a irá perseguir aonde quer que esteja e sempre irá surgir como uma pessoa diferente (muitas vezes com o corpo de alguém que ela conhece, que ela ama) que só ela verá, que a irá perseguir andando lentamente, sempre reto, em sua direção, para matá-la. Resta à jovem sempre fugir, correr e se distanciar. A única forma dela se livrar dessa maldição, é fazer sexo com outra pessoa e transmitir a maldição a ela, se livrando momentaneamente do perigo. Mas se essa pessoa for morta, a força sobrenatural voltará a persegui-la para matá-la e depois ir atrás daquele que a contaminou. O sexo como agente desencadeador do mal exatamente na vida de adolescentes que estão descobrindo e começando a explorar suas sexualidades, mais um fator que Mitchell usa para relacionar a presença da condenação ligada aos hábitos e às pulsões mais naturais do ser humano.

Corrente do MalO filme todo será Jay sendo perseguida, fugindo, mas sempre retornando a sua casa. Num primeiro momento ninguém acredita nela, mas aos poucos, sua irmã e seus amigos passam a acreditar e também passam a viver o horror e a ameaça que persegue a menina. O filme é composto por movimentos cíclicos, que sempre retornam: Jay e seus amigos fogem, mas a força os persegue, aonde quer que eles estejam, o mal estará sempre em seu encalço. A qualquer momento figuras estranhas, com aspecto de mortos vivos, olhar e movimentos similares aos dos zumbis (a construção visual dos tipos que perseguem Jay, suas presenças em cena, bem como a maneira como eles e seus movimentos são filmados são um destaque a parte em ‘Corrente do Mal’), irão surgir e caminhar de forma lenta e aterrorizante em direção de Jay. Um dos grandes méritos de Mitchell é construir ‘Corrente do Mal’ como um labirinto circular, as ações sempre seguem o movimento cíclico, de fuga e retorno, para novas fugas e retornos. Não existe saída para Jay. Tudo o que ela tenta para se livrar da maldição não funciona, sua condenação parece não ter fim.

Todo esse processo narrativo é potencializado pelo impressionante trabalho de composição de cena, pelo esmero e o rigor cênico com que David Robert Mitchell constrói cada plano, cada enquadramento, cada sequência. O diretor usa diversos recursos de encenação, todos com muita propriedade e inseridos de maneira precisa dentro das modulações dramáticas que pretende atingir em cada cena. Ele decupa suas sequências misturando muitas panorâmicas, planos estáticos em close ou em ângulos abertos, alguns travellings mais rápidos e o movimento e as ações dentro do quadro trabalhados sempre em função do desconforto que provoca no espectador. De maneira elegante, extremamente bem planejada e calculada, tudo no filme é para tirar o espectador de sua posição de conforto, gerar incômodo, transmitir por imagens, movimentos, variações dos focos de intensidade entre o campo e o extra-campo, um crescente mal estar, fazer com que as angústias, o pânico e a sensação de incapacidade de se livrar de forças incontroláveis sejam sentidos em nós, que estáticos diante do que vemos na tela, nos sentimos parte do horror que vivem os personagens. ‘Corrente do Mal’ age, por meio das potenciais do cinema, no nosso subconsciente, suprime nossa razão e nos enreda dentro do horror e do medo a que estamos sendo expostos.

A música do filme, potente e que dialoga intrinsecamente com as ações e sensações da narrativa, é elemento fundamental para potencializar as situações dramáticas. É uma música composta por sintetizadores, iguais as que John Carpenter utiliza em seus filmes. Mitchell se entrega de forma explícita as influências carpenterianas, utiliza elementos retrôs (todas as televisões que aparecem no filme são antigas, modelos anos 70 e os filmes e seriados que os personagens assistem são dos anos 40 ou 50) mas todas essas influências são absorvidas de maneira criativa e tornam o discurso do diretor original e atual, num diálogo constante com elementos básicos da cultura e das estruturas clássicas do cinema.

Em diversos momentos do filme, Mitchell usa movimentos de câmera construídos em panorâmicas virulentas, que fazem com que a câmera se mova circularmente de maneira desconcertante pelos espaços e cenários, girando desenfreada – mas lentamente – em movimentos repetidos de 360 graus distorcendo a nossa percepção desses espaços, colocando todo o quadro em desordem sensorial até parar e reenquadrar personagens e ações, reorganizando o quadro, e nos trazer de volta à narrativa, desconcertados, com a sensação nauseante do caos e do pavor, da ausência de controle diante de uma ameaça indescritível que contamina tudo o que vemos na tela, que condena os personagens, os persegue sem eles terem como se livrar, para onde escapar. Nem os personagens, nem o espectador, têm como se proteger. Mitchell mexe com instintos básicos, primais, com o pavor mais reprimido de seus tipos e pela construção narrativa e por meio de uma encenação primorosa passa isso de maneira orgânica para quem assiste. O cinema de horror atingindo sua potência máxima de interação com o espectador.

Essas panorâmicas violentas, esses giros em círculo desenfreados de câmera que terminam por reenquadrar personagens e situações dramáticas são uma referência direta a circularidade narrativa que conduz o filme. Os personagens estão em constante movimento, ou mesmo prostrados esperando para iniciarem novos movimentos de fuga e deslocamento. Mas tudo o que fazem é moverem-se em círculos: saem, fogem, mas sempre retornam, por mais que se distanciem, não têm como escapar, o movimento é sempre cíclico. O mal os persegue em círculos de tempo. ‘Corrente do Mal’ trabalha com seus personagens presos num tempo suspenso e cíclico, em que eles são retirados à força da normalidade para entrarem numa espiral de desespero e condenação. E Mitchell faz com que nós sejamos sugados para essa espiral, nos envolve, trabalhando nossa sensorialidade, com o horror e a sensação de não existir escapatória para um mal maior e inexplicável, até a cena final, que é uma interrupção, não um desfecho. O mal continuará seguindo, perseguindo.

‘Desejo Profano’, de Shohei Imamura (1964)

Por Fernando Oriente

Desejo ProfanoShohei Imamura não é só um dos principais nomes da chamada Nouvelle Vague Japonesa, ele é um dos maiores cineastas da história. Com uma filmografia que começa no final dos anos 1950 e termina no início dos anos 2000 (ele morreu em 2006 aos 79 anos), Imamura é um dos cineastas mais viscerais, intensos, radicais e originais que o cinema já teve. Filmou inúmeras obras-primas e, mesmo sendo dificílimo escolher um de seus filmes como o melhor, ou mesmo o principal, essa crítica aborda uma de suas realizações seminais para discorrer um pouco sobre cinema. Esse texto é sobre ‘Desejo Profano’, lançado em 1964 e um dos melhores filmes já realizados. Essa introdução, cheia de elogios e adjetivos não se trata de exagero e sim de enfatizar o quanto Shohei Imamura é um cineasta monumental. Sem mais.

‘Desejo Profano’ traz características comuns na obra de Imamura: a maestria da mise-en-scéne, a precisão e a beleza das composições de quadro, os mecanismos complexos de trabalhar a narrativa aliados a temas comuns a seus filmes: o sofrimento intenso da mulher, o sexo desesperado como jogo de dominação, o prazer associado à dor, a ambição humana como motor das ações dos indivíduos, o mudo em desordem, os tipos marginalizados na sociedade, relações íntimas pautadas pela violência (psicológica e física) e pela crueldade, o lado animalesco, abjeto e brutal do homem e a ácida crítica as estruturas de funcionamento da sociedade japonesa a partir do pós-guerra, período de crescimento capitalista, ocidentalização dos costumes e anulação das subjetividades em prol do desenvolvimento da nação. Sem contar os traumas e humilhações reprimidos pelos japoneses após a derrota na Segunda Guerra e os efeitos da carnificina que matou milhares de japoneses e terminou com a explosão de duas bombas atômicas em cidades nipônicas.

O filme é centrado em Sadako, uma mulher que vive em um casamento onde é oprimida pelo marido, não reconhecida pela família dele e que ainda carrega a culpa que lhe é imposta pelo fato de sua avó ter sido amante do avô do marido. Sadako foi criada pela família do marido como empregada da casa, tem um filho que não é registrado em seu nome e não é considerada legalmente um membro da família. Ela é uma pária, que carrega a maldição dos atos da avó e tem sua subjetividade constantemente anulada ou massacrada pelas pessoas mais próximas a ela. Mas Sadako é uma mulher cheia de desejos e pulsões reprimidas, Imamura nos apresenta uma personagem que deslocada em seu papel que lhe é imposto pela sociedade, mas que não toma nenhuma ação por medo, culpa pelos atos de seus antepassados e por ser mulher em uma sociedade extremamente machista e, ainda por cima, ser considera socialmente inferior, uma reles empregada. As condições de Sadako são comentários precisos de Imamura sobre o funcionamento da sociedade japonesa, com sua misoginia, seu preconceito de classes e seu moralismo hipócrita.

Logo no início do filme, um jovem invade a casa de Sadako numa noite em que estava sozinha. Ele entra para roubar, mas acabada violentando-a. A cena é de uma intensidade brutal, com ângulos fechados, uso constante de movimentos vertiginosos de câmera, movimentação caótica dentro do quadro, um destaque dramático nos primeiros planos filmados em closes radicais e um constante jogo de luzes e sombras. Imamura faz da cena um embate físico violento que culmina na entrega de Sadako a seu abusador, mas não uma entrega simples: o que era uma briga entre uma mulher e um homem torna-se uma cena de sexo abusiva em que ao ser possuída pelo agressor, Sadako acaba por se entregar a um prazer reprimido. Existe uma volúpia no corpo dela, em suas ações, gestos e nas expressões de seu rosto que nada mais é do que um misto de dor e desejo, ela é subjugada pela força, pela violência, mas desse processo surge uma mulher sobrepujada que se atira num processo de liberação do gozo que aflora pela dor, pela humilhação. Imamura subverte toda uma questão moral nessa cena e faz com que sua protagonista, num momento de agressão execrável, se torne, ao ser vítima de um crime abjeto, uma mulher sexualmente ativa. É como se toda a repressão sexual e subjetiva de Sadako explodisse num gozo que só é possível vindo de um gesto de violência extrema, dominação humilhante e entrega forçada.

Desejo Profano1O abusador de Sadako volta a persegui-la, invade sua casa novamente e a violenta mais uma vez. A cada novo encontro entre os dois (que passam a ser fora da casa), Sadako se entrega ao sexo bruto, sempre lutando, sempre após embates físicos, mas com cada vez menos resistência e seu prazer torna-se cada vez maior. As cenas de sexo entre os dois são sempre filmadas com alta dose de tensão, numa encenação que prioriza os embates físicos, os choques entre os corpos e o prazer ao mesmo tempo intenso e explosivo de Sadako ao atingir um gozo reprimido há anos, que só pode vir à tona nesse processo cruel de entrega forçada. É o gozo que se torna mais intenso pela humilhação, pela dor e pela culpa. Para Imamura, é do grotesco, da violência, da subversão moral que o sujeito se auto-determina, entra em contado e explora seus desejos reprimidos. Sadako só é uma mulher sexualmente ativa por meio da violência e da dominação.

Por outro lado, o marido de Sadako, um funcionário de uma biblioteca pública (um homem fraco e asmático) mantém uma amante obcecada por ele, disposta a tudo para tê-lo ao seu lado. Essa outra mulher também se joga num processo de humilhação para atingir seus desejos. Para Imamura, mulher é a vítima principal das estruturas que aniquilam a individualidade na sociedade. Não tem direito a voz, não pode agir, não é dona de suas vontades. A humilhação e subjeção da mulher é um dos principais elementos do discurso de Imamura para expor uma sociedade movida pela hierarquização de gênero e classe, totalmente sectária e que destrói individualidades por meio de códigos morais hipócritas e regras de conduta reacionárias e excludentes. A mulher funciona para Imamura como uma metáfora do Japão do pós-guerra: entregue, humilhado e subjugado ao ocidente e ao capitalismo e a ganância, a coisificação do ser humano e o consumismo que ele traz.

De volta a ‘Desejo Profano’; o envolvimento de Sadako com seu abusador torna-se mais do que uma forma de consumação de seus desejos e obtenção de prazer, ela passa a questionar toda sua vida, toda a repressão emocional e subjetiva de que é vítima. A protagonista passa a pensar em se livrar da vida e das maldições a que estava acostumada, pensa em ter seu filho registrado em seu nome, em fugir com seu abusador para Tóquio, pensa que o que sente por esse homem não é só desejo, mas talvez amor e cogita a se livrar de suas agruras de qualquer maneira, nem que seja pelo suicídio; a morte passa ser elemento de libertação. Dos abusos, violências e agressões é que Sadako passa a tomar consciência de si e do mundo a sua volta, a planejar saídas para o que antes não via solução. Aqui temos um mais um elemento típico de Imamura, da abjeção surge a oportunidade de libertação, a esperança e a lucidez vem da dor e do sofrimento. É por meio desses paradoxos que Imamura se aprofunda nas características psicológicas de seus personagens e é a partir deles que o diretor vai imprimindo texturas e complexidade aos seus tipos.

O ser humano só é livre, só toma as rédeas de sua vida, só se auto-determina e consuma seus desejos por meio de uma entrega a subversão da moral, a negação dos princípios ditos éticos. É na corrupção do caráter, na traição, no crime ou mesmo na morte que o indivíduo pode se aproximar da plenitude existencial, mas para Imamura ela nunca chega por completo, as forças de opressão serão sempre maiores. O mais próximo que se pode atingir dessa plenitude existencial são em momentos de fuga, em pequenas ações, breves instantes de prazer e conquistas fugazes. Imamura filma uma sociedade infame que beira à loucura em um caminho para caos e a autodestruição.

Da relação degenerada entre Sadako e seu abusador/amante Imamura passa a se aprofundar no personagem do rapaz, um infeliz que perdeu o pai na guerra e viu a mãe se prostituir para criá-lo e ainda por cima sofre de uma grave doença no coração que pode matá-lo a qualquer momento. Mas o diretor não poupa ninguém, não tem pena de seus personagens, não existe nenhum tipo bom, puro ou nobre. Imamura não faz julgamentos morais, apenas mostra o ser humano como corrompido e incapaz. Todos são vis, frágeis, agressivos, opressores ou vítimas. O abusador de Sadako nada mais é do que um fraco, um ladrão e estuprador que busca desculpas para seus crimes para tentar ser menos infeliz, um homem que abusa das abjeções da misoginia para fugir de seus tormentos. Após uma série de conflitos violentos, do desespero, das dúvidas, dos medos, da fraqueza, da incapacidade de seguir seus planos e intenções que movem todos os personagens de ‘Desejo Profano’, Imamura fecha o filme com um cínico e frágil processo de empoderamento de Sadako, que consegue pequenas conquistas, mas que a manterão sempre longe de uma completude existencial e com sua subjetividade constantemente reprimida. Os alentos que Imamura dá a seus tipos são vislumbres de autodeterminação, eles nunca escaparão da condenação, do anulamento e dos sofrimentos a que estão marcados.

Shohei Imamura discute todas essas questões por meio de uma mise-en-scéne primorosa que pulsa energia e vigor. O diretor é frontal, constrói o quadro para explorar ao máximo as intensidades e a fúria dramática de seus planos e deixar tudo na superfície da tela, na cara do espectador. Imamura compõe o quadro em sua totalidade, usa o scope como poucos, abusa das ações, dos elementos dramáticos e da presença dos personagens nas bordas dos quadros, cria conflitos entre os primeiros planos – filmados em closes radicais e ampliados pelo uso das distorções de lentes como a grande angular – e os planos de fundo – trabalhados com o esmero em que usa a profundidade de campo e suas potências dentro da janela em scope. Imamura explora ao máximo os movimento dentro do quadro e os contatos físicos entre os personagens, mexe a câmera com vigor, com movimentos intensos e bruscos, travellings com a câmera na mão e intercala tudo isso com enquadramentos inusitados em que posiciona a câmera e usa as possibilidades de captação de diversos tipos de lente para criar distorções que ampliam a sensação de desordem dramática e a relação caótica entre os tipos, os objetos e os ambientes na tela.

'Desejo Profano'Suas narrativas são fragmentadas, repletas de elipses bruscas, de digressões e flashbacks, de pensamentos dos personagens que surgem como falas em off, de momentos oníricos, de imagens congeladas sobrepostas às falas, de uma evolução dramática baseada na autonomia da significação de cada plano em relação ao todo narrativo. Imamura busca muito mais o sensorial e a força das imagens e das ações dentro de cada sequência do que uma unidade de evolução narrativa clássica. Imamura faz um cinema da intensidade, filma e constrói suas imagens com fúria e transforma tudo em um discurso ácido e direto potencializado pela força imagética de suas composições.

Imamura recria o caos do real e expõe suas entranhas como se o rasgasse a faca através das pulsões que constrói por meio da decupagem, da mise-en-scéne, da evolução narrativa, das modulações dramáticas das cenas e da montagem. O crítico e cineasta Jairo Ferreira escreveu uma das mais interessantes e originais análises sobre sua obra: “No cinema de Imamura apenas conta a energia que comanda a sobrevivência. Ele tem os pés em terra firme. É um desmistificador. Seus personagens dão o máximo e não alcançam o mínimo. É a condição humana. É a chama que não se apaga. São as cinzas fornecendo energia para uma nova abertura, onde o pesadelo será dilacerado, o absurdo elucidado, o cotidiano compreendido.”

‘Party Girl’, de Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis

Por Fernando Oriente

Party GirlÉ raro em um primeiro longa que cineastas acertem de maneira contundente na junção correta entre forma e matéria, que consigam que discurso e narrativa atinjam pontos de densidade sem cair em maneirismos, emulações de alguns estilos de cinema já consagrados ou em muletas estéticas e narrativas. Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis (os três diretores que co-assinam a realização do filme) conseguem esse feito em ‘Party Girl, longa de 2014 e uma das boas estreias do ano em nossos cinemas. Apesar de certa irregularidade (presente em raros momentos em que algumas situações dramáticas poderiam ser exploradas de maneira mais longa e elaboradas, mas que não prejudicada em nada o desenvolvimento da obra), o longa de estreia do trio de realizadores resulta em um filme forte, com momentos realmente impactantes e uma relação muito sólida entre a câmera e a protagonista Angélique. ‘Party Girl’ é um filme totalmente voltado a sua protagonista, ao que ela sente, ao que ela carrega de seu passado (o que a coloca em um constante limbo existencial diante aos fatos novos que a envolvem no presente) e a maneira como Angélique se tornou, com seus mais de 60 anos de vida, uma pessoa cética, que procura esconder sua melancolia em uma rotina de constante movimento, cercado pelos espaços e as pessoas que a mantém segura dos receios de uma vida que ela não sabe como viver fora de todos os códigos e maneiras de defesa que encontrou para se proteger daquilo que possa ameaçar as redomas de auto-proteção que ela ergueu em torno si ao longo dos anos.

A encenação de Amachoukeli, Burger e Theis é toda baseada em uma decupagem ágil, planos curtos, pequenas e constantes elipses, enquadramentos fechados e uma câmera ágil, na mão. O trabalho de câmera é notável, mesmo em constante movimento – movimento que também está presente o tempo todo dentro do quadro – a câmera dos diretores sabe exatamente por onde se deslocar, quais personagens procurar, quais ações ressaltar. É quase sempre Angélique que a câmera procura, sejam seus gestos e, principalmente seu rosto, seus olhares e a variação de sentimentos que ela exprime por meio desses olhares.

Angélique trabalhou a vida toda em cabarés e mesmo com mais de 60 anos ainda vive e trabalha em um, na fronteira entre França e Alemanha. Nesse ambiente ela se sente segura, embora não exista uma simplicidade na construção de sua personalidade, os diretores deixam sempre evidente que se trata de uma mulher melancólica, que embora sinta certa segurança em estar dentro do cabaré, em beber e sair com as amigas e colegas pela cidadezinha onde mora, carrega dentro de si uma dor reprimida pelas frustrações e perdas que a vida lhe impôs. O filme não cai em sentimentalismos, em situações de dramas piegas, não perde tempo explicando ou revelando as tristezas e dores do passado de sua protagonista. Sentimos o peso daquilo que Angélique viveu apenas por meio de seus olhares, seus gestos, seus silêncios, algumas de suas falas, seus sorrisos reprimidos. Sua entrega à bebida, as danças, ao movimento constante que preenchem seus dias e suas noites.

A virada dramática de ‘Party Girl’ acontece quando Angélique aceita casar com um de seus clientes mais fiéis, Michel, um homem da sua idade, que já não quer mais se relacionar com ela no cabaré, que sonha construir uma vida de companheirismo dentro de padrões mais normais segundo os códigos sociais. Aposentado, dono de uma casa confortável, ele quer construir ao lado dela uma vida serena, pacata, um refúgio de tranquilidade para alguém que se sente velho demais para manter uma rotina de noitadas, bebedeiras, cabarés; alguém que idealiza em Angélique uma parceira, uma mulher que supra sua solidão em meio ao pouco de conforto que conquistou ao longo da vida. Michel é carinhoso, compreensivo, dedicado. Trata Angélique com respeito, sabe e aceita todo seu passado, mas quer construir algo novo, uma situação em que a rotina em que ela está acostumada a viver (sobreviver) não terá mais espaço.

Mesmo reticente Angélique aceita o casamento, com isso se aproxima de seus filhos e netos mais próximos, retoma o contato com seu outro filho que mora em Paris e parte em busca de uma reaproximação com sua filha caçula, que lhe foi tirada pela justiça ainda criança e entregue a uma família adotiva. Todas essas novas relações que surgem no filme, a relação da protagonista com filhos e netos, a reaproximação da filha caçula que ela não vê há anos, o convívio do casal com seus amigos (tanto os de Michel quanto as de Angélique) e a maneira como Michel participa dessas novas convivências na vida de Angélique são trabalhadas com complexidade e naturalidade por Amachoukeli, Burger e Theis, que fazem desses encontros, dessas descobertas e dos novos conflitos dramáticos que surgem junto com os novos personagens em cena momentos dramaticamente consistentes em que as texturas das relações, a evolução narrativa e as camadas dramáticas dos personagens em constante interação sejam expostas ao espectador de maneira objetiva e autêntica. Estamos diante de um filme que trabalha bem cada personagem, cada relação entre eles, que constrói os vínculos entre os tipos de maneira sincera, que deixa de maneira sóbria e consciente muitas tensões e dramas apenas sugeridas ou restritas ao extracampo, que ressalta os aspectos e limitações humanos de pessoas comuns em meio a situações bem construídas dentro de um naturalismo vigoroso no interior de situações banais e corriqueiras.

'Party Girl'Mas o centro do filme é Angélique, seus sentimentos, suas limitações, sua melancolia reprimida, sua tristeza suspensa. Por mais tentadora que a nova vida pareça, ela, embora se esforce e reconheça o valor daqueles que a cercam, parece não conseguir de adaptar ao lado normatizante da sociedade. Sabemos que ela é uma sobrevivente, que passou décadas construindo pequenos mecanismos de defesa para uma vida de limitações e renúncias. Ela nunca irá pertencer ao mundo das pessoas normais. Ela é uma funcionária de cabaré, ela encontra segurança na noite, em casas noturnas com suas luzes artificiais, seus encontros fugazes, nos porres e na amizade com mulheres que são como ela, marginalizadas do mundo pequeno burguês e suas migalhas de conforto e alegria institucionalizada.

Angélique é fruto do meio em que sempre viveu, das marcas desse meio e do estilo de vida que isso impôs a ela, que fez com que encontrasse formas precárias de segurança, proteção e autodeterminação como mulher marginalizada, que aprendeu a aceitar todas as renúncias a que foi forçada, que se sente muito mais viva no movimento constante, nas bebedeiras, nos ambientes de cabaré, na alienação discreta de um dia a dia sem regras, na companhia de suas pares. Ela sabe que a solidão em que vive é o que a vida reservou para ela. São tantas marcas, tanto foi vivido por essa mulher, que qualquer forma de normalidade, de aproximação e troca mais intensa com outro ser humano a faz mais consciente de sua melancólica e de sua vida de sofrimentos. É mais seguro e cômodo continuar sua rotina de instantes fugazes, relações distantes. Ela precisa dessa solidão discreta, não existe mais tempo para que fuja daquilo que a sua existência forjou para ela.

Isso tudo, que não é pouco, nos é passado de maneira sólida, ágil, reflexiva, com força e intensidade por Amachoukeli, Burger e Theis, tanto pelas escolhas corretas no desenvolvimento narrativo, na construção e evolução dos personagens e suas relações, nas modulações dramáticas, na edição vigorosa (com seus cortes abruptos e secos) e num trabalho ótimo de câmera, totalmente ancorado numa belíssima decupagem. Belo filme, que ainda reserva uma conclusão com direito aos lindos planos, cheios de significação, que fecham o filme.

‘A Erva do Rato’ e um pouco sobre o cinema de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

Julio Bressane

Julio Bressane

A partir das explanações de Julio Bressane sobre seu cinema e, particularmente, a respeito de seu filme ‘A Erva do Rato’ (2008), é interessante a proposição de comentários sobre a obra do mais importante cineasta brasileiro vivo. Bressane diz que não tem explicações sobre o que seus longas retratam; afirma não saber exatamente o que cada um de seus filmes diz de específico. Dentro de sua complexa abordagem das imagens e dos mecanismos do seu cinema, Bressane apenas questiona, aponta caminhos e exalta a procura da significação. Sua obra abre sempre possibilidades para interpretações, nunca para explicações. Julio Bressane encara o cinema, seus filmes, como uma travessia, por meio deles (os filmes) ele atravessa diversas formas de manifestações artísticas e distintas disciplinas do saber.

Suas imagens são dialéticas em essência; na composição dos quadros, na desenvolvimento de tudo aquilo que seus planos capturam, dentro e fora de campo, nas modulações dramáticas e nas variações internas e externas das ações e intenções de seus personagens. Bressane usa a luz de forma primorosa, é ela que articula a transformação do que está em cena. É essa luz transitória, que promove desenhos e revela o invisível dentro dos enquadramentos, que permite a constante presença sensorial do desejo de tornar-se, do desejo de vir a ser inerente das essências de suas imagens. As mudanças e nuances dessa luz compõem o devir do quadro que nada mais é do que o devir dos planos, o devir de seu filmes. Bressane imprime a presença material da luz em cada um dos fotogramas de seus filmes.

No cinema de Bressane as imagens assumem um caráter significante mais amplo, tornam-se significantes em si a partir do momento que se aglutinam em sequências digressivas em relação à narrativa como um todo. O diretor desprende suas imagens da continuidade diegética clássica. Elas não exercem função narrativa clara e contemplam, em um processo de continuidade e ruptura, bem como na relação entre o dentro e o fora de quadro, uma constante pulsão em dissolverem-se em outros elementos e significados através do tempo. A própria narrativa se dissolve em ações desarticuladas no peso do tempo.

E o tempo em Bressane é sempre heterogêneo. Cada plano contém diferentes tempos, já que no tempo presente coexiste o peso do passado e as incertezas e possibilidades do futuro. É a definição de Gilles Deleuze da imagem cristal, aquela que refrata a realidade, multiplicando-a. Na metáfora deleuziana, a imagem atual convive com uma imagem virtual, sentida pelo espectador, em que o passado está no presente. E nesse tempo heterogêneo o que formula as tensões do quadro é o conflito entre essas imagens (esses tempos). Esse conflito, tão bem explorado por Bressane, é a essência de sua dialética cinematográfica. Existem diversas questões que se formulam e muitas possibilidades de interpretação que se confrontam. São os fluxos do tempo que fazem do cinema de Bressane um acontecimento, não uma representação. O diretor não reproduz a realidade, ele a cria. Seus filmes podem ser vistos, ainda sob a ótica de Deleuze, como “lâminas de tempo”, recortes múltiplos e contraditórios desse mesmo tempo heterogêneo. Por meio desse processo, Bressane transforma o aparentemente banal em extraordinário, o comunal em descomunal.

Há no cinema de Julio Bressane um constante movimento de transformação caracterizado pelo encontro entre percepção e matéria. Ser e matéria não são jamais estáveis e é o devir dos planos (principalmente pelas potências das modulações da luz) que embala esse movimento constante de transformação. A percepção do tempo heterogêneo se dá por meio dessa luz e desse movimento sensorial que constitui a base da mise-en-scéne de Bressane. Dentro de uma concepção brechtiana, Bressane acentua a autonomia dos planos em que sua construção estética se solidifica. Seus personagens agem dentro de pulsões específicas que são acionadas pela palavra, pela percepção ótica, pelos estímulos cerebrais, pelo texto, pelas ações ou mesmo pelo tato. Estão sempre em busca de algo, sejam respostas, sejam sentidos. Em suma, estão sempre sendo conduzidos pelo desenrolar das imagens-tempo.

Novamente voltando a Deleuze, nota-se claramente em Bressane, por meio dessa rigorosa construção estética, “um punhado de tempo em estado puro (mas heterogêneo) que emerge na superfície da tela”. O tempo deixa de ser derivado da continuidade narrativa para aparecer (e ser sentido pelo espectador) em si mesmo. Em seus filmes, Bressane fatia fenômenos perceptivos e produz novas (mas transitórias) totalidades. Produz, de forma dispersa e aleatória, distintas situações óptico-sonoras de causalidade incerta, ou mesmo ausente, em que os ganchos de continuidade dramático-narrativos foram rompidos e se propõe ao espectador como um processo criativo multifacetado, que pode levar a distintas representações e significados.

'A Erva do Rato'

‘A Erva do Rato’

Sem de forma alguma explicar, mas tentando interpretar, vamos a ‘A Erva do Rato’, lançado pelo diretor em 2008. No longa (concebido dentro de um rigor que chega a ser intencionalmente esquemático), o casal protagonista vive uma espécie se suspensão temporal em que os eventos mínimos se arrastam. Em um primeiro momento o homem (Selton Mello) dita uma série de informações contidas em livros técnicos que são anotadas metodicamente pela mulher (Alessandra Negrini) em cadernos de fichamento. Esse processo (a fala e a audição) pode ser visto como uma afirmação e posterior interiorização de conceitos externos que, ao serem lidos mecanicamente por ele e anotados por ela, disparam outras pulsões que vão colocar o casal em um jogo de captura e exposição de sentimentos e desejos mais profundos. Ao fotografá-la em posições sensuais e reveladoras (mas também extenuantes e desconfortáveis), ele está capturando e apreendendo seu interior. O desejo sexual latente da mulher é exposto por meio de suas posições reveladoras, em que se abre ao olhar do homem. Esse, com uma câmera fotográfica, extrai dela partículas de sua essência ao mesmo tempo em que se excita (interiormente) com a visão de seu sexo exposto. Ao se abrir, ela faz com que sua sexualidade venha à tona; ela se desnuda e se desprotege. Com isso permite que algo “impuro”, ou mesmo abjeto, venha lhe penetrar o corpo e a alma. Esse algo “sujo”, desestabilizador de uma modus de vida pequeno-burguês, surge como um rato. O animal, considerado repugnante pela maioria das pessoas higiênicas e civilizadas, vai provocar o ciúme e a ira do homem, ao mesmo tempo em que vai acionar a pulsão sexual e a libido da mulher. O rato, e o que ele representa, não é algo meramente ameaçador, mas sim a materialização e a possibilidade de consolidação de desejos passionais e instintos recalcados do casal.

Alessandra Negrini em 'A Erva do Rato'

Alessandra Negrini em ‘A Erva do Rato’

É interessante, mesmo partindo de uma análise simplificadora e pouco extensa, notar como os elementos com que Julio Bressane trabalha podem assumir diferentes processos significantes que permitem diversas capturas e interpretações de significação nos espectadores de seus filmes. Para atingir tal nível de complexidade, o diretor solidifica seu discurso cinematográfico em planos rigorosamente construídos, em que compõe o quadro em todos os seus detalhes. Essa composição, que Bressane chama de montagem do quadro e compara ao processo criativo de um pintor, é a essência da dialética de seu cinema, de sua arte de tempos heterogêneos.

‘Os Encontros de Anna’, de Chantal Akerman (1978)

Por Fernando Oriente

Os Encontros de Anna“Pra que serve tudo isso?”. Essa frase, que é ouvida mais de uma vez e falada por mais de um personagem, pode ser uma das chaves para se entrar no universo de inquietude e desilusão que permeia a jornada de melancolia e desencanto da protagonista de ‘Os Encontros de Ana’; um dos grandes filmes de ficção de Chantal Akerman, lançado nos cinemas em 1978. Por meio de longos planos estáticos (recurso quase sempre presente no cinema de Chantal) e travellings compassados, a cineasta constrói um aprimorado diálogo entre os sentimentos difusos de sua personagem central com os diferentes tipos que cruzam seu caminho. Existe no filme uma dilatação das situações, sente-se constantemente o peso do tempo das ações e das não-ações.

‘Os Encontros de Anna’ é um longa em que as sensações e as sugestões estão em primeiro plano. As figuras dramáticas e seus discursos servem, ao lado da rigorosa construção estética, para ampliar o aspecto sensorial do filme A mise-en-scéne, em que a composição do quadro segue um rigoroso senso na disposição dos atores em cena e cria uma sutil relação entre os diferentes níveis da profundidade de campo, é construída como suporte narrativo para as muitas texturas dessas mesmas sensações. As cores sóbrias, dispostas em uma desbotada paleta em tons de marrom, são realçadas pelo uso de uma luz diurna clara e fria e uma iluminação noturna em que a claridade artificial asséptica ressalta o estado de espírito de tipos à deriva. A câmera de Chantal Akerman retira o máximo das expressões dos atores. Tanto nos diálogos como nos longos silêncios, momentos cruciais do longa em que os tipos “falam” constantemente com o espectador.

A protagonista (interpretada de forma primorosa por Aurore Clément) é movida em suas ações quase que pela simples obrigação de seguir adiante. Ela é cheia de incertezas e sua inquietude reprimida é arrastada em meio à carência e a solidão. As falas dos personagens que Anna encontra em sua jornada são por muitas vezes monólogos em que sentimentos recalcados vêm à tona e se confundem com o discurso interno que a protagonista exprime por meio de seus silêncios e suas expressões. Existe uma verbalização do que Anna sente em quase todas as falas do longa. Ela é o fio condutor que aglutina o desencantamento diante do mundo. Sua angústia e sua incapacidade em exprimir objetivamente aquilo que sente é o reflexo de toda uma sociedade européia que perdeu o encantamento e a esperança. Ela é o rosto cheio de dúvidas e insegurança que se move sem rumo em meio a uma resignação involuntária incapaz de ser rompida.

“Pra que serve tudo isso?” em um mundo em que o sentido das coisas está cada vez mais turvo e a possibilidade de se ter algo sólido, ou mesmo alguém que supra a onipresente sensação de carência, parece ser algo inatingível? O peso dessas questões é o cerne desse filme impressionante, em que Chantal afirma sua capacidade de adensar os recursos visuais que tanto domina a serviço de um cinema cuja representação do humano e das sensações que ele carrega está sempre em primeiro plano. ‘Os Encontros de Anna’ é um longa ímpar em que o discurso coeso e complexo de Chantal Akerman é sentido em cada enquadramento.

‘Adeus à Linguagem’, de Jean-Luc Godard

Por Fernando Oriente

Adeus à LinguagemPara Jean-Luc Godard, em toda sua obra e demasiadamente em ‘Adeus à Linguagem’, é por meio do conceito amplo da estética, ou seja, de um conjunto inter-relacionado das imagens, sons, ruídos, colagens, textos, ações, discursos, sobreposições, músicas, questões e idéias que pode haver uma possibilidade (nunca a certeza ou a garantia, mas as probabilidades contidas nos signos e significantes) para a existência do discurso – da linguagem, do cinema como expressão artística, filosófica, estética, política e existencial. Mesmo que esse discurso seja desconstruído constantemente pelo próprio Godard. Todo o ensaio poético que é ‘Adeus à Linguagem’ – com suas narrativas fragmentadas, com a sobreposição de imagens e textos, de seus muitos diálogos, de sons e movimento, por meio da própria composição dessas imagens em camadas (ampliadas aqui pelos efeitos do 3D) – é uma construção simbólica e sensorial de um conjunto de idéias, de enunciados, de questões, de afirmações (sempre contrapostas, reafirmadas ou questionadas) que configuram a percepção de mundo, o recorte pessoal de Godard sobre o atual estado das coisas, bem como um retrato das inquietações e da visão complexa e criticamente melancólica de um cineasta de 84 anos que mantém a pulsão e o vigor artístico no auge de sua potência criativa (muito mais ousado, radical e original do que qualquer jovem artista).

‘Adeus à Linguagem’ é um filme político, filosófico, antropológico, semiológico ao mesmo tempo em que se trata de uma obra próxima a uma sinfonia minimalista, densa em sua simplicidade, expressiva em cada um de seus detalhes e impressionista pela abertura porosa com que se entrega ao espectador com uma gama enorme de possibilidades interpretativas e sensoriais.

Se Godard sempre trabalhou numa constante construção estética em que imagens eram compostas sempre para gerar conflitos com as ações, com as palavras e com o uso radical da banda sonora, em ‘Adeus à Linguagem’, JLG faz um uso primoroso das possibilidades do 3D. Em alguns momentos, ele usa o 3D dentro de sua função primeira, que é potencializar de maneira límpida a profundidade de campo e com isso intensificar as relações entre os primeiríssimos e primeiros planos, os planos médios e os planos de fundo. Quando Godard usa o 3D dessa maneira mais tradicional, ele o faz por meio de uma construção de quadro exuberante, em que o posicionamento de câmera, as angulações, a mise-en-scéne, as ações e a movimentação dos personagens e as relações entre eles e os objetos de cena ganham um sentido de desordem e movimento constante que ampliam o discurso do filme em relação às camadas conflitantes das múltiplas representações nas formulações da linguagem e ao deslocamento existencial do homem no espaço, no mundo. Nessas cenas, personagens entram e saem de campo, interagem entre si, dialogam, ou apenas observam as ações de outros, quando não apenas passeiam dento do quadro para logo em seguida saírem de cena.

Mas o uso mais radical e constante que Godard faz do 3D em ‘Adeus à Linguagem’ é quando ele distorce os efeitos do 3D para explorar as múltiplas camadas das imagens e faz com que elas entrem em conflito intenso entre si ao mesmo tempo em que são radicalizadas cada vez mais. JLG usa efeitos que tornam as imagens tridimensionais difusas, borradas, onde o foco e a limpidez se dissolvem em planos cujas camadas da imagem se desprendem umas das outras, se sobrepõem e criam uma sensação de desordem sensorial, em que o olho do espectador é provocado pela não clareza das cenas, pelas distorções visuais que o conflito radical das imagens em texturas de 3D fragmentadas provoca. É um experimentalismo visual e estético que gera desconforto e acentua ainda mais o discurso de desarranjo imagético e discursivo do mundo e do indivíduo. Um desarranjo, um desconforto que parte destas distorções das imagens em camadas conflitantes dentro do uso fraturado do 3D e passam a se relacionar de maneira mais agressiva aos textos, aos sons e a todo o conteúdo discursivo do filme. A instabilidade da imagem provocada pelo uso desses recursos por Godard em ‘Adeus à Linguagem’ pode ser compreendida como a tentativa de criação de um espaço-tempo através do qual detalhes específicos podem ser percebidos, problematizados e aprofundados.

Novamente Godard utiliza a constante variação de diferentes captações de imagem e das múltiplas texturas com que essas imagens surgem na tela. Imagens de arquivo, passagens de filmes antigos, cenas filmadas em digital de alta resolução, sequências com cores estouradas e saturadas, imagens de baixa resolução, um uso primoroso da luz e das variações de luminosidade dentro do quadro, redução na velocidade dos planos e as distorções imagéticas do uso radical do 3D são parte fundamental da composição estética de ‘Adeus à Linguagem’ e potencializam ainda mais a provocação dos sentidos que o diretor causa no espectador pelo uso radical e criativo da fusão frenética de diversas formas de representação do mundo por distintas composições imagéticas.

Toda esta construção do discurso estético do filme é sobreposta ao texto. Muitas vezes os diálogos são diegéticos (estão sendo proferidos pelos tipos que vemos na tela), em outros momentos o texto e a palavra vêm do extracampo; frases (idéias, questões) que são repetidas em momentos distintos ao longo do filme. Tudo isso aliado a um uso radical do som, que por meio de frases, citações e discursos dispersos, diálogos recortados, interrompidos e novamente retomados, ruídos e músicas formam um bloco sonoro que se desdobra em múltiplas texturas sonoras, que comentam, reafirmam, negam e potencializam as imagens em que estão inseridos, com as quais dialogam dialeticamente. Godard é, a cada novo filme, mais dialético, mais aberto aos conflitos estéticos que servem de suporte para os confrontos ideológicos de seu discurso.

'Adeus à Linguagem'‘Adeus à Linguagem’ é composto por inúmeras citações, textos, fragmentos de pensamento de nomes como Walter Benjamim, Dostoievski, Jacques Derrida, Freud, William Faulkner, Alan Badiou, Flaubert, Proust, Beckett e Sartre, entre muitos outros. Godard costura esses textos, em meio aos seus próprios textos, às suas idéias e falas de uma maneira orgânica que o permite criar um discurso totalmente novo e autônomo, em que todos esses autores, filósofos, e pensadores se fundem ao texto de JLG em um discurso original que re-significa e atualiza todos esses conceitos e idéias sob a ótica e a formulação discursiva dialética de JLG. Cada plano é um devir em si.

Se Godard aborda no filme a crise, o iminente fim ou saturação da linguagem (representação) da sociedade ocidental, ele o faz ao preencher seu filme com diálogos e textos (sempre ancorados nas potencialidades e instabilidades das imagens) em que se discutem a morte, a representação dos indivíduos, o amor, a guerra, o papel do Estado, as limitações do indivíduo, as questões político-econômicas, as possibilidades de duas ou mais pessoas estarem realmente juntas e em sintonia, a solidão, a busca metafísica por Deus e o colapso de um modelo de sociedade que claramente está em seu crepúsculo. A linguagem e o discurso e seu possível esgotamento é um reflexo, bem como um sintoma desse mundo europeu, ocidental que está à beira de uma exaustão real e, principalmente simbólica. O filme é uma elegia à imagem, a uma representação esfacelada do que restou para tentar se aproximar dessa sociedade à deriva.

‘Adeus à Linguagem’ trabalha dentro do conceito do filósofo e psicanalista Félix Guattari sobre uma abordagem complexa e plural das construções dialéticas da linguagem que seja capaz de ir em direção à representação heterogênea das subjetividades. Uma representação que fuja da construção mercantilizada pela alienação de uma indústria cultural e simbólica que inunda a sociedade com visões pré-fabricadas de uma subjetividade única, baseada em padrões ocidentais capitalistas de uniformização castradora do indivíduo. Godard aborda as possibilidades de construções da linguagem, das imagens, da fala, dos textos, dos sons e dos conceitos teóricos (tanto políticos, quanto sociológicos, filosóficos, históricos, estéticos e antropológicos) de maneira que seja possível uma visão/construção da linguagem como representação da pluralidade dos indivíduos e de suas subjetividades heterogêneas, sempre em processo de constituição, em contradição. Uma construção coletiva e aberta dessa subjetividade heterogênea proposta por Guattari.

É dentro desse processo que aproxima Godard de Guattari, que JLG usa constantes menções a sociedades arcaicas ou simplesmente ignoradas pela visão eurocêntrica. Temos no filme referências à construção simbólica do mundo feita pelos índios, uma busca constante de uma personagem sobre como se compreender a África e suas organizações simbólicas e sua ignorada construção subjetiva. E temos uma permanente aproximação (uma observação crítica através da câmera), por meio de imagens, planos inteiros, sons e ruídos da Natureza, sejam em imagens de plantas, do solo, rios, do mar, de rochas, da terra, da água e de espaços abertos em que o homem nunca está em cena. Aqui, é um cachorro quem faz o elo entre a linguagem primeira contida na Natureza e o mundo construído das cidades urbanas em que homens e mulheres habitam e se deslocam, como espectros, em constante movimento, mas um movimento ilógico, mecanizado, desprovido de percepção dos espaços e da relação que eles têm com esses ambientes. Esse mundo urbano é representado por Godard em cenas que registram a movimentação e os ruídos de bares, estações de metrô, ruas, avenidas, estradas, postos de gasolina, faróis de trânsito, um píer onde turistas entram e saem de um barco que passeia em círculos por um lago, imagens filmadas de dentro de carros em movimento e sequências no interior de um apartamento de um casal, esses os responsáveis pela maioria dos diálogos e textos do filme. As cenas nos vários cômodos do apartamento trazem algumas das mais belas imagens do filme e impressionam pela maneira orgânica como Godard filma os corpos em suas ações mais banais, em movimento ou estáticos e a beleza que Godard extrai do registro da materialidade desses corpos nus.

A subjetividade animal, as teorias de como um cachorro percebe o mundo e se insere nele, é um dos principais comentários do discurso de Godard em ‘Adeus à Linguagem’, porque é justamente na oposição entre a capacidade de observação, a relação física e simbólica que o cão tem com o espaço que os homens perderam.

A obra de Godard sempre teve como centro motor uma busca estética, formal e de discurso por problemas, angústias, feridas e inquietudes do presente, mas sempre em relação ao passado e seus efeitos. É por isso que ‘Adeus à Linguagem’ é entrecortado por imagens de filmes clássicos, por cenas documentais de arquivo em que vemos guerras e personagens históricos, representações imagéticas de um tempo passado que ecoa na desordem do mundo contemporâneo.

Esse processo se torna elemento cada vez mais central no cinema de JLG desde os anos 80 e se radicaliza em sua fase mais ensaística, a partir dos anos 90, após o diretor concluir suas ‘Histoire(s) du Cinema’. Nunca oferecendo soluções, e sim problematizando essas questões dentro de um paroxismo que contamina seus enunciados, situações dramáticas e a própria mise-en-scéne de seus filmes. Essa construção está em cada fotograma de ‘Adeus à Linguagem’.

‘Adeus à Linguagem’ é mais uma reafirmação de JLG de que o cinema para ele – seu cinema, sua arte – é algo que problematiza, gera conflitos internos e externos a sua própria matéria, abusa de digressões e da dialética constante entre imagem, textos e sons; uma obra que trabalha nas contradições, nas incertezas, no levantamento constante de questões, nas arestas, no confronto de idéias, numa encenação em camadas e fragmentada e nas aberturas para inúmeras leituras, interpretações e reinterpretações. Seu cinema não é dotado de esclarecimentos prontos, de certezas, de dogmas que entregam experiências acabadas para o espectador. ‘Adeus à Linguagem’ e toda a obra de Godard permitem ao público uma contemplação crítica e reflexiva em que podem e são convidados a buscar interpretações múltiplas do mundo e de si mesmos.

Adieu au LangageA linguagem é o processo pelo qual as representações são concebidas, absorvidas e codificadas. Se o desejo, para Freud, é uma representação, é a linguagem que vai pautar as relações de construção entre o sujeito e a concepção de seus desejos e suas vontades. Em ‘Adeus à Linguagem’ Godard trabalha em cima da crise dessa relação da construção do desejo e de ordenamento interno das vontades, um desejo frustrado, muitas vezes incapaz de se materializar em discurso e impossível de ser satisfeito, mas que se mantém em processo de formação e reconfiguração constante de suas representações por meio das imagens, suas camadas e significações, por meio do texto, por meio dos sons e ruídos, por meio das múltiplas possibilidades de absorção do mundo e de como elas nos conduzem de maneira conflituosa a construções de absorção interpretativas dos espaços, dos indivíduos e das macro e micro relações que se constituem e se dissolvem num movimento perpétuo de re-significação do mundo e das múltiplas subjetividades em conflito constante com esse mundo, não só material, mas também imaterial, aquilo que transcende a própria razão lógica e material da vida. ‘Adeus à Linguagem’ é uma obra-prima, um filme melancólico, crepuscular, mas nunca resignado. Uma frase dita em determinado momento do longa pode servir de farol para um aproximação sintética do discurso godardiano no filme: “Em breve todos precisaremos de intérpretes. Precisaremos de intérpretes para entendermos aquilo que sai das nossas bocas”

Há séculos, um gênio como Mozart, entre as inúmeras realizações que deixou para o mundo, compôs o seu réquiem, mesmo que de maneira involuntária. Hoje, outro gênio, Jean-Luc Godard, parece ter feito exatamente a mesma coisa, porque ao realizar ‘Adeus à Linguagem’, Godard pode ter composto o seu próprio réquiem, só que de forma total e melancolicamente voluntária. Para sempre Godard.

‘Os Amantes Crucificados’, de Kenji Mizoguchi (1954)

Por Fernando Oriente

'Os Amantes Crucificados'Os anos 50 podem ser vistos como a época em Kenji Mizoguchi elevou seu cinema, que já era brilhante, a um patamar ainda superior. Foi nessa década que o diretor realizou seus últimos filmes (já que viria a morrer em 1956). Entre esses longas estão algumas das principais obras-prima de Mizoguchi, bem como seus trabalhos mais conhecidos mundialmente. É desse período títulos como ‘Oharu, A Vida de Uma Cortesã’ (1952) ‘Contos da lua Vaga’ (1953), ‘O Intendente Sansho’ (1954), ‘Os Amantes Crucificados’ (1954) ‘A Saga do Clã Taira’ (1955) e seu último trabalho ‘A Rua da Vergonha’ (1956). É como se todo o estilo, o discurso político-social, as questões humanas, o trabalho com a forma e sua relação com o conteúdo, bem como o primor estético de Mizoguchi ao longo de sua carreira fossem depurados, intensificados e aprofundados pelo diretor na fase final de sua carreira. Os filmes de Mizoguchi nos anos 50 são verdadeiras aulas de cinema, de encenação, de composição de planos e sequências, de evolução narrativa e de construção estética de um discurso sempre em camadas e texturas profundas.

‘Os Amantes Crucificados’ tem todos os elementos da grandiosidade do cinema de Mizoguchi e, sem dúvida, é um de seus melhores trabalhos. No filme temos a história da mulher de um rico impressor no Japão do século 12 que é obrigada a fugir com um empregado de seu marido após serem acusados de adultério e tentativa de extorsão. A genialidade de Mizoguchi está em construir todas as tensões, a evolução narrativa, as situações dramáticas e os comentários que deles retira sobre a sociedade japonesa a partir de dois inocentes que fogem sem ter cometido crime algum, mas que na fuga irão descobrir o amor e se entregar a uma paixão proibida, que os colocará em contato com a força de um sentimento que os libertará existencialmente da regras morais da sociedade ao mesmo tempo em que selará seu destino trágico, um destino do qual não tem como escapar, mas que enfrentam movidos pela força do sentimento, pelo amor pleno que os une e pela maneira de como na certeza de uma morte inevitável eles impõem à plenitude suas afirmações existenciais e a concretização e realização de seus impulsos e desejos.

Mizoguchi trabalha com a proximidade que existe entre a realização do amor verdadeiro com a morte. Como se a força da consumação de um amor profundo e sincero fosse tão desafiadora para os padrões sociais e morais que só pudesse ser consumada pela certeza da morte que condena os amantes. O amor como um gesto existencial e político, como um enfrentamento aos códigos e ao poder estabelecido. Como forma de autodeterminação do indivíduo. As pulsões do amor e da morte caminham lado a lado em um mundo que vive por esmagar o ser humano em contratos sociais, exigências de hierarquia e regras morais. Situar ‘Os Amantes Crucificados’ no passado é uma forma de Mizoguchi tecer comentários sobre o Japão de seu tempo, é como se o diretor afirmasse que as estruturas de anulação do desejo, da repressão aos sentimentos e o moralismo machista e elitista fosse fatores universais que atravessam a sociedade japonesa des seus tempos mais primórdios.

Falar de Mizoguchi é falar sobre a excelência da mise-en-scéne que caracteriza todo seu cinema. A encenação em Mizoguchi é sempre próxima da perfeição. ‘Os Amantes Crucificados’ tem em cada um de seus fotogramas esse brilhantismo de encenador tão característico do diretor. A beleza da construção dos quadros, da composição dos planos, do apuro na decupagem, da força sensorial da narrativa construída dentro de cada sequência e potencializada pela evolução dessa narrativa sempre em função da exploração máxima das potências dramáticas, das camadas significantes das ações e das múltiplas texturas e complexidades dos personagens. ‘Os Amantes Crucificados’, como todo o cinema de Mizoguchi, é trabalhado pelo diretor em cada detalhe. Suas imagens são, ao mesmo tempo, de uma beleza assombrosa e carregadas de complexidades, significados e possibilidades dramáticas e narrativas. Tudo é construído em função da força do filme como um todo, em função da história, das emoções, dos personagens e de suas ações e do discurso que o cineasta imprime em sua obra.

Vemos a câmera de Mizoguchi posicionada sempre no lugar certo, conferindo ao quadro o máximo de expressividade e capacidade de representação dramática das ações por meio dos ângulos escolhidos. Os movimentos de câmera são sutis e elegantes, reorganizam as ações, potencializam a relação física entre os personagens e os ambientes bem como se relacionam com aquilo que está no extracampo. Mizoguchi usa planos longos, os estende até o limite para que os deslocamentos, tanto da câmera quanto dos tipos e suas ações sejam sempre explorados ao máximo dentro da relação tempo-espaço. Mizoguchi condiciona as emoções extremas que trabalha à presença física dos personagens, a suas relações entre si e com os espaços em que estão inseridos. O espectador sente o peso dos gestos, dos conflitos, da fisicalidade dos corpos e objetos, dos significados e do tempo dentro das delimitações da construção e extensão dos planos com que Mizoguchi compõe suas sequências.

O uso da profundidade de campo é notável no filme, bem como em todo o trabalho de Mizoguchi, especialmente a partir da metade dos anos 40 e, mais ainda, em suas obras dos anos 50. ‘Os Amantes Crucificados’ é um perfeito exemplo para se perceber como o uso da profundidade de campo é fator de potência cênica e dramática em Mizoguchi. O crítico Robin Wood (sempre citado por Sérgio Alpendre, um dos melhores críticos e maiores conhecedores da obra de Kenji Mizoguchi) afirma que, nos filmes de Mizoguchi – e isso é notável em ‘Os Amantes Crucificados’ – o brilhante uso da profundidade de campo mantém o espectador consciente todo o tempo dos vários níveis de ação contidos nos planos. Esse uso preciso da profundidade de campo está presente em todos os ambientes das ações, tanto nos cenários fechados como quartos e interior de casas, como nos espaços abertos. Isso só ressalta como o diretor trabalha a construção de quadro, a decupagem, os posicionamentos de câmera, a disposição dos atores e objetos em cena bem como constrói seus movimentos de câmera pensando em cada detalhe do plano. Mizoguchi trabalha cada sequência como um artesão, potencializando ao máximo tudo que o espectador vê na tela.

A mulher e seu sofrimento, os abusos sofridos por ela dentro de uma sociedade moralista e misógina sempre esteve no centro da obra de Mizoguchi. Ele foi um dos pioneiros do cinema japonês a utilizar a opressão da mulher (bem como o protagonismo das personagens femininas em suas narrativas) como tema e como representação das abjeções das estruturas político-sociais e da radical hierarquia da sociedade nipônica. Depois de Mizoguchi, a partir da Nouvelle Vague, vários diretores vão retomar a questão da mulher a das violências impostas a ela como simbologia e alegoria do Japão.

O cinema de Kenji Mizoguchi utiliza muitos elementos do melodrama e da tragédia. É por meio dessa opção dramática que o diretor consegue sempre extrair o máximo de emoção e sensorialidade de suas cenas e das ações nelas contidas bem como de toda a evolução narrativa de seus longas. Mizoguchi faz isso de maneira precisa, sem cair nunca em sentimentalismos ou em pieguices, nunca extrapola os limites da dramaticidade e das intensidades das relações e ações dos personagens, ele é contido e rigoroso e, a partir desse rigor e contensão consegue que as situações dramáticas sejam exploradas de maneira densa e em múltiplas camadas. Isto é notável em ‘Os Amantes Crucificados’, em que vemos a força avassaladora dos sentimentos amplificados nos dramas e nas ações.

Os Amantes CrucificadosDuas sequências belíssimas no filme são perfeitas para entendermos esse mecanismo de encenação de Mizoguchi. A primeira é quando os amantes se declaram e se entregam à força do que sentem um pelo outro. Em meio à fuga, exaustos, em um pequeno barquinho de madeira que atravessa um rio durante uma noite de névoa, vemos os personagens se declarando, se abraçando; seus gestos, olhares, o toque e a entrega física para uma paixão incubada por anos e que vem à tona com a força de um amor gigantesco é uma das cenas mais lindas do filme. Dentro da intensidade contida em uma cena aparentemente simples é que se torna claro a força da encenação de Mizoguchi e como uma mise-en-scéne precisa pode elevar o cinema a um nível de sensorialidade desconcertante.

A outra cena é a que fecha o filme. Em poucos planos (com ângulos abertos e dois travellings em planos mais próximos), vemos o cortejo que traz o casal de amantes para serem crucificados perante a população. Amarrados, de mãos dadas, seus rostos mostram a felicidade por estarem juntos, por terem enfrentado tudo e todos e estarem prestes a morrer dentro da consumação do amor que sentem um pelo outro e que foi capaz de libertá-los. Uma libertação simbólica, que será consumada ao morrerem juntos, ao morrerem pela afirmação desse um amor. ‘Os Amantes Crucificados’ é, também, uma das mais belas histórias de amor que o cinema já teve.

Mostra Nicolas Klotz no CineSesc em SP e ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu nos cinemas

Por Fernando Oriente

Mostra Klotz e PercevalO cinema do diretor francês Nicolas Klotz vai muito além de seu longa mais famoso, o belíssimo ‘Questão Humana’ (2007), que chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros e também em DVD. Os filmes de Klotz, sempre em parceria com sua mulher Elisabeth Perceval – tanto as ficções como os documentários e filmes experimentais -, trabalham dentro de uma constante pesquisa de linguagem e discurso, buscam sempre expressar tanto questões sociais, políticas e existenciais do homem contemporâneo quanto discutir o valor e as representações das questões que envolvem a imagem, sua construção e como essas imagens se relacionam com a arte, a história, as representações de mundo e a própria evolução do cinema na sociedade.

A Ferida

‘A Ferida’

Klotz e Perceval têm seus longas, médias e curtas exibidos pelo CineSesc em São Paulo, de 15 a 22 de julho, dentro da mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’. São filmes raros, em diversos formatos e que dialogam constantemente entre si e com o mundo em que vivemos. Entre suas ficções, além do já consagrado ‘Questão Humana’, os destaques são ‘Paria’ (2000), ‘A Ferida’ (2004) – o melhor filme de Klotz – e ‘Low Life’ (2011). Esses dois últimos foram exibidos na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Uma sessão imperdível na mostra do CineSesc é que a reúne os curtas e médias de Klotz e Perceval, filmes que podem ser lidos como estudos, alegorias, ensaios e experiências visuais e sonoras sobre o próprio cinema, seus mecanismos, seus dispositivos e suas relações diretas com a história como arte e linguagem (todos extremamente cinematográficos, cinema puro e visceral). São filmes em que, apesar da desconstrução estético-narrativa, Klotz e Perceval não deixam de elaborar e desenvolver como parte de seu discurso político no cinema e destacar o papel dos marginalizados e excluídos dentro da composição do tecido social contemporâneo.

Dois outros destaques estão na programação da mostra no CineSesc. A estreia mundial do novo filme de Klotz e Perceval, ‘Zombies’, recém finalizado pelo casal e a primeira exibição do documentário ‘NK + EP’, dirigido pelo curador e produtor da mostra Leonardo Luiz Ferreira (autor do belo ‘Chantal Akerman, De Cá’ (2010), co-dirigido por Gustavo Beck). ‘NK + EP’ faz um registro sentimental da  passagem de Klotz e Perceval pelo Brasil em 2014 e a visita que o casal fez ao Morro do Vidigal no Rio de Janeiro na procura por uma atriz para um teste de elenco.

Veja aqui a programação completa da Mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’ no CineSesc. 

 ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu

Rua SecretaO primeiro longa como diretora da produtora chinesa Vivian Qu, ‘Rua Secreta’, tem dois blocos bem distintos, duas partes claras. Entre esses dois blocos existe uma grande diferença de intensidade. Tudo de positivo que existe na segunda metade do longa – um discurso forte com situações dramáticas bem exploradas que compõem um ácido painel da China dos dias de hoje como um Estado opressor, invasivo e que controla seus cidadãos como marionetes em meio a um crescimento econômico e tecnológico que fazem do país cada vez mais uma potência ocidentalizada – não se vê na primeira parte do filme.

Todos os primeiros 50 minutos de ‘Rua Secreta’ são construídos para criar uma situação de estranhamento no cotidiano dos personagens que vemos em cena. A partir de um registro seco, com uma narrativa dividida em fragmentos que acompanham o protagonista (um jovem que se divide entre o trabalho catalogando ruas para a confecção de um mapa digital da cidade e seus bicos como instalador de câmeras de segurança) e seu envolvimento com uma jovem que trabalha numa misteriosa empresa localizada em uma rua sem saída que não consta nos mapas, Vivian Qu tenta inserir os elementos de suspense a e a construção do estranhamento que irão ganhar força dramática e se constituir como discurso apenas na segunda metade do filme. O problema da primeira parte do filme é exatamente o fato da diretora não se aprofundar nas texturas das situações que ela indica e não assumir as características de cinema de gênero (no caso o suspense psicológico e as alegorias político-sociais). Vivian tenta fazer tudo ser natural demais, esconder o estranhamento através da aparente normalidade das ações, dos personagens e da realidade em que estão inseridos, o que é um ótimo recurso, mas que exige mais potência cênica e uma maior entrega dramática à força das situações sugeridas. Vivian se preocupa demais em manter o aparente controle narrativo quando poderia ter se arriscado mais, se entregado mais às imperfeições e aquilo que escapa pelas arestas das situações dramáticas, faltou dar mais força às sugestões e ter menos necessidade de manter a narrativa sob controle rígido.

Mas ao mesmo tempo, a cineasta deixa claro que existe muito mais do que a inocência do protagonista é capaz de perceber. Se ela faz questão (e é necessário que faça para o filme se consolidar como um todo a partir da reviravolta que dá início a parte final) de introduzir esses elementos de deslocamento e de mistério desde início, ela peca ao não se aprofundar por meio de uma encenação que potencialize a estranheza em meio à normalidade. Tudo na primeira metade é leve demais, fragmentado demais; falta o vigor e as texturas da própria mise-en-scéne que estarão presentes no segundo bloco.

‘Rua Secreta’ é um bom filme em seu todo, se consolida como discurso a partir da segunda metade e caminha sólido até o final. Vivian Qu acerta em cheio ao não dar explicações, em não criar nada que tire os personagens da sua situação de impotência e de sua incapacidade de perceber a força do todo que os esmaga. Ela consolida sua alegorias sobre a China contemporânea, deixa claro os processos brutais de transformação e controle que o Estado chinês impõe aos seus cidadão tratando-os como marionetes, objetos dentro de uma máquina gigantesca que tritura as subjetividades em prol de uma pujança da nação.

O problema do filme esta na construção do enunciado, que poderia ser mais densa e caminhar de maneira mais potente dentro do desenvolvimento dramático da narrativa. O longa é irregular exatamente por termos uma parte final com as exigências de texturas dramáticas exploradas com força de encenação e uma primeira metade mais frouxa. Isso prejudica o todo do filme, mas não o impede de ter suas qualidades, não tira as possibilidades de leitura do discurso de Vivian Qu, mas priva o espectador de se projetar com mais potência dentro das construções dramáticas desde o início. Para um primeiro longa, Vivian se sai bem e faz um filme com mais qualidades que defeitos, que se mantêm fiel a sua proposta dramático-discursiva, deixa clara a força da cineasta como encenadora e que merece ser visto.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2015

Por Fernando Oriente

'Noites Brancas no Pier'

‘Noites Brancas no Pier’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2015, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2015

  1.  ‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali. (França) (leia crítica)
  2. ‘Mapas Para As Estrelas’, de David Cronenberg. (Canadá/EUA) (leia crítica)
  3. ‘Sniper Americano’, de Clint Eastwood. (EUA) (leia crítica)
  4. ‘Jauja, de Lisandro Alonso. (Argentina) (leia crítica)
  5. ‘Amor, Plástico e Barulho’, de Renata Pinheiro. (Brasil) (leia crítica)
  6. ‘Mad Max: Estrada da Fúria’, de George Miller. (Austrália/EUA) (leia crítica)
  7. ‘Depois da Chuva’, de Cláudio Marques e Marília Hughes. (Brasil) (leia crítica)
  8. ‘O Pequeno Quinquin’, de Bruno Dumont. (França) (leia crítica)
  9. Branco Sai. Preto Ficade Adirley Queirós. (Brasil) (leia crítica)
  10. ‘Top Girl ou A Deformação Profissional, de Tatjana Turanskyj. (Alemanha) (leia crítica)

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‘Jauja”, de Lisandro Alonso

Por Fernando Oriente

JaujaLisandro Alonso construiu a força de seu cinema, coincidentemente em seus dois primeiros longas – ‘La Libertad’ (2001) e ‘Los Muertos’ (2004) – abordando o ser humano e sua solidão em deslocamentos (físicos e existenciais) por territórios inóspitos sem um destino certo, sem um ponto final de chagada seguro. Sua encenação, direta, com planos abertos que forçam sempre sua expansão narrativa para o extra-campo e a evolução cadenciada que conferia aos seus filmes acentuavam as qualidades de seu cinema. Mas após esses dois primeiros longas, o cineasta argentino entrou em um ponto de estagnação em sua obra. Filmes como ‘Liverpool’ (2008), mostram o diretor retomando seus temas e sua estética já de uma forma em que o que antes era força se transformou em artifícios ocos, em formuletas que fazem desse filme um tanto engessado e superficial.

Em seu novo longa, ‘Jauja’, Alonso retoma a força de seus primeiros filmes, sem abandonar seus temas centrais e seus recursos de encenação e realiza um belo e complexo filme, além de acrescentar novos elementos em seu cinema. Seu os ambientes e cenários em que desenvolve seus filmes já tinham uma importância central, em ‘Jauja’, os espaços ganham mais densidade simbólica e assumem um papel condutor na dramaturgia. Sim, como muito já se disse sobre seu novo filme, ‘Jauja’ tem fortes elementos de werten, desde a ambientação, a exploração do homem e sua pequenez diante de fronteiras desconhecidas a serem conquistadas e expandidas, bem como os conflitos físicos que se interpõem entre os personagens, seus objetivos, a violência física dos espaços e seus movimentos limitados dentro da aspereza do cenário desconhecido.

Mas o grande mérito de Alonso é fazer de “Jauja’ uma subversão discursiva do gênero. Ele reconfigura as simbologias do western, aprofunda seus aspectos míticos e entra em um campo de construção da dramaturgia em que o mítico assume uma relação mitológica, metafórica e simbólica. Esse processo se dá na fusão que o diretor faz entre os elementos materiais do western, como o uso dos cenários, as barreiras físicas e geográficas que seus personagens se confrontam, as ações físicas impostas aos tipos e a noção de conquista de novos territórios com a interiorização, a incorporação existencial da materialidade do western para dentro dos conflitos internos dos personagens, dentro de um processo existencialista de construção dramática. Os espaços e a fisicalidade das ações são refrações do interior dos tipos. Tanto que o filme caminha dos tradicionais deslocamentos do western para os movimentos internos das sensações e dos conflitos interiores e subjetivos do homem.

O protagonista, o capitão dinamarquês Dinesen (vivido por Viggo Mortensen – ótimo) nos é apresentado desde a primeira cena como um personagem deslocado. Um europeu, acompanhado de sua filha adolescente em meio a um destacamento militar que explora as fronteiras do deserto da Patagônia, no extremo sul da Argentina. Diante da necessidade de conquistar novos territórios, enfrentar a população indígena que habita a região e desenvolver pesquisas científicas, vemos um europeu distante de sua cultura, sem saber como proteger sua filha da opressão do espaço e do desejo que ela provoca nos demais homens que integram a missão.

Lisandro Alonso compõe os elementos que irão pautar os conflitos do filme desde seus primeiros momentos. As tensões entre Dinesen e os demais membros do destacamento, a amplitude dos espaços que esmagam os personagens, os rumores de traição de um alto oficial do grupo, a rudeza com que sua filha e desejada por seus companheiros de expedição e as indefinições sobre as próximas ações a serem seguidas, todos esses elementos são bem demarcados pelo diretor em poucas sequências. A virada se dá quando a jovem filha de Dinesen resolve fugir com um soldado e se entregar a uma aventura amorosa deserto adentro. Desse momento em diante, o personagem de Mortensen abando o grupo e parte em uma busca solitária pela garota. Aqui é o ponto em que Alonso penetra um de seus temas centrais. Desse momento em diante temos o homem solitário, em constante deslocamento, em meio a uma busca incerta por territórios inóspitos bem como por si mesmo.

Mobilidade constante, superação física e geográfica dos espaços, conflito físico e emocional com a natureza, tudo em meio a uma expansão crescente e conflituosa dos sentimentos internos e conflitos existências que se consolidam dentro de Dinesen por meio desses deslocamentos solitários. Descobertas, incertezas, insegurança. Nada é capaz de impedir o personagem de seguir adiante, de ir até o fim de sua jornada, por mais que essa jornada não tenha um fim, por mais que, quanto mais ele siga em frente, mais claro fique que ele não será capaz de encontrar a filha. Mais do que procurar a filha, a jornada de Dinesen se transforma em um processo em que vemos o europeu civilizado se desfazendo de suas convicções, perdendo sua força, se desconstruindo emocionalmente e entrando em contato com seus limites físicos e existências.

Alonso compõe todo esse processo de desconstrução simbólica e emocional de seu protagonista por meio da relação entre esse homem solitário que lentamente vai se desmanchando física e existencialmente na tela durante sua jornada, ao mesmo tempo em que constrói uma dimensão espaço temporal das ações em que as próprias noções de tempo e espaço se desfazem da lógica tradicional. Aqui, ‘Jauja’ entra de vez no campo do simbólico, penetra a esfera mítica do cinema que é capaz de sobrepor temporalidades distintas. Passado, presente e futuro são fundidos por meio do tratamento que Alonso dá ao deslocamento de Dinesen em sua jornada. Os espaços, os ambientes que ele percorre, vão se tornando cada vez mais indefinidos, o deserto se transforma em um lugar fantasmático, os cenários passam a ser a materialização espacial do interior de seu protagonista, do deserto inóspito que é a alma do personagem. Dinesen é tanto a frágil figura de Viggo Mortensen exausto quanto os espaços em que ele se desloca. Alonso desdobra seu personagem entre a figura humana de seu ator e os cenários que ele percorre. Ambos são Dinesen. Ele está dentro e fora de suas limitações corpóreas. Os espaços são a extensão e a essência de seu ser. Tudo o que vemos na tela é Dinesen. É essa a grande subversão que Alonso confere as potencias do espaço dentro de um gênero como o western. O cenário deixa de ser reflexo do indivíduo, extensão, motivação e barreira de suas ações dentro do tempo histórico para se tornar ele mesmo, o cenário, o próprio personagem. São os espaços e abismos interiores em que Dinesen se perde e desaparece dentro de si mesmo, é absorvido dentro de um espaço/tempo mítico, cíclico e contínuo.

‘Jauja’ é projetado em uma janela extremamente quadrada, próxima a do 16 mm. Dentro dessa radicalidade geométrica do quadro, Alonso aprisiona seus personagens pela estreiteza das bordas laterais do plano e dá força, potência e maior sentido dramático aos planos de fundo, conferindo uma radical eficácia simbólica à vastidão que se desdobra na profundidade de campo em meio aos limites laterais da imagem. Um filme que se constrói em constante expansão rumo à verticalidade proposta pela imensidão contida na profundidade da imagem.

‘Falsa Loura’, de Carlos Reichenbach (2007)

Por Fernando Oriente

'Falsa Loura'‘Falsa Loura’, último filme de Carlos Reichenbach, é uma obra que dialoga o tempo todo com as potencialidades e as transversalidades do cinema ao mesmo tempo em que se trata de uma obra política urgente e atual, totalmente inserida nas relações político-sociais, econômicas e trabalhistas dos dias de hoje. O cineasta vai do naturalismo (estilizado dentro da concepção formal de seu discurso no filme) à fábula (quase conto de fadas) com total domínio de decupagem, montagem, evolução narrativa e ritmo. Vemos os diversos gêneros sendo trabalhados: melodrama, comédia, musical, cinema político e crônica social. Mas o que mais chama atenção no longa é a presença da realidade destruindo as possibilidades de sonho e fantasia (em que prazer e dor são indissociáveis).

É um filme onde a política passou da fábrica e dos processos coletivos para os corpos do indivíduo isolado, em que o individualismo hedonista surge como única forma de autodeterminação de um sujeito com ser político. A operária Silmara (vivida por Rosanne Mulholland) está condenada a ter seus momentos de prazer (e de fuga da vida opressora que leva) solapados pelo peso do real e fragilmente ancorados apenas na beleza de seu rosto e de seu corpo e no poder que sua sexualidade exerce nas pessoas que a cercam. A exploração do trabalho, nos anos pós-triunfo neoliberal, vem acompanhada de pequenas promessas alienantes baseadas no potencial de consumo e de diversão, em que tudo é transformado em mercadoria e espetáculo, inclusive as próprias pessoas e seus corpos.

O filme começa e termina com imagens do bairro proletário e pobre que a protagonista vive e trabalha. Carlão usa esse recurso para delimitar fisicamente o lugar em que a jovem operária está presa; por mais que sonhe e se desloque, ela não tem como sair de lá. No plano de abertura, existe a fusão da imagem das casas simples com a de Silmara dançando ao lado de uma amiga. A câmera acompanha o movimento delas, vemos duas garotas bonitas e cheias de vida esbanjando sensualidade, fica clara a impressão que essas mulheres podem tudo, tem todo um caminho aberto para trilharem, a força de seus corpos são seus elementos propulsores no mundo. Já o plano final (um dos mais bonitos do cinema nos últimos anos) nos traz de volta ao real, ele acompanha, em um travelling de ré, a angústia e a tristeza no rosto de Rosanne Mulholland voltando, em um caminhar solitário, para a fábrica onde trabalha. Após ter passado por diversas situações isoladas, ter se iludido e enganado com falsas promessas de felicidade e momentos de prazer fugaz, ter sido consumida como objeto, ela é obrigada a encarar a realidade a que está acorrentada (se perceber exatamente como um objeto descartável, como peça de uma engrenagem, como mais uma no meio da massa amorfa que sustenta o sistema do capital), e novamente Reichenbach faz a fusão dessas imagens com o plano aberto do bairro; com o cárcere de Silmara. Nesse plano final vemos Carlão próximo a dois de seus cineastas favoritos. Temos nessa cena a frontalidade visceral e direta de Samuel Fuller e a potência melodramática cheia de camadas de Valerio Zurlini.

Carlão trata de temas sociais organicamente, o universo proletário, que sempre foi tão caro ao cinema brasileiro, é um terreno pelo qual o diretor caminha com segurança. Fica nítido como o cineasta ama suas personagens, suas trabalhadoras (como também se pode perceber claramente em ‘Anjos do Arrabalde’ e ‘Garotas do ABC’). São pessoas comuns, que se apaixonam, sonham e divertem-se com o pouco que tem, não existe nelas um rancor ou uma resignação que muitos olhares piedosos esperam encontrar projetados sobre indivíduos de classes sociais menos favorecidas. Ao mesmo tempo, essa passividade dos tipos reflete uma falência do ser humano como possível agente de transformação política.

O tema do falso (do mundo transformado em mercadoria, consumo, alienação e espetáculo), da invenção de uma aparência ilusória na tentativa de se criar um significado irreal, também é crucial no longa. O simulacro, a construção idealizada de arquétipos é um dos elementos básicos do cinema e da ficção em geral. Carlão usa essas características para compor a válvula de escape de Silmara, sua arma para seguir em frente. Ela sonha com cantores, do jovem vocalista de uma banda de pop-rock (Cauã Reymond) até um interprete de músicas bregas (Maurício Mattar), que são seus objetos de desejo e promessas de felicidade. Reichenbach funde fantasia com realidade ao colocar a protagonista em contato direto (sexual no caso) com seus príncipes encantados. Em ambos as situações, os momentos de prazer da jovem são prontamente interrompidos por acontecimentos que a jogam de volta, de forma seca e cruel, para seu universo em que estas possibilidades de felicidade são impossíveis. Eles a usam da mesma forma em que um trabalhador da base da pirâmide social é usado, consumido e descartado pelos capitalistas tradicionais. Principalmente nas seqüências entre Mattar e Rosanne, Carlão cria um clima de fábula, quase um conto de fadas. Leva o espectador para um mundo artificial, de suspensão, de beleza e romance para depois, de forma precisa, puxar o tapete do público e pôr a realidade sem perspectivas da operária de volta na tela.

Como se trata de um filme de Carlos Reichenbach, o espectador se encontra diante do talento inconfundível e do poder de encenação que pontua cada fotograma. Carlão constrói os quadros com preciosismo, retira de cada plano os significados e as forças dramáticas que deseja, constrói seu discurso e a evolução narrativa na força da própria matéria fílmica que é concebida pela mise-en-scéne. Move a câmera com maestria, reconfigura os quadros com planos longos, deslocamentos de câmera e movimentação dos personagens em cena, faz de cada corte um potencializador do plano seguinte, confere poder discursivo aos planos de fundo. A mise-en-scéne de Carlão beira a perfeição. As variações entre fusão de imagens, planos abertos e fechados, a força dos closes e aproximações de câmera, os ângulos escolhidos para cada take, tudo em ‘Falsa Loura’ é impregnado pelo talento monstruoso de Reichenbach como diretor.

Outra figura dramática importante de ‘Falsa Loura’ é o pai de Silmara, interpretado por João Bourbonnais. Ao contrário dela, ele não tem mais esperanças de uma realidade melhor. Traz a amargura no rosto, convive com um passado de sofrimentos e frustrações. Abandonado por todos aqueles que ama, com exceção da filha, que além de morar com ele sustenta a casa com seu salário, ele decide sair de cena. Sabe que a jovem não vai ter seus sonhos concretizados, vê o destino que a aguarda, mas é incapaz de destruir suas esperanças. Para não fazê-la sofrer, decide retirar sua triste figura de seu cotidiano. É um personagem bem construído, que tem seu potencial no roteiro ampliado bela interpretação de Bourbonnais e pelas texturas com que Carlão compõe o personagem.

Maeve Jinkings e Rosanne Mulholland

Maeve Jinkings e Rosanne Mulholland

O elenco do filme, composto por atores e atrizes das mais distintas formações, é uma das melhores coisas de ‘Falsa Loura’. Desde a ótima atuação de Djin Sganzerla, irreconhecível como a amiga feiosa de Silmara, passando por Suzana Alves, precisa na composição de uma colega de fábrica da protagonista, Bertrand Duarte em uma ótima ponta como policial, até a presença luminosa de Maeve Jinkings (uma das melhores atrizes do mundo na atualidade) em seu primeiro grande papel no cinema, todo o cast compõe um time afiado que dá peso e texturas aos personagens bem como potencializa a construção dramática do filme, tudo conduzido com maestria pela direção de cena de Reichenbach.

Todas as personagens centrais são mulheres, Carlão se debruça sobre o universo feminino com uma desenvoltura que evita clichês e faz com que o discurso social do filme tenha como um de seus principais elementos a opressão machista a e a misoginia que conduzem com a mão de ferro o mundo. Se o ambiente de exploração física e psicológica dos trabalhadores já é um fardo, esse fardo se torna muito mais pesado e violento para as mulheres; sempre mais exploradas, coisificadas, agredidas e desvalorizadas do que o homem, dentro da lógica de desigualdade de gênero que conduz nossa sociedade.

‘Falsa Loura’ é um filme sobre proletários (ou no que se transformou o que um dia foi definido como proletariado), no sentido mais literal da palavra. Os tipos que aparecem durante o longa e que não fazem parte desse universo de trabalhadores simples e pessoas abandonadas pela realidade do capitalismo, são mostrados de forma intencionalmente caricatural. Tanto o advogado, como a mulher que oferece um trabalho para Silmara fazem parte de um universo à parte dos outros personagens, são quase que onipresentes (mesmo que não se possa vê-los), mas ao mesmo tempo totalmente distintos deles. São representantes de um pequeno grupo de indivíduos que vivem de explorar, manipular e abandonar pelo caminho os sujeitos comuns que Reichenbach retrata com tanto carinho.

Carlos Reichenbach foi um dos cineastas que mais ancorou seu cinema na força e na valorização do ser humano, um autor que retratou tipos dos mais variados, mas sempre com uma aproximação orgânica em que todos seus personagens são demasiadamente humanos em suas limitações e possibilidades. Seus dramas nascem, se desenvolvem e atingem força a partir das mulheres e dos homens que vivem e conduzem suas narrativas. Todo seu discurso, seus mais variados e complexos panos de fundo, situações históricas, políticas e sociais de seus filmes partem da relação do indivíduo com o mundo em que está inserido. ‘Falsa Loura’ encerrou de maneira enorme uma carreira luminosa repleta de grandes filmes e diversas obras-primas, interrompida cedo demais pela morte precoce desse gênio que foi Carlão.

‘Deixa Ela Entrar’, de Tomas Alfredson (Suécia) – 2008

Por Fernando Oriente

Deixa Ela Entrar‘Deixa Ela Entrar’ (o longa original, sueco, de 2008, não a refilmagem feita anos depois nos EUA) é um filme impossível de se denominar dentro de um gênero específico. Nesse minucioso trabalho, o diretor sueco Tomas Alfredson usa de maneira original os elementos sempre fascinantes que envolvem as histórias de vampiro ( e as múltiplas possibilidades de leitura e simbolismos características ao mito do vampiro) e faz um filme em que o horror é uma solução para a subversão de uma ordem social desgastada e que, necessariamente, acaba condenando a todos aqueles que vivem dentro de suas regras salutares falaciosas de convivência pacífica. Essa condenação implica em existências melancólicas em que o conformismo resulta sempre em desilusão, egoísmo e falta de perspectivas. O mundo certinho dos adultos é um verdadeiro pesadelo de emoções congeladas e resignação consentida.

O universo social que aguarda o jovem protagonista do filme (Oskar) ao entrar na adolescência é frígido e não reserva nem um fio de esperança para um futuro minimamente feliz. A estranheza da entrada na puberdade não é fruto das expectativas por uma vida plena de autodeterminações de personalidade e possibilidades de conquista, mas uma promessa ameaçadora de um porvir resignado em torno da mediocridade coletiva que nem mesmo a sexualidade e as demais relações interpessoais podem aliviar de um fardo já anunciado.

Tudo muda quando Oskar conhece Eli, uma garota de 12 anos que, além de ter a mesma idade que ele, carrega a mesma tristeza colada à sua figura aparentemente frágil. Os tormentos de Eli são de outra ordem do que aqueles que afligem o menino, mas a identificação entre suas almas e a inevitável atração que surge entre eles irá uni-los de forma intensa (e o eterno tema do florescer da sexualidade ganhará tratamento sensível e diferenciado por parte de Alfredson). Eli impressiona Oskar não apenas pelos fatores que os assemelham, mas porque a jovem emana uma força e uma postura em relação ao opressor ambiente que os cercam que acaba por servir de guia para o garoto, não só em seus primeiros passos na puberdade, mas também nas alternativas que passa a cogitar em como lidar com tudo aquilo que o incomoda. É aqui que ‘Deixa ela Entrar’ começa a impor-se em sua originalidade. Eli é uma vampira e a abordagem do lado bestial que um vampiro representa na sociedade ganha, além de um distinto tratamento cênico, outras repercussões e significações graças à maneira preciosa como Alfredson desenvolve o tema, compõe as texturas dos personagens e cria as situações dramáticas.

Tudo parte do conflito criado entre o já descrito mundo adulto e as possibilidades de rejeição desse meio. Os jovens passam ater uma possibilidade de negar a entrada no círculo condenatório da vida responsável desses adultos exatamente pela rejeição desse estilo de vida que é representada no caráter “monstruoso” do vampirismo de Eli.

O monstro aqui é aquele que rejeita a melancolia, a passividade e a prostração dos mecanismos de existência considerados normais. Ao contrário da maioria dos filmes de terror, em que a monstruosidade e a degeneração são sintomas que perturbam a norma correta e estável da boa vida burguesa, ‘Deixa Ela Entrar’ imprime a essa aberração um discurso resistência e de negação do verdadeiro estado abjeto em que a sociedade normal está condenada a viver. Os personagens mais velhos do filme são tipos reprimidos, amargurados e frustrados. Arrastam-se em meio ao nada, são espectros que perambulam sem ter algo minimamente interessante para fazer ou dizer. A frieza com que Oskar é tratado pela mãe e pelo pai, ambos ausentes e desumanizados em suas concepções cênicas, contrapõe-se com o crescente afeto que surge em seu relacionamento com Eli. A ligação entre os dois é muito bem construída por Alfredson, que vai aprofundando a cumplicidade entre eles ao mesmo tempo em que se envolvem afetivamente com cada vez mais intensidade.

Para se combater esse estado de coisas é necessário que os dois garotos consumem suas pulsões violentas. Seja em questões de sobrevivência para Eli ou em termos de autodeterminação para Oskar. Alfredson não nega, muito pelo contrário, a necessidade do uso da agressividade como ferramenta de sobrevivência, como mecanismo de defesa e como forma de consolidação de personalidade. A violência no filme é traduzida em cenas elegantemente filmadas, em que a brutalidade ou é sugerida, ou é mostrada com distanciamento por meio de ângulos abertos, sempre ressaltando a densa atmosfera e o forte potencial imagético que Alfredson impregna em seu longa. ‘Deixa Ela Entrar’ é um filme de climas muito bem definidos em que se sobressai a constante sensação de suspense e a desconfortável tensão que tipos diferentes do padrão representam em meio a um ambiente que se pretende tão normativo e previsível, bem como irremediavelmente enfadonho.

A mise-en-scéne é rigorosamente orquestrada pelo diretor, que abusa de enquadramentos criativos, funcionais movimentos de câmera e uma decupagem sóbria e funcional, além de usar com maestria as potencialidades dos cenários onde ocorrem as ações. Trata-esse de um filme político e de confronto, cujo discurso é traçado nos subtextos, na estética e nas nuances e ambivalências propostas pela da encenação, que fazem com que cada cena seja trabalhada e construída minuciosamente usando os elementos estruturais e apropria matéria fílmica como significantes que vão se somando a um intrincado processo de codificação e sugestão de signos que retiram o espectador da passividade e o força a um processo dialético de absorção daquilo que está contido no desenvolvimento dramático-narrativo do filme.

Além de compor um drama cheio de camadas e forte densidade, Alfredson capricha no caráter formal de seu filme. A luz branca e chapada do sol de inverno e as luzes artificiais das sequências noturnas ou internas compõem um interessante contraste com a brancura do cenário nevado e as cores sóbrias e desbotadas do cenário. Esse recurso potencializa o paradoxal registro das situações, que é ao mesmo tempo terno e distanciado, sem nunca cair em sentimentalismos baratos. ‘Deixa ela Entrar’ é um desses filmes que chegam sem alarde, impressionam por sua originalidade e tornam-se imperdíveis.

‘Top Girl ou A Deformação Profissional’, de Tatjana Turanskyj

Por Fernando Oriente

Top Girl ou A Deformação ProfissionalSegundo longa da cineasta alemã Tatjana Turanskyj, ‘Top Girl ou A Deformação Profissional’ pode ser encarado como um pequeno estudo sobre a coisificação da mulher dentro de um mecanismo de anulação do indivíduo pela rotina do trabalho, onde um cotidiano mecanizado transforma as ações, sejam elas as mais banais, em gestos vazios de significação e fazem da vida uma ininterrupta repetição incessante de movimentos, atos, deslocamentos e tarefas em que a subjetividade não existe; viver para não viver, agir só dentro da passividade da aceitação de que o mundo é cumprir compromissos que não se pode evitar. Rotina essa que aliena, que depura o ser humano de qualquer possibilidade de gestação de afeto e esvazia a alma a ponto de tornar o indivíduo em um ser autômato. Um filme sobre o papel insignificante do sujeito dentro de um mundo ultra capitalista em que não existe mais escapatória para a autodeterminação de identidade.

Helena, a protagonista do filme, trabalha como prostituta. A câmera de Tatjana acompanha de perto sua personagem, por meio de pequenas elipses, em seu cotidiano de atender clientes, satisfazer suas fantasias e desejos sem julgá-los, se deslocar entre sua casa onde mora com a filha de 11 anos (e com quem mal tem tempo de se relacionar), seus encontros com as colegas de profissão na casa da cafetina para a qual trabalham e onde treinam e pensam em estratégias de marketing para melhorar o faturamento da empresa e em seus encontros com a mãe, que eventualmente cuida da filha enquanto ela passa dias e noites se dirigindo de um cliente a outro, de um trabalho ao próximo compromisso profissional.

Um dos grandes méritos de Tatjana Turanskyj é encenar tudo com um a naturalidade fria, mecânica e depurada de sentimentalismos. A diretora não julga nada do que seus personagens fazem, apenas registra seu cotidiano com a frieza calculada de quem disseca um trabalhador em suas tarefas. Esse mundo homogeneizado do trabalho, onde a prostituição é apenas mais um emprego, onde trepar por dinheiro é igual qualquer outra ocupação profissional é a base do discurso de Tatjana. Tudo é reduzido ao trabalho, a gerar lucro, a fomentar as rodas do mundo da produtividade, em que os bens de consumo são commodities de grande potencial financeiro e simbólico.   A mulher, nesse universo capitalista regido pelo machismo e a misoginia, tem na exploração da sua força de trabalho um agente de transformação de suas subjetividades em commodities de alto valor de mercado.

As cenas de sexo são gélidas, mecânicas e sempre fragmentadas, interrompidas. O que vemos são recortes, pedaços das sessões de Helena com seus clientes. A expressão em seu rosto não se altera em nenhum momento durante seus encontros com os clientes, seu olhar é sempre vago, desprovido de emoção. Tanto seus gestos como sua postura são de alguém que já se encontra vazio em sua essência, em que a aceitação da mecanização da vida já foi assimilada e nunca é questionada. Helena segue em frente, trabalha, não vive, não pensa, não deseja nada além do que seu cotidiano lhe oferece. O trabalho, a inserção, a transformação definitiva do ser humano em peça da engrenagem do capitalismo, é normatizada. Na sociedade da produtividade, não existem mais possibilidades para questionamentos, nem para alternativas de enfrentamento da precarização da existência. ‘Top Girl ou A Deformação Profissional’ é um retrato do mundo contemporâneo, uma visão cética e sóbria de uma sociedade que evolui a passos largos para a total anulação do sujeito como indivíduo capaz de se auto determinar, um universo onde cumprir tarefas profissionais é a única ação legitimada pela sociedade. Por isso afetos, relações sólidas, trocas interpessoais, desejos são objetivos que simplesmente parecem não mais existir. É o trabalho como mecanismo de negação do desejo.

Na sequência final do longa, Tatjana Turanskyj se permite criar uma alegoria, fugir da objetividade crua do registro material do mundo que constrói ao longo do filme. Helena organiza uma performance para um grupo de executivos em meio a um fim de semana de bônus por sua boa produtividade na empresa. Essa performance é um presente que o chefe desses funcionários dá como recompensa pelos bons serviços profissionais prestados por seus empregados. A performance, encenada de maneira direta e sem sentimentalismos ou apelações piegas, consiste em colocar prostitutas nuas a correr por um bosque para serem caçadas pelos executivos como se fossem animais. Tudo não passa de uma brincadeira para esses homens, uma possibilidade de relaxar em meio à rotina de seus empregos. Mas o que a diretora explicita com muita competência por meio de uma rigorosa encenação e uma decupagem ágil, é um estágio ainda mais degradante na vida profissional dessas mulheres, que além de já terem se tornado objetos, agora são reduzidas a simulacros de bichos. Não só um comentário sobre a degradação do trabalhador, mas sim uma maneira de afirmar que se o mundo do trabalho já é degradante para um homem, para a mulher essa degradação é ainda mais abjeta.

O cinema de Tsai Ming-Liang – breves comentários

Por Fernando Oriente

Vive L'Amour

Vive L’Amour

Existem cineastas que marcam a vida de um apaixonado pelo cinema desde o primeiro contato com uma de suas obras. O cinema de Tsai Ming-Liang causou esse fenômeno na minha vida. Assim como diretores que descobri por meio de sessões na Cinemateca (quando ainda era na Rua Fradique Coutinho em São Paulo), em cineclubes, em retrospectivas, festivais, na Mostra Internacional de Cinema em SP ou mesmo em VHS ou na televisão. Essa lista de cineastas que literalmente mudaram minha vida, meu jeito de ver e pensar o mundo e que, por muitas vezes, falavam e pensavam por mim por meio de seus filmes pode ser vista nesse link do site. Mas esse breve texto é sobre a obra de Tsai, que conheci na primeira metade dos anos 90, ainda adolescente, no filme ‘Vive L’ Amour’ (1994).

Rever a obra de Tsai Ming-Liang completa, de ‘Rebels of the Neon God’ (1992) até ‘Cães Errantes’ (2013) – para ficarmos apenas nos longas feitos exclusivamente para o cinema (sem nunca deixar de lado a força de vários de seus curtas e filmes-ensaio) – é uma experiência que abala os sentidos. É uma oportunidade de penetrar um universo visual e material extremamente rigoroso em que conteúdo e forma se moldam em imagens particularíssimas compostas por um cineasta que constrói cada um de seus filmes a partir da força que imprime a cada plano. A dor crônica da existência e a incapacidade da construção de relacionamentos interpessoais estão presentes em todos os longas do cineasta malaio radicado em Taiwan. Esse aspecto ganha força extra pela constante opressão que os espaços (ambientes, cenários, extra-campo) exercem sobre os tipos.

Essa opressão da existência está fisicamente presente nos gestos e nas imobilidades dos personagens, no minimalismo recorrente da mise-en-scéne e no uso de elementos matérias como água, o calor e a seca, sempre em conflito com os elementos humanos. O desejo sexual reprimido, que quando se concretiza é de forma obsessiva, maquinal e dolorosa, torna o universo de Tsai ainda mais angustiante. Seus filmes estão diretamente ligados uns aos outros. Cada novo trabalho do realizador evolui a partir de sua obra anterior e remete ao todo de seus longas. É como se ele realizasse um mesmo filme, em que novos capítulos se somam, aumentando e diminuindo a importância de elementos em relação uns ao outros.

Adeus, Dragon Inn

Adeus, Dragon Inn

O que mais chama atenção no cinema de Tsai Ming-Liang são o rigor na construção das cenas e o impacto que ele extrai delas. Isso é notável na composição dos quadros, no posicionamento primoroso da câmera, na ação dos personagens dentro da cena e no pouquíssimo uso da palavra. No cinema de Tsai, é a partir da construção de cena que podemos apreender um discurso coerente que sugere a opressão dos personagens, sempre mergulhados em sentimentos como, apatia, amargura, melancolia, solidão e desilusão e esgotamento emocional. Essas sensações se encontram representadas nas atitudes e na sensação de claustrofobia provocada pelos ambientes fechados e pela maneira como as cenas de exterior são compostas para refletir os estados de espírito dos personagens por meio dos elementos presentes nos quadro. Nos espaços abertos, os personagens são como que objetos minúsculos que borram um cenário caótico em sua desordem e movimento, ainda mais oprimidos pela amplitude urbana.

Tsai Ming-Liang desenvolve sua mise-en-scéne com a intenção de ressaltar o peso da presença material e do movimento físico de seus personagens, bem como as sensações internas de seus tipos por meio de suas expressões faciais e seus gestos. Ele busca a densidade do tempo nessas ações, o que fica impresso nos deslocamentos e ao mesmo tempo na estagnação dos personagens no espaço do quadro, e a enorme relação que existe entre eles e tudo o que está no fora de campo. Tsai decupa seus filmes e compõe suas cenas organizando minuciosamente os deslocamentos das figuras dramáticas e suas ações. Ressalta sempre por meio desse processo as atitudes, os gestos, as poucas falas e o silêncio. As cenas são compostas dentro de um espaço global coerente, claramente lembrado a cada instante.

Tsai utiliza-se de uma possibilidade característica da mise-en-scéne contemporânea: o encerramento de seus personagens através do olhar da câmera para condicionar o peso da opressão dessas figuras dramáticas. Essa reclusão imposta pelo cineasta aos seus personagens permite a exploração de muitas possibilidades significantes desse encerramento espacial e existencial, principalmente a exposição dos estados de espíritos e dos sentimentos desses tipos. Esses elementos são orquestrados pelo diretor com o destacado uso do som, onde ruídos e silêncios dão espessura e densidade às cenas. A longa duração de planos, cenas que se estendem ao máximo da temporalidade dramática das ações encenadas, o posicionamento criativo e funcional da câmera, os ângulos fechados e os closes que penetram a alma dos personagens; tudo na estética de Tsai é composta para que seu cinema seja um catalisador de sensações, um registro do humano em estado bruto, um inventário sobre a angústia e a melancolia contemporâneas.

Cães Errantes

Cães Errantes

O impacto que Tsai Ming-Liang obtêm de cada sequência que constrói provoca um mal-estar no espectador, o arranca de sua passividade e de sua posição de conforto. Seus planos são contaminados por uma sensação de angústia que transborda a tela e atinge o público de forma sensorial. Os personagens de Tsai esvaziaram-se objetivamente; sofrem mais da ausência de si próprios do que da ausência de um outro, vivem um paradoxo entre o desejo reprimido de suas almas e o cansaço físico de seus corpos.

Influenciado por cineastas seminais do cinema moderno europeu, como Michelangelo Antonioni e Robert Bresson, bem como pela crueldade com que Maurice Pialat trabalhava o realismo dos dramas de seus personagens, além de nomes de peso do cinema asiático contemporâneo (Hou Hsiao-Hsien principalmente), Tsai constrói filmes que vão muito além de simples retratos do mal-estar da sociedade. Sua obra apresenta a complexidade da existência por meio das muitas camadas e texturas de seus tipos e de suas relações com o mundo. Um humor particular, ácido e cínico está presente na obra do diretor, que vai fundo nas dores humanas sem abandonar a sensibilidade do olhar e a delicadeza de situações banais, delicadeza essa que pode surgir do sofrimento, do patético e do grotesco. Um registro naturalista (sem cair nos artifícios e muletas de um certo gênero de cinema naturalista já saturado) e sensorial do mundo, impressos no rigor da construção estética, na complexidade e possibilidades dos significados, na materialidade presente impregnada em cada plano é o núcleo da obra desse que é um dos maiores autores surgidos no cinema nos últimos 40 anos.

‘Mad Max: Estrada da Fúria’, de George Miller

Por Fernando Oriente

'Mad Max_Estrada da Fúria'Diante de um filme como ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é impossível não enaltecer certos elementos que, trabalhados com maestria pelo diretor George Miller, tornam o filme uma experiência prodigiosa. Estamos diante de um longa que põe na cara do espectador duas horas ininterruptas de imagens espetaculares, sequências de ação criativas e viscerais, um movimento delirante e ininterrupto dentro do quadro, cenários e ambientes arrebatadores, personagens estranhíssimos (em construções visuais poderosíssimas) e de forte apelo visual e uma alta dosagem de tensão e adrenalina. ‘Estrada da Fúria’ é um filme de ação, de deslocamentos, de conflitos físicos, de explosões, de exploração imagética de corpos e máquinas. Trata-se de um grande tour de force visual em que discursos e simbologias (que claramente existem no filme) são mantidos em segundo plano diante da espetacularidade da força das imagens em movimentos, da ação e da magnificência da evolução narrativa simples e direta que conduz a história.

‘Estrada da Fúria’ remete diretamente ao segundo filme com o personagem Mad Max, cujo título original em inglês é ‘The Road Warrior’. Nesse longa de 1981, George Miller já aborda um mundo pós-apocalíptico, seco, que sofre com a falta de combustível e que é habitado por gangues de psicopatas, sádicos e tipos que beiram a animalidade. ‘The Road Warrior’ tem na sua longa sequência final uma perseguição de carros, caminhões, motos e outros tipos de veículos exóticos em que o personagem Max (já transformado em um homem perturbado e solitário após a morte de sua família) lidera um grupo de rebeldes em uma corrida para fugir de uma gangue de vilões alucinados e salvar os poucos mantimentos e combustível que ainda possuem. É como se George Miller tivesse pegado essa forte sequência final de seu filme de 1981 e adaptado ela para as possibilidades visuais do cinema de hoje e transformado todo esse seu novo filme, ‘Estrada da Fúria’, em uma única e extenuante perseguição de veículos. No novo Mad Max o que conta é se livrar de seus perseguidores e se manter vivo; é sobreviver com a parca esperança de encontrar um novo e idílico lugar onde se possa recomeçar a vida com o mínimo de recursos e longe da demência coletiva que contamina e aprisiona todos os personagens.

George Miller dá uma verdadeira aula de como se dirige um filme de ação, de como se encena perseguições, batalhas e lutas e de que forma pode-se construir, em meio a uma evolução narrativa frenética movida pela força das imagens, tensões, suspense e climas. A câmera de Miller é ágil, mas sempre em busca do registro preciso e potente da ação, suas sequências sequem uma velocidade acelerada, mas não omitem nada que prejudique a grandiosidade e o significado explícito das cenas. Cada sequência é construída a partir da montagem de diversos planos que se intercalam com naturalidade em função de potencializar o espetáculo. É notável o uso dos movimentos de câmera, dos longos e velozes travellings que re-organizam as ações dentro do quadro, que fazem personagens, objetos, veículos e cenários entrarem e sair de cena sempre dentro do ritmo alucinante que Miller emprega às suas sequências. Os belíssimos planos abertos aumentam a sensação de amplitude dos cenários bem como sugerem os conflitos que se anunciam por meio do uso preciso da profundidade de campo. A montagem é outro destaque do filme. Cada corte serve para ampliar a força do plano anterior, seja ao completá-lo, comentá-lo, confrontá-lo ou preparar para o plano seguinte. Os poucos momentos de calma (de respiro) em ‘Estrada da Fúria’ funcionam como preparações para a reorganização dramática que irá pautar e provocar a próxima avalanche de sequências de ação.

Os cenários, os carros, os veículos, a estranheza dos tipos, os figurinos, os ambientes, em suma, tudo em ‘Estrada da Fúria’ é construído com o intuito de criar um espetáculo visual em sua máxima potência catártica. A fotografia, a engenharia de som, a direção de arte e a cenografia, bem como a atuação dos atores, estão no filme para servir de agentes a essa ode ao grandioso, ao cinema como potência visual e rítmica que é ‘Estrada da Fúria’. George Miller faz um filme direto cujas as imagens, por mais fantásticas que sejam, não se deixam contaminar por efeitos visuais exagerados ou sejam carregadas por truques digitais que banalizam a aspereza com que o diretor compõe suas cenas. Cinema de ação puro, criativo, brutal e desconcertante, que traga o mais pacato espectador para dentro de suas engrenagens.

Mad Max_Estrada da FúriaÉ fundamental deixar uma coisa bem clara: ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é um filme para ser assistido em 2D, sua grandeza visual, rítmica e sonora não precisa em nada de truques visuais em terceira dimensão, que servem apenas para atrapalhar a total absorção das construções de plano e dos recursos imagéticos criados por Miller.

Estamos diante de um filme de imagem e de movimento, um filme de deslocamentos em que os tipos humanos são peças que conduzem máquinas. Mas isso não impede Miller de dar texturas a alguns de desses tipos e de criar simbolismos e analogias por meio de seus personagens.

A mulher, o feminino é uma presença muito forte em ‘Estrada da Fúria’. Tudo acontece por que mulheres decidem tomar atitudes drásticas, buscam liberdade e se livrar da opressão masculina a que estão condenadas. Furiosa (Charlize Theron, cujo olhar, desde a primeira cena em que aparece no filme, carrega toda a opressão e o medo causado pelo massacre machista sofrido pela mulher, não só no universo fantástico e artificioso do filme, mas exatamente como ocorre no nosso mundo, dentro da misoginia de cada dia que controla o estado de coisas na nossa sociedade) lidera um grupo de cinco mulheres que servem de reprodutoras para o tirano Immortan Joe em uma fuga que irá provocar toda a ação do filme e que irá envolver o personagem de Max na história. Quem manda é Furiosa, não Max. Por mais que ele ajude, o cérebro de tudo, a personagem mais forte de todo o filme é Furiosa. Todas as outras mulheres que entram em cena são fortes (mesmo que dentro de suas limitações), determinadas e lutam com as mesmas armas e com a mesma fúria dos homens.

E essa é uma das melhores escolhas de Miller, fazer um filme ação frontal e intenso que, ao mesmo tempo em que remete ao machismo, à exploração sexual e simbólica e à opressão da mulher, dá poder de ação a suas personagens femininas. Em momento algum faz do longa uma obra feminista (já que as mulheres têm que adotar – por desespero de causa – posturas e comportamentos masculinos pra sobreviver e batalhar), mas sim coloca a mulher em situação de agir, de lutar, pensar e tomar decisões. Se ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ é um filme sobre a sobrevivência, ele é também um longa sobre a busca da liberdade e quem conduz essa busca, essa luta, é a mulher.

‘Winter Sleep’, de Nuri Bilge Ceylan

Por Fernando Oriente

Winter SleepTrabalhar de forma eficaz, no sentido de aliar os elementos estéticos, formais, narrativos e dramáticos a um discurso e às propostas de discussão que os enunciados desse discurso apontam, é um feito para um cineasta. O turco Nuri Bilge Ceylan consegue em seu novo filme, ‘Winter Sleep’, chegar muito próximo da realização completa desse feito. Com poucos momentos de fraqueza e irregularidade, o filme faz um belo trabalho ao aliar a força visual da construção estética por meio do uso preciso da relação do tempo (tanto o tempo presente das ações, quanto aquele tempo passado que os personagens carregam) com os espaços onde os dramas se desenvolvem; espaços esses bem explorados, seja na amplidão das paisagens externas ou nos ambientes fechados. A opção pela janela em scope é trabalhada com competência dentro de uma sólida composição de quadro que marca todo o desenvolvimento do longa e que potencializa as tensões, as ações e os conflitos emocionais, tanto os que vemos na tela, quanto os que são mantidos no extra-campo e contaminam tudo o que acontece dentro dos planos.

‘Winter Sleep’ se passa em um hotel isolado na região de Anatólia, interior da Turquia, onde vivem o proprietário (Aydin), sua mulher (bem mais jovem que ele – vivida pela linda atriz Melisa Sozen) e sua irmã recém divorciada. Aydin é um homem rico que possui diversos imóveis herdados do pai que aluga na região, nas pequenas vilas que cercam seu hotel. Essas propriedades são, na sua maioria, lojas e casas em estado de deterioração cujos locatários são pobres demais para manterem o aluguel em dia. Além disso, o protagonista escreve artigos semanais para um pequeno jornal da região e tem uma carreira já encerrada de ator, em que atuou durante mais de 20 anos em pequenas peças teatrais. Para completar, Aydin ainda trabalha em um livro sobre a história do teatro turco. Essa descrição detalhada do personagem serve por si só para termos uma noção das possibilidades dramáticas e dos conflitos em que um tipo como esse pode se envolver, quando bem construído e desenvolvido com solidez. Ceylan o usa tanto para criar um arquétipo do homem capitalista culto e poderoso como para, a partir de suas características constitutivas, discutir relações familiares e ainda compor um retrato do choque de classes entre o rico ex-ator e seus inquilinos pobres.

‘Winter Sleep’ é um filme sobre o ressentimento e as frustrações que dilaceram lentamente os personagens, que se manifestam aos pouco por meio de cinismos, acusações, humilhações dissimuladas e, num crescente, provocam cada vez mais reações de agressividade e crueldade, tudo isso em meio ao apego inútil com que eles se agarram aos seus próprios orgulhos. Pessoas que convivem (marido e mulher, irmão e irmã, cunhadas), mas que não se entendem, que não se respeitam, não se comunicam. Que subjugam o outro e se escondem dentro de certezas, ações e ideologias ocas. Lentamente todas as relações viram jogos de poder, em que as vitórias (mesmo falaciosas) dos conflitos são sempre dos mais fortes, dos que detém o poder econômico, dos que têm posições sociais destacadas, ou simplesmente do macho, dentro da intransponível misoginia que submete a mulher ao segundo plano e dá sempre o poder real ao homem.

Mas o grande mérito de Ceylan é fazer dessas vitórias, desse poder, apenas conquistas vazias, que em momento algum trazem qualquer forma real de triunfo ou realização, além de não aliviar em nada a opressão existencial dos personagens e ampliar ainda mais as sensações de culpa e impotência. Todos são incapazes de evitar o isolamento em que vivem; isolados um do outro, isolados do mundo e isolados de si mesmos.

Os personagens são mantidos longe de construções estereotipadas (os bons atores ajudam muito nesse aspecto) e as situações evitam ao máximo cair em maniqueísmos, embora algumas conjunturas dramáticas (como na cena em que Nihal, a mulher de Aydin, procura ajudar a família pobre de um dos locatários de seu marido) flertem perigosamente com clichês de fundo moral e com uma construção artificial dentro da dramaturgia. O problema de ‘Winter Sleep’ é exatamente a diferença de intensidade que Ceylan extrai de diferentes situações dramáticas. O filme oscila entre momentos realmente poderosos e sequências mais frouxas, em que a potência dramática não atinge o grau de densidade que Ceylan parece ter pretendido. Mas isso não impede que o filme tenha muito mais qualidades do que defeitos.

'Winter Sleep'‘Winter Sleep’ chega a ter momentos fortíssimos, em que uma encenação sólida, uma decupagem rigorosa e uma evolução narrativa densa criam cenas marcantes, como as longas discussões cheias de crueldade, cinismo, ressentimento e violência reprimida entre o protagonista e sua irmã e depois com sua mulher, bem como na tensão sufocante dos momentos de silêncio em que os personagens são incapazes de exteriorizar suas instabilidades existenciais. Outro acerto do filme é elaborar uma discussão sobre a hipocrisia impregnada na rigidez dos conceitos morais, na falsa nobreza de espírito contida em ideais de virtudes e princípios e na falácia do assistencialismo praticado pelos mais ricos como maneira de expurgar suas misérias interiores, mas que é incapaz de fazê-los ajudar, de fato, as pessoas carentes ou mesmo fazê-los perceber e compreender a pobreza e as dificuldades em que vivem a maioria dos habitantes da região.

As tensões familiares, a força dos conflitos entre os irmãos, a família afastada em um lugar atemporal no interior de um país dialogam diretamente com o universo do escritor e dramaturgo Anton Tchekhov (principalmente se pensarmos nas peças ‘Tio Vânia’ e ‘Três Irmãs’, escritas pelo russo no final do século 19 e início do 20), com quem o filme faz referências explícitas que merecem destaque até nos créditos finais.

Em seu novo trabalho, Ceylan volta ambientar todo o longa na região da Anatólia na Turquia. Seus dois últimos filmes mantêm um forte diálogo entre si. Se em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011) tínhamos elementos do cinema policial, em ‘Winter Sleep’ Ceylan dirige seu discurso para o terreno do drama existencial e para os conflitos familiares e sociais. Mas a relação entre as ações de tipos carregados pelo peso do passado, os conflitos reprimidos no interior dos personagens que rompem em tensões dramáticas carregadas de amargura e uma situação de confronto insolúvel entre classes sociais estão presentes de maneira marcante nos dois filmes. É notável como em fazer filmes com duração maior (2 horas e 37 minutos em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ e 3 horas e 20 minutos em ‘Winter Sleep’) Ceylan encontrou a maneira certa para desenvolver com firmeza suas narrativas e trabalhar bem as questões dramáticas dentro de uma relação mais bem construída com o tempo e os espaços dos planos e das sequências, além de criar e desenvolver personagens mais densos e com texturas complexas.

Ceylan é um caso raro no cinema. Após três filmes muito ruins – ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008) – em que fazia emulações embusteiras do cinema moderno europeu, principalmente Antonioni, o diretor turco fez o bom ‘Era Uma Vez em Anatólia’. ‘Winter Sleep’ é mais um bom filme (embora inferior ao anterior), o que mostra que o diretor encontrou uma maneira e um estilo de fazer um cinema sólido e autêntico em que faz fluir seus discursos e idéias. ‘Winter Sleep’ é a prova que ‘Era Uma Vez em Anatólia’ não foi um acaso, e sim o momento em que Ceylan encontrou a força de seu cinema, que está longe de ser recheado de obras-primas como alguns críticos enxergam, mas que se faz interessante e com potência.

‘Cala a Boca, Philip’, de Alex Ross Perry

Por Fernando Oriente

Cala a Boca, PhilipCom ‘Cala a Boca, Philip’, Alex Ross Perry dá um passo a mais para se consolidar como um bom cineasta. Perry trabalha dentro dos códigos já saturados do cinema Indie americano, uma espécie de gênero dentro da cinematografia norte-americana que teve seu início e apogeu nos anos 80 e na primeira metade da década de 90, mas que desde então se tornou fábrica de filmes rasos, cheios de cacoetes moderninhos, temas contemporâneos tratados como hype e sem densidade, firulas estéticas que servem apenas para dar ares de estranheza visual e muito exibicionismo formal, tudo embalado ao som do pop rock hipster do momento. Com seu longa anterior, ‘The Color Wheel’ (2011) e agora com ‘Cala a Boca, Philip’, Perry consegue transitar por esse universo, se servir de alguns de seus códigos, mas subverter tudo e injetar densidade e textura ao temas e dramas que aborda, bem como imprimir uma encenação vigorosa que, aliada a uma edição ágil e bem ritmada, ajudam a formatar um discurso atual e corrosivo sobre questões contemporâneas.

Em seus filmes, Perry trabalha com protagonistas aparentemente antipáticos e verborrágicos, que escondem suas fraquezas e inseguranças com uma postura e um discurso agressivo, arrogante e cínico, em que fazem questão de diminuir tudo e todos que os cercam para se imporem sempre na tentativa da anulação intelectual do outro. Em ‘The Color Wheel’, o casal de irmãos que protagoniza o filme passa o tempo todo se agredindo e a atacando todos que cruzam seu caminho. Em seu filme anterior, Perry cria uma solução dramática improvável e provocativa para fechar o filme, situação que despe os personagens de sua agressividade aparente e expõe os dois irmãos como seres carentes que encontram o afeto um no outro, em uma cena direta que potencializa todo o resto do filme e dá um sentido muito mais complexo aos questionamentos que o diretor havia sugerido ao longo da narrativa.

Em ‘Cala a Boca, Philip’, Alex Ross Perry constrói o filme em torno de seu protagonista, o jovem escritor Philip, que está prestes a lançar seu segundo romance após ter obtido grande sucesso crítico com seu livro de estreia. Philip é um típico personagem desse cinema Indie americano atual, mas por meio do talento de Perry, o personagem ganha texturas, contradições internas e se desenvolve ao longo do filme. O protagonista é conduzido pelo diretor sempre com o intuito de retirar suas camadas externas e ir expondo suas complexidades existenciais. Desde as primeiras cenas já percebemos a fragilidade e as fraquezas de Philip. Perry não esconde, muito pelo contrário, deixa transbordar pelas arestas do personagem todo seu conflito interno e seu senso de deslocamento e não pertencimento a realidade em que está envolvido.

‘Cala a Boca, Philip’ se serve muito bem da força dramática e das relações e tensões provocadas pela presença dos diversos personagens coadjuvantes e dos conflitos que surgem entre eles e o protagonista. Desde a namorada fotógrafa de Philip, passando por suas ex-namoradas e principalmente no personagem do velho escritor que se torna uma espécie de mentor e melhor amigo de Philip (além de ver no jovem um reflexo dele próprio quando começou sua carreira), todos aqueles que cruzam o caminho de Philip ajudam a ir despindo o personagem de sua carcaça seca e agressiva e vão progressivamente e de maneira natural desconstruindo sua figura, expondo suas limitações e humanizando o personagem, deixando clara a solidão em que está imerso e de será incapaz de fugir. Perry constrói essa evolução dramática de maneira ágil, sem cair em pieguices e em discursos pré-fabricados ou moralistas.

O diretor não julga seus personagens, apenas os observa sempre com a intenção de penetrar em seus interiores e expor as tensões do mundo que os cerca, de revelar o que as personas e máscaras que criamos para enfrentar a vida escondem de humano e de limitado por trás. Por meio da relação entre os tipos, Perry edifica seu discurso sobre a sociedade atual, sobre o universo dos jovens intelectualizados das grandes cidades, sobre a saturamento e o caos existencial de que as pessoas tentam fugir vendendo uma falsa auto-imagem. É sobre esse estado de coisas que Alex Ross Perry pretende erguer sue cinema, com reflexões paradoxais e incertezas sempre aliadas à acidez das relações, a crueza dos conflitos e à precariedade existencial de um mundo saturado.

'Cala a Boca, Philip'A encenação de Perry é virulenta, os planos são curtos e fechados em seus personagens e nas ações. A câmera se move constantemente, mas sempre em função dos dramas, ela está constantemente procurando o registro exato das expressões, dos gestos, dos rostos e dos olhares. Os filmes de Alex Ross Perry são verborrágicos, os tipos falam compulsivamente, mas em meio a isso, o diretor insere brevíssimos momentos de fuga, instantes rápidos de silêncios, imagens que quebram a energia alucinada dos personagens e introduzem períodos de pausa e reflexão que comentam os planos, dialogam com as sensações passionais da dramaturgia e oferecem caminhos reflexivos que muitas vezes vão à contramão da visceralidade com que os personagens levam suas vidas. É como se esse breves instantes de respiro oferecessem o vislumbre rápido de realidades possíveis, mas que a intensidade a que os tipos estão mergulhados fazem com que eles sejam incapazes de perceber.

No auge do bom cinema independente americano surgido nos anos 80 e 90, com diretores como Jim Jarmusch e Hal Hartley, se dizia sobre uma espécie de neo-existencialismo que conduziam esses filmes, que retratavam de maneira mais reflexiva, com planos mais longos e diálogos que beiravam o filosófico existencial, uma inércia existencial do ser humano, uma incapacidade de se mover, tomar posições ou se auto-afirmar. Os anos passaram, a velocidade do mundo e a profusão frenética e ininterrupta de imagens e informações mudaram a realidade a que estamos inseridos, mas o vazio existencial, a solidão, o sentimento de não-pertencimento e a incapacidade estabelecer relações interpessoais permaneceram. O cinema Indie americano ficou anos incapaz de abordar de uma maneira complexa essas transformações. A se julgar por ‘The Color Wheel’ e ‘Cala a Boca, Philip’, Alex Ross Perry surge como um cineasta talentoso capaz de penetrar nesse mundo contemporâneo e de dentro dele compor filmes complexos que traduzem, sem a intenção de explicar nada, as contradições dessa nossa contemporaneidade.

‘O Pequeno Quinquin’, de Bruno Dumont

Por Fernando Oriente

O Pequeno QuinquinExiste uma presença constante nos filmes de Bruno Dumont: o mal. Um mal metafísico, que manipula personagens e ambientes, que comanda as ações e condena todos a uma letargia estática, a uma prostração sufocante. Essa força esmagadora não tem rosto, nem origem, ele é onipresente e faz-se sentir a cada plano dos longas do diretor, ela é naturalizada dentro dos mecanismos e opções de encenação de Dumont. Manifesta-se como uma doença contagiosa, que impele personagens a ações violentas, a explosões de ódio, à apatia, a relações mecanizadas desprovidas de qualquer manifestação sensível de sentimentos e a um vazio existencial aprisionante.

O mal em Dumont é diferente daquele presente no cinema de Fritz Lang ou de Alfred Hitchcock, que era a maldade que irrompia de dentro do homem e das situações para levar diretamente a ações de violência e crueldade, um mal que era uma das partes constituintes do caráter humano e que por vezes aflorava sem controle, revelando a complexidade existencial humana. Em Bruno Dumont, o mal é presença constante e força maior que rege a natureza, sendo o homem apenas uma pequena parte dessa natureza, totalmente manipulado por esse mal e incapaz sequer de percebê-lo, por isso um mal metafísico, que foge de razões psicanalíticas para se instalar como força natural (até mesmo banal) e condicionante do mundo e das pessoas. O mal de Dumont é próximo aquele que contamina os filmes de Robert Bresson, que também via a onipresença da maldade como força fundadora do mundo. Em Bresson, esse processo tinha um caráter mais religioso (embora totalmente depurado de efeitos dramáticos e sensoriais, encenados dentro de um rigor frontal, seco e objetivo), que sugeria uma dialética mística entre o real e aquilo que não se pode compreender pela razão. Em Dumont, esse aspecto místico-religioso não existe. Tudo é naturalizado e parte constituinte da matéria básica do mundo, de onde o diretor inicia e funda toda sua construção dramática e seu discurso epidérmico e direto. Tanto Bresson quanto Dumont não julgam, apenas expõem.

No cinema de Bruno Dumont, esse mal naturaliza os preconceitos, o racismo, a xenofobia, a violência, banaliza agressões e mesmo assassinatos brutais e afasta qualquer possibilidade de afeto real entre as pessoas. Os sintomas estão presentes na apatia dos tipos, na presença constante de personagens com problemas mentais, no peso dos tempos mortos em que as pessoas perambulam movidas por inércia, sem objetivos ou se largam prostradas em meio à vastidão dos espaços. Não é a toa que o cenário perfeito para os filmes de Dumont seja o interior da França, com suas cidadezinhas decadentes, habitadas por tipo rudes, ignorantes, em que a falta de ter o que fazer se funde a poeira e ao barro, às casas desgastadas pelas marcas do tempo, a estradinhas onde os personagens se deslocam em mobiletes barulhentas ou em bicicletas velhas. É uma França profunda, um apêndice apodrecido daquela nação do conhecimento, das artes e da intelectualidade.

‘O Pequeno Quinquin’, concebido como uma mini-série para a TV, mas exibido nos festivais e na versão que chega agora aos cinemas brasileiros como um longa de 3h20, é um filme em que Bruno Dumont trabalha todos os elementos que caracterizaram o melhor de sua obra até agora. É um filme que dialoga diretamente com seus melhores trabalhos, ‘A Vida de Jesus’ (1997), ‘A Humanidade’ (1999) e ‘Fora de Satã’ (2011). ‘O Pequeno Quinquin’, visto como um longa (e não quebrado em capítulos) potencializa a força do filme. Com sua longa duração, Dumont pode acentuar a intensidade que imprime ao peso do tempo que contamina as sequências, dar maior ênfase aos gestos e expressões de seus personagens, aumentar a sensação do arrastar desse tempo, ampliar a relação vazia dos personagens com os espaços abertos, com uma natureza bela, mas sufocante, capaz de camuflar toda a sordidez de um mundo desencantado em que a qualquer momento a abjeção pode surgir e desaparecer como manifestação bruta e plena desse mal que move o universo do filme, bem como a visão de mundo do diretor.

Como em seus melhores filmes, ‘O Pequeno Quinquin’, é composto por planos abertos, em que Dumont destaca a pequenez do homem em meio a um cenário amplo. O uso funcional do scope potencializa esse recurso e permite ao diretor expandir para as bordas do quadro uma amplitude geográfica que se estende para muito além dos planos, dando a sensação sufocante de um mundo incapaz de ser enquadrado em seu todo dentro de uma imagem. As forças metafísicas que regem o cinema de Bruno Dumont, esse mal primordial e atávico, transbordam os limites daquilo que sua câmera pode registrar. O diretor enfatiza que os impulsos que conduzem o destino e as ações humanas são incapazes de serem traduzidos em explicação teóricas e muito menos captados em registros imagéticos. Esse complexo discurso sobre forças metafísicas que conduzem a vida são construídos por Bruno Dumont dentro de códigos naturalistas, sem nenhuma espetacularização. Suas imagens são diretas, secas. Sua decupagem básica e aberta a pequenas elipses. A evolução narrativa não segue a lógica da construção de um clímax e nem busca a explicação lógica para os fatos.

Muitos ressaltaram os aspectos e a presença do humor em ‘O Pequeno Quinquin’. Essa comicidade existe, mas muito mais dentro de um patético, que reduz ainda mais os personagens a suas limitações e incapacidades do que como recursos de comédia. Existe uma ampliação das restrições humanas por meio de situações grotescas que provocam o riso no espectador, mas um riso que remete a uma imediata autocrítica dentro dos movimentos internos do filme.

'O Pequeno Quinquin'Em ‘O Pequeno Quinquin’ temos uma série de crimes que acontecem na cidadezinha onde se passa o filme e são investigados por uma dupla de policiais que beiram a caricatura; aqui mais uma jogada de mestre de Dumont, ao contrapor os tipos idiotizados (que beiram o burlesco) dos policias com a aspereza rude e a apatia dos habitantes da cidade. Os assassinatos são cometidos com requintes de crueldade que nunca são mostrados. Sabemos dos detalhes pelos diálogos entre os personagens. Os primeiros corpos são encontrados picotados no interior de duas vacas. Aqui Dumont aproxima de maneira clara a animalidade do ser humano, de suas ações abjetas e da fragilidade de seus corpos com a própria natureza orgânica dos bichos. Uma metáfora direta, que retorna mais tarde quando uma das personagens assassinadas é devorada por porcos. Dumont não vê grandes diferenças que separem seus personagens dos animais. A natureza corrompida pelo mal onipresente do homem o bestializa a ponto de fundir os restos de suas carnes e entranhas ao corpo físico dos animais. São as bestas humanas que batizam um dos capítulos do longa.

E existe o jovem Quinquin, um pré-adolescente que vive seus primeiros dias de férias quando a onda de crimes tem início. Quinquin é a chave dramática para Dumont ligar os pontos da trama. Ligar, não explicar. O garoto é uma figura onipresente em todos os cantos da cidade, está sempre por perto quando os cadáveres são descobertos, encontra um caminho secreto que explica como uma das vacas foi parar dentro de um abrigo militar da Segunda Guerra abandonado. Ele recebe a notícia dos crimes com a mesma indiferença dos moradores da cidade. A incapacidade de demonstrar emoções é presença marcante nos tipos que protagonizam os filmes de Dumont. Mas Quinquin tem algo a mais, que é captado e sugerido pela câmera de Dumont por meio da variação das expressões de seu rosto, por suas atitudes, pequenos gestos e pela maneira como Quinquin se destoa dos demais personagens. Existe no garoto texturas de personalidade que fogem da simples apatia dos demais personagens e o sorriso dúbio e discreto que ele estampa em seu rosto em dos planos finais o aproximam de uma maneira ambígua e aberta das fontes do onipresente mal que contamina o filme. O diabo personificado que o detetive insiste que está à solta na cidade pode ter alguma relação mais próxima das complexidades de caráter do jovem Quinquin. Nada sobrenatural, mas sim uma relação naturalizada entre um personagem e a abjeção que controla o mundo.