Sabrina Greve

‘Todas as Cores da Noite’, de Pedro Severien

Por Fernando Oriente

Todas as Cores da NoiteO primeiro longa de Severien confirma o talento que o diretor havia mostrado em seus curtas anteriores, ‘Canção Para Minha Irmã’ (2012) e principalmente o ótimo ‘Loja de Répteis (2014). ‘Todas as Cores da Noite’ (que será exibido dentro da programação da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que tem início no próximo dia 21 de outubro) é um filme que se mantém todo o tempo no campo das tensões existenciais, dialoga diretamente com o cinema de gênero – no caso o suspense e o horror psicológico -, mas faz tudo isso de uma maneira densa, compondo camadas de dramaticidade, deslocando o espectador constantemente de sua posição de conforto e desenvolvendo um discurso complexo e aberto que pode ser visto como um grande pesadelo, um caos existencial em que personagens se deslocam entre um presente suspenso no tempo (uma espécie de limbo) e marcas do passado, marcas essas carregas de ressentimento, vazio emocional, mágoas e uma violência reprimida que pode explodir a qualquer momento. Os personagens constantemente se projetam em outros, assumem sentimentos e dores do outro, suas vidas esvaziadas de sentido ganham projeção no que foi vivido pelo outro. Temos um recorte de um mundo burguês, em que tipos de classe média alta agem como zumbis em meio à falta de sentido de suas vidas e a pulsão constante de agredir qualquer um que esteja ao seu lado. A inércia das vidas vazias é sempre compensada pela violência, física ou emocional.

A narrativa do estranho e deslocado tempo presente nos coloca em contato com uma mulher (Iris, interpretado por Sabrina Greve em mais uma atuação fortíssima), moradora de um apartamento de luxo, de frente para o mar, que acorda após uma festa e encontra um cadáver em sua sala. Ela pensa que não conhece ou não lembra quem é o morto, chama uma antiga amiga, que não via há tempos, para ajudá-la a se livrar do cadáver. A partir desse evento, o filme se abre para narrativas do passado, em que Iris, sua amiga e a misteriosa empregada que chega ao apartamento contam histórias trágicas e fantásticas envolvendo pessoas e eventos de seus passados. O fortíssimo prólogo do filme conta com Iris narrando em um monólogo a história de Tiara, uma amiga de infância que atropelou e matou um amigo da turma após uma festa e depois sofreu com as consequências até sumir e não deixar rastros. Toda essa história aparece em flashback na tela em imagens e sons, montadas em elipses bruscas, em que os fatos que vemos na tela são pontuados pela narração em off de Sabrina Greve.

O paralelo entre Iris e Tiara é estabelecido logo no início, a presença dessa amiga (que ninguém sabe exatamente o que aconteceu com ela, embora no prólogo Iris dê sua explicação para o desaparecimento da garota, em uma cena em que a violência gráfica se destaca como um dos pontos altos do filme) irá se projetar nos temores e nas incertezas e na própria personalidade de Iris, ela irá se ver refletida na angústia e nos tormentos dessa amiga desaparecida. Temos o início de uma espiral em que as existências dos personagens começam a se fundir, a se refletir e se moldar uma nas outras. O tom do filme é de um constante pesadelo, um tempo suspenso em que as cenas são contaminadas por uma atmosfera de tensão muito bem impregnada em cada plano pela encenação precisa de Severien. A relação de ódio e descaso, os rancores que as personagens têm em relação a Iris vão surgindo. A amiga que vai ao apartamento para ajudá-la narra (em outro monólogo com grande intensidade dramática) fatos traumáticos de sua juventude enquanto Iris dorme, logo depois, após Iris fisicamente agredir e ser agredida pela empregada, a amiga se dirige à protagonista com um ódio intenso e ritmado, calcado pelo rancor que carrega há anos, e a humilha em um discurso de alta carga de crueldade. Iria é constantemente agredida e provocada, mas não reage. Ela é perturbada pela presença do cadáver, pela crise existencial e pela angústia que marcam sua vida e vem à tona de maneira violenta após a morte do rapaz em seu apartamento, é confrontada pela empregada, que em outro grande monólogo do filme narra uma história fantástica com elementos de horror surrealista (baseada em um conto escrito pelo próprio Pedro Severien) e sofre as ofensas da amiga, tudo sem reagir. Seu rosto está sempre transtornado por desespero, vazio existencial, impotência, incapacidade de (re)agir e dor. O tom de pesadelo reflete o interior da personagem de Sabrina Greve.

'Todas as Cores da Noite'A conclusão de ‘Todas as Cores da Noite’ é um dos pontos altos filme. Numa cena belíssima, em que o filme se atira de vez ao fantástico, Iris conversa com o cadáver, que em mais um monólogo narra uma história de seu passado, em que conta como foi cruel como uma antiga namorada. Ele termina dizendo que foi até a festa de Iris por achá-la muito parecida com essa namorada (outra personagem que também desapareceu) e pergunta de Iris não é ela. Iris diz que se lembra, conta uma história sobre os dois no passado e se projeta em uma outra mulher, novamente fundindo sua identidade com um outro imaginado e se joga ao rapaz numa belíssima cena de sexo, cheia de tensão, melancolia e angústia. Severien acerta em cheio ao manter todo seu filme no registro do anti-naturalismo, sempre aberto ao fantástico, as sobreposições de tempos e identidades, com uma tensão constante, que vai do horror ao desespero existencial, mas tudo encenado com rigor e contensão, o que torna a experiência sensória do filme muito mais densa e complexa.

Toda a força do filme se consolida materialmente na tela graças à excelente mise-en-scéne de Pedro Severien, que funciona o tempo todo ligada ao discurso; a construção das estruturas formais do longa trabalham em sintonia com as propostas narrativas e dramáticas, bem como com as atmosferas e os temas que Severien trabalha em ‘Todas as Cores da Noite’. Diretor de talento, ele compõe precisamente cada plano, a decupagem é rigorosamente trabalhada em função das tensões dramáticas e das brechas narrativas que aumentam a sensação de desconforto e uma composição do quadro que é construída minuciosamente, com enquadramentos que potencializam os espaços e a presença fantasmática de personagens atormentados em cena, a distância entre câmera e personagens varia de acordo com as modulações da tensão imposta aos planos, temos ângulos fechados e claustrofóbicos intercalado com planos abertos e estáticos que tornam e estranheza dos espaços, das presenças dos personagens e das ações ainda mais intensas. A fotografia é centrada nas variações da luz, que ditam as sensações das cenas, pontuam e preenchem o quadro com ainda mais estranheza. A direção de arte permite um uso narrativo marcante dos espaços – o apartamento é como um personagem do filme, um invólucro para os dramas, para as sugestões e para a onipresente tensão que dominam e marcam o filme. Outro detalhe enriquecedor de ‘Todas as Cores da Noite’ é o constante plano de fundo nas cenas internas do apartamento de Iris: pelas janelas sem cortinas vemos apenas a vastidão do mar esverdeado, o que isola ainda mais os tipos dentro do espaço a que estão confinados com seus dramas, angústias e sentimentos reprimidos. Após a força de seus curtas, Pedro Severien chega ao longa e se mostra como um dos mais interessantes realizadores brasileiros contemporâneos, daqueles que passamos a aguardar com ansiedade por seus próximos trabalhos.

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‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’, de Petrus Cariry

Por Fernando Oriente

Clarisse ou Aguma Coisa Sobre Nós DoisO cinema de Petrus Cariry se concentra no tempo e nos espaços. A grandeza e amplidão dos espaços e o peso de múltiplos tempos que se somam e se sobrepõem, o tempo presente multifacetado que carrega fragmentos e o peso dos tempos passados, dos tempos vividos, lembrados ou imaginados. O ser humano sempre aparece deslocado em meio a essas forças, potências muito maiores que suas existências mínimas. Clarisse, a protagonista do novo filme de Petrus é talvez a sua personagem mais deslocada de todas. Seu desconforto não é só em relação aos ambientes, ao peso do que foi vivido e as incertezas do presente. Seu deslocamento se manifesta na forma como ela se relaciona com todos a sua volta, seu marido, sua filha e seu pai. Existe um claro desconforto que pauta as relações e o convívio de Clarisse com todos a sua volta. ‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ é o filme mais tenso de Petrus Cariry, nele temos explosões de violência simbólica, dor e angústia colocadas em primeiro plano. A precariedade do ser humano, suas limitações físicas e existências e o peso da morte, da finitude assume um caráter material no longa.

A ternura melancólica que marcava a relação entre os personagens nos longas anteriores de Petrus ‘O Grão’ e ‘Mãe e Filha’ cedem espaço em ‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ ao conflito, ao ressentimento e ao desespero reprimido que por vezes transborda em ações extremas. Clarisse (Sabrina Greve, ótima como sempre) viaja para encontrar seu pai (Everaldo Pontes), que vive recluso em uma casa na Serra de Maranguape, próxima a Fortaleza. A relação de Clarisse com o pai e pautada na distância e na ausência de afeto e é marcada pela morte prematura da mãe da protagonista e principalmente pela morte do irmão de Clarisse quando ainda era criança, vítima de uma tragédia. Seu pai encontra-se doente, fraco, próximo do fim. Seu corpo carrega o peso da decomposição, sua carne é marcada por feridas, é uma carne que apodrece.

Na casa isolada onde seu pai definha lentamente, Clarisse entra em contato com os traumas do passado, com elementos formadores de sua personalidade, em rusgas marcadas no tempo que ela carrega como feridas na angústia e no desconforto existencial com que vive sua vida. Petrus sobrepõe de maneira densa na encenação o tempo passado esmagando o presente. Clarisse sonha com o irmão morto, ouve gravações de áudio em que a voz da mãe anuncia a proximidade de sua morte, ouve a voz do irmão momentos antes de morrer e escuta sua própria voz de criança, seu outro eu. É o conflito entre a Clarisse do passado sendo perseguida pelos fantasmas dos que já morreram e por ela mesma, a Clarisse menina, frágil que chama pelo irmão sem obter resposta.

Tudo na casa é carregado pelo tempo passado, por um tempo morto que insiste em se sobrepor ao presente. Os espaços por onde os personagens se deslocam é marcado pela presença física de um tempo multifacetado, por traumas e dores que se instalam nos ambientes, que esmagam os tipos; uma presença temporal densa e onipresente. Petrus Cariry constrói tudo isso por meio de uma mise-en-scéne primorosa. Todos os seus planos são minuciosamente preparados e pensados em seus detalhes. Desde os posicionamentos de câmera, a composição de quadro tanto nas cenas em ângulo aberto quanto nos fechados, a disposição dos personagens e objetos no plano, tudo potencializado por uso completo do scope, em que o diretor trabalha todo o quadro. Os planos são longos, sentimos a duração das ações e dos gestos dos personagens, reparamos em cada detalhe dos ambientes que a câmera de Petrus registra, dando força máxima aos espaços enquadrados. Os movimentos de câmera são suaves, lentos, as panorâmicas deslocam o olhar do espectador dentro da relação formal da construção dramática construída na valorização do tempo das ações. Quando surgem os travellings, esses são potencializadores de tensão, são usados sempre em que o desconforto, a tensão ou a proximidade de algo perturbador se anuncia.

‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ é um filme em que a dialética entre o imaterial e o material marca toda a dramaturgia. Ao mesmo tempo em que a encenação de Petrus Cariry constrói e potencializa a presença dos múltiplos tempos e suas relações com os espaços, temos um destaque frontal ao corpo dos personagens. Os corpos são perecíveis, frágeis e incapazes de comportar todo o peso existencial e as complexidades das subjetividades que formam a essência identitária dos indivíduos e suas dores. Mesmo os corpos mais jovens podem morrer a qualquer instante, os que sobrevivem caminham para a decomposição, para a fragilidade da carne cada vez mais exposta. Clarisse, uma mulher jovem tem no seu corpo um limitador de seus desejos, seja quando faz sexo sem sentir nenhum prazer com marido, seja quando sangra ao ser picada por um inseto ou mesmo na sequência poderosa em que se masturba com violência e desespero e o sangue brota de seu sexo num misto de dor e ódio.

O sangue e sua relação com a carne são simbólicos para Petrus Cariry compor uma alegoria desse sangue como algo que pulsa mais forte do que a carne é capaz de conter. O mesmo sangue que saiu do corpo do irmão morto de Clarisse para marcar a finitude da carne é o sangue que irrompe na impressionante sequência final em que o sexo desesperado de Clarisse com seu marido faz jorrar muito sangue para afirmar sua existência, seu desejo sendo concretizado em meio à dor, ao desgaste e a limitação do corpo. O corpo, a carne é incapaz de comportar todo o peso da existência humana e de seus desejos, bem como é incapaz de reprimir o sangue de ser expelido para fora do corpo; sangue que materializa as pulsões. Para existência ir além da carne, além dos invólucros do corpo é necessário que o sangue jorre e reafirme a vida, o desejo e as pulsões ao mesmo tempo em que não irá garantir a sobrevivência carnal ou mesmo existencial de ninguém.