Os Amantes Crucificados

‘Os Amantes Crucificados’, de Kenji Mizoguchi (1954)

Por Fernando Oriente

'Os Amantes Crucificados'Os anos 50 podem ser vistos como a época em Kenji Mizoguchi elevou seu cinema, que já era brilhante, a um patamar ainda superior. Foi nessa década que o diretor realizou seus últimos filmes (já que viria a morrer em 1956). Entre esses longas estão algumas das principais obras-prima de Mizoguchi, bem como seus trabalhos mais conhecidos mundialmente. É desse período títulos como ‘Oharu, A Vida de Uma Cortesã’ (1952) ‘Contos da lua Vaga’ (1953), ‘O Intendente Sansho’ (1954), ‘Os Amantes Crucificados’ (1954) ‘A Saga do Clã Taira’ (1955) e seu último trabalho ‘A Rua da Vergonha’ (1956). É como se todo o estilo, o discurso político-social, as questões humanas, o trabalho com a forma e sua relação com o conteúdo, bem como o primor estético de Mizoguchi ao longo de sua carreira fossem depurados, intensificados e aprofundados pelo diretor na fase final de sua carreira. Os filmes de Mizoguchi nos anos 50 são verdadeiras aulas de cinema, de encenação, de composição de planos e sequências, de evolução narrativa e de construção estética de um discurso sempre em camadas e texturas profundas.

‘Os Amantes Crucificados’ tem todos os elementos da grandiosidade do cinema de Mizoguchi e, sem dúvida, é um de seus melhores trabalhos. No filme temos a história da mulher de um rico impressor no Japão do século 12 que é obrigada a fugir com um empregado de seu marido após serem acusados de adultério e tentativa de extorsão. A genialidade de Mizoguchi está em construir todas as tensões, a evolução narrativa, as situações dramáticas e os comentários que deles retira sobre a sociedade japonesa a partir de dois inocentes que fogem sem ter cometido crime algum, mas que na fuga irão descobrir o amor e se entregar a uma paixão proibida, que os colocará em contato com a força de um sentimento que os libertará existencialmente da regras morais da sociedade ao mesmo tempo em que selará seu destino trágico, um destino do qual não tem como escapar, mas que enfrentam movidos pela força do sentimento, pelo amor pleno que os une e pela maneira de como na certeza de uma morte inevitável eles impõem à plenitude suas afirmações existenciais e a concretização e realização de seus impulsos e desejos.

Mizoguchi trabalha com a proximidade que existe entre a realização do amor verdadeiro com a morte. Como se a força da consumação de um amor profundo e sincero fosse tão desafiadora para os padrões sociais e morais que só pudesse ser consumada pela certeza da morte que condena os amantes. O amor como um gesto existencial e político, como um enfrentamento aos códigos e ao poder estabelecido. Como forma de autodeterminação do indivíduo. As pulsões do amor e da morte caminham lado a lado em um mundo que vive por esmagar o ser humano em contratos sociais, exigências de hierarquia e regras morais. Situar ‘Os Amantes Crucificados’ no passado é uma forma de Mizoguchi tecer comentários sobre o Japão de seu tempo, é como se o diretor afirmasse que as estruturas de anulação do desejo, da repressão aos sentimentos e o moralismo machista e elitista fosse fatores universais que atravessam a sociedade japonesa des seus tempos mais primórdios.

Falar de Mizoguchi é falar sobre a excelência da mise-en-scéne que caracteriza todo seu cinema. A encenação em Mizoguchi é sempre próxima da perfeição. ‘Os Amantes Crucificados’ tem em cada um de seus fotogramas esse brilhantismo de encenador tão característico do diretor. A beleza da construção dos quadros, da composição dos planos, do apuro na decupagem, da força sensorial da narrativa construída dentro de cada sequência e potencializada pela evolução dessa narrativa sempre em função da exploração máxima das potências dramáticas, das camadas significantes das ações e das múltiplas texturas e complexidades dos personagens. ‘Os Amantes Crucificados’, como todo o cinema de Mizoguchi, é trabalhado pelo diretor em cada detalhe. Suas imagens são, ao mesmo tempo, de uma beleza assombrosa e carregadas de complexidades, significados e possibilidades dramáticas e narrativas. Tudo é construído em função da força do filme como um todo, em função da história, das emoções, dos personagens e de suas ações e do discurso que o cineasta imprime em sua obra.

Vemos a câmera de Mizoguchi posicionada sempre no lugar certo, conferindo ao quadro o máximo de expressividade e capacidade de representação dramática das ações por meio dos ângulos escolhidos. Os movimentos de câmera são sutis e elegantes, reorganizam as ações, potencializam a relação física entre os personagens e os ambientes bem como se relacionam com aquilo que está no extracampo. Mizoguchi usa planos longos, os estende até o limite para que os deslocamentos, tanto da câmera quanto dos tipos e suas ações sejam sempre explorados ao máximo dentro da relação tempo-espaço. Mizoguchi condiciona as emoções extremas que trabalha à presença física dos personagens, a suas relações entre si e com os espaços em que estão inseridos. O espectador sente o peso dos gestos, dos conflitos, da fisicalidade dos corpos e objetos, dos significados e do tempo dentro das delimitações da construção e extensão dos planos com que Mizoguchi compõe suas sequências.

O uso da profundidade de campo é notável no filme, bem como em todo o trabalho de Mizoguchi, especialmente a partir da metade dos anos 40 e, mais ainda, em suas obras dos anos 50. ‘Os Amantes Crucificados’ é um perfeito exemplo para se perceber como o uso da profundidade de campo é fator de potência cênica e dramática em Mizoguchi. O crítico Robin Wood (sempre citado por Sérgio Alpendre, um dos melhores críticos e maiores conhecedores da obra de Kenji Mizoguchi) afirma que, nos filmes de Mizoguchi – e isso é notável em ‘Os Amantes Crucificados’ – o brilhante uso da profundidade de campo mantém o espectador consciente todo o tempo dos vários níveis de ação contidos nos planos. Esse uso preciso da profundidade de campo está presente em todos os ambientes das ações, tanto nos cenários fechados como quartos e interior de casas, como nos espaços abertos. Isso só ressalta como o diretor trabalha a construção de quadro, a decupagem, os posicionamentos de câmera, a disposição dos atores e objetos em cena bem como constrói seus movimentos de câmera pensando em cada detalhe do plano. Mizoguchi trabalha cada sequência como um artesão, potencializando ao máximo tudo que o espectador vê na tela.

A mulher e seu sofrimento, os abusos sofridos por ela dentro de uma sociedade moralista e misógina sempre esteve no centro da obra de Mizoguchi. Ele foi um dos pioneiros do cinema japonês a utilizar a opressão da mulher (bem como o protagonismo das personagens femininas em suas narrativas) como tema e como representação das abjeções das estruturas político-sociais e da radical hierarquia da sociedade nipônica. Depois de Mizoguchi, a partir da Nouvelle Vague, vários diretores vão retomar a questão da mulher a das violências impostas a ela como simbologia e alegoria do Japão.

O cinema de Kenji Mizoguchi utiliza muitos elementos do melodrama e da tragédia. É por meio dessa opção dramática que o diretor consegue sempre extrair o máximo de emoção e sensorialidade de suas cenas e das ações nelas contidas bem como de toda a evolução narrativa de seus longas. Mizoguchi faz isso de maneira precisa, sem cair nunca em sentimentalismos ou em pieguices, nunca extrapola os limites da dramaticidade e das intensidades das relações e ações dos personagens, ele é contido e rigoroso e, a partir desse rigor e contensão consegue que as situações dramáticas sejam exploradas de maneira densa e em múltiplas camadas. Isto é notável em ‘Os Amantes Crucificados’, em que vemos a força avassaladora dos sentimentos amplificados nos dramas e nas ações.

Os Amantes CrucificadosDuas sequências belíssimas no filme são perfeitas para entendermos esse mecanismo de encenação de Mizoguchi. A primeira é quando os amantes se declaram e se entregam à força do que sentem um pelo outro. Em meio à fuga, exaustos, em um pequeno barquinho de madeira que atravessa um rio durante uma noite de névoa, vemos os personagens se declarando, se abraçando; seus gestos, olhares, o toque e a entrega física para uma paixão incubada por anos e que vem à tona com a força de um amor gigantesco é uma das cenas mais lindas do filme. Dentro da intensidade contida em uma cena aparentemente simples é que se torna claro a força da encenação de Mizoguchi e como uma mise-en-scéne precisa pode elevar o cinema a um nível de sensorialidade desconcertante.

A outra cena é a que fecha o filme. Em poucos planos (com ângulos abertos e dois travellings em planos mais próximos), vemos o cortejo que traz o casal de amantes para serem crucificados perante a população. Amarrados, de mãos dadas, seus rostos mostram a felicidade por estarem juntos, por terem enfrentado tudo e todos e estarem prestes a morrer dentro da consumação do amor que sentem um pelo outro e que foi capaz de libertá-los. Uma libertação simbólica, que será consumada ao morrerem juntos, ao morrerem pela afirmação desse um amor. ‘Os Amantes Crucificados’ é, também, uma das mais belas histórias de amor que o cinema já teve.

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