Críticas

38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo: dicas e apostas

38 MostraPor Fernando Oriente

A Mostra de 2014 começa com uma seleção bem forte. Vários cineastas de peso têm seus novos trabalhos na programação, vencedores de quase todos os principais festivais internacionais do ano serão exibidos nos 15 dias do evento em São Paulo e algumas pérolas do cinema poderão ser conferidas em cópias restauradas. Tudo isso a Mostra traz ano após ano, então vamos aos filmes recomendados pelo Tudo Vai Bem dentro dessa 38ª edição (alguns já assistidos e outros que chegam cercados de boas credenciais). Seguem pequenas críticas de filmes vistos, links para crítica de outros longas aqui mesmo no site e breves comentários sobre as apostas e os filmes que tem tudo para se confirmarem.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierPaul Vecchiali é um dos grandes cineastas vivos. Seus filmes foram pouquíssimo assistidos no Brasil, principalmente em cinema. Seu novo longa estar na programação da 38ª Mostra é motivo de celebração. Autor de filmes belíssimos como ‘Femmes Femmes’ (1974), ‘Corps à Coeur’ (1979) e ‘Rosa la Rose, Fille Public’ (1986), Vecchiali traz nesse seu ‘Noites Brancas no Pier’ uma adaptação da curta novela ‘Noites Brancas’, de Dostoievski. O livro já rendeu duas ótimas adaptações para o cinema feitas por nomes como Luchino Visconti e Robert Bresson. Vecchiali é um diretor do mesmo nível desses dois e seu filme já chega a Mostra como um dos mais imperdíveis do evento.

‘Acima das Nuvens’, de Olivier Assayas (França, 2014)

Acima das NuvensEm seu novo longa, Assayas recupera a força que tinha perdido um pouco em ‘Depois de Maio’, seu irregular trabalho anterior. Em ‘Acima das Nuvens’ temos novamente a encenação visceral do diretor francês, sempre com uma câmera inquieta e uma decupagem ágil. A intensidade narrativa e a carga dramática do filme se relacionam o tempo todo com uma sobreposição entre o tempo presente dos personagens e suas ações e a relação que eles mantêm com o passado e o que trazem desse passado, num jogo entre tempos distintos em que o processo de envelhecer (amadurecer) e encarar as marcas do que foi vivido (e deixado de viver) implica em escolhas e enfrentamentos num presente incerto cujas certeza são postas em dúvida por sensações de incompletude e uma falsa estabilidade emocional.

Esses conflitos são colocados por Assayas dentro da relação entre as cenas que vemos na tela e o peso que o extracampo traz (sejam as memórias, as relações mal resolvidas, as imaturidades e o medo de envelhecer da personagem de Juliette Binoche; bem como o que o diretor apenas sugere, deixando a complexidades dos tipos ainda mais abertas). No filme, a atriz interpretada por Binoche aceita participar de uma peça que fez quando tinha 18 anos. Só que dessa vez, ela interpretará a personagem mais velha do texto (uma mulher de 40 e poucos anos que se destrói por amor e obsessão por uma jovem que a seduz). Aqui Assayas faz da relação da protagonista com as duas mulheres da peça uma projeção sobre suas texturas emocionais: ela é as duas ao mesmo tempo, uma se projeta na outra, e a vivência da personagem de Binoche faz com que sua relação com as duas protagonistas da peça ganhe novos contornos constantemente e se projetem sobre o momento em que vive.

Ao fazer Binoche ensaiar a peça com sua jovem assistente vivida por Kristen Stewart (muito bem no papel) a relação entre as personagens da ficção e da vida real se sobrepõe e muitos conflitos são sugeridos, mas Assayas também os mantém no fora de quadro, seja por elipses ou por cortes bruscos. Ao lerem o texto, Binoche e Stewart projetam as relações ficcionais do texto no cotidiano em que vivem, e as relações de poder que estão na peça são subvertidas em um jogo em que dominadora e dominada invertem papéis. Mas o grande mérito de Assayas é compor toda essa dramaturgia densa de uma maneira sugestiva, evitando excessos emocionais e indicando caminhos muito mais do que os explicitando. A presença sempre ótima de Binoche em cena aumenta ainda mais a força do filme. Não é o melhor Assayas, mas ‘Acima das Nuvens’ está dentro da lista de belos filmes assinados pelo diretor.

‘Anna’, de Alberto Grifi e Massimo Sarchielli (Itália, 1975)

A cópia restaurada dessa obra-prima pouco conhecida do cinema italiano é um dos programas imperdíveis da 38ª Mostra. Os diretores Alberto Grifi e Massimo Sarchielli acompanham a vida de uma jovem dependente química grávida de 16 anos que eles tiram das ruas e trazem para morar com eles. As relações entre a câmera dos cineastas, sua personagem e os espaços e ações a que ela está inserida são de uma força poucas vezes vista no cinema.

‘Falstaff – O Toque da Meia Noite’, de Orson Welles (Espanha/França, 1965)

Um dos filmes mais pessoais de Welles e considerado seu melhor trabalho por muitos, ‘Falstaff’ será exibido em cópia recém restaurada. Essa obra-prima do cineasta norte-americano, rodada na Espanha, utiliza-se de vários textos de Shakespeare para refletir sobre questões existenciais do homem e os próprios processos criativos que marcaram a carreira de Welles.

‘Os Convidados’ de Ken Jacobs (EUA, 2014)

Um longa em 3D em que o formato é o principal elemento na composição do filme. Jacobs parte de um dos trabalhos dos irmãos Lumière ‘Entrada de Um Casamento na Igreja’ (1896) para construir cenas fragmentadas em 3D que refletem elementos da construção de imagens e das relações entre planos e sobreposições de representação imagética.

Os três longas de Victor Erice

Com apenas três longas em uma carreira que teve início em 1961, com o curta ‘En La Terraza’, o cineasta catalão Victor Erice dirigiu um dos filmes seminais do cinema europeu moderno, ‘O Espírito da Colméia’ (1973). Além desse filmaço, a 38ª Mostra exibe os outros dois longas do diretor, ‘O Sul’ (1983) e ‘O Sol do Marmelo’ (1992). Três filmes poderosos que fazem parte dos obrigatórios da Mostra desse ano.

‘Um Cão Andaluz’ (1929) e ‘A Idade de Ouro’ (1930) de Luis Buñuel

Também em cópias restauradas, os dois curtas de Buñuel representam marcos do cinema que influenciaram questões estéticas e materiais do próprio fazer cinema. Filmes indispensáveis.

‘O Segredo das Águas’, de Naomi Kawase (Japão, 2014)

O Segredo das ÁguasO cinema pessoal e cheio de características particulares da diretora Naomi Kawase está representado em quase todos os seus elementos centrais em ‘O Segredo das Águas’. O longa, o melhor da diretora desde ‘Floresta dos Lamentos’ (2007), trata dos temas principais de sua obra: uma busca constante pelos aspectos metafísicos da Natureza (tanto física, quanto existencial), o deslocamento constante em direção a uma ascese espiritual do mundo, a relação orgânica entre os ciclos da vida e um tratamento muito característico que a diretora dá à questão da morte e suas implicações, sempre de forma sensível, em que a passagem da morte, por mais que possa ser dolorida, assume aspectos transcendentais que vão além da finitude dos indivíduos.

No filme, que se passa em uma ilha do Japão em que os espaços da Natureza tornam-se personagens dos dramas e contrapontos do interior dos personagens, temos dois jovens protagonistas, um garoto e uma garota de 16 anos de idade. A adolescência, o descobrir dos fluxos da vida e da finitude dos seres a que os dois estão inseridos são contrapostos com o desabrochar do erotismo e a relação que eles mantêm com a natureza, principalmente o mar. Mar e sexo são elementos constitutivos do que de mais básico a vida traz, são formas de estar no centro das pulsões da existência.

A câmera de Naomi se mexe constantemente, mas sempre em busca de um enquadramento revelador, que posiciona e reposiciona seus tipos em cena e contextualiza suas presenças dentro do espaço físico das ações. A presença constante de imagens da Natureza (o mar, árvores, florestas, morros) serve para reforçar o discurso da diretora. Acrescentam e dialogam dialeticamente em imagens silenciosas (recheadas de ruídos ou suaves melodias) com o que os personagens pensam, sentem e falam, bem como suas dúvidas diante um universo que transcende a materialidade dos ambientes em que vivem. O belo trabalho de luz serve para ampliar a significância das imagens, ressaltam elementos e pontos do quadro. Não existe no cinema de Naomi Kawase a busca pelo belo vazio, seus filmes são densos em sua simplicidade, não tem nada a ver com a inércia tão comum em filmes contemplativos e rasos que a cada ano tomam o circuito com a frouxidão ancorada no esplendor de sequências publicitárias da beleza de paisagens que nada dizem.

O domínio da natureza dos espaços de Kawase não fica restrito a paisagens naturais, a sequência em que o jovem protagonista vai a Tóquio encontrar o pai mostra como a diretora tira o máximo de densidade de espaços construídos e caóticos como as ruas de uma das maiores metrópoles do mundo. ‘O Segredo das Águas’ não é a obra-prima da diretora, título que fica com o longa ‘Shara’ (2003), mas é sem dúvida um dos mais belos filmes na seleção da Mostra desse ano.

‘Com os Punhos Cerrados’, de Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti (Brasil, 2014)

Um dos melhores filmes brasileiros do ano, em que os diretores retomam o vigor, as questões estéticas e o discurso de seus filmes anteriores, os poderosos ‘Estrada para Ythaca’ (2010) e ‘Os Monstros’ (2011). Leia crítica do Tudo Vai Bem para ‘Com os Punhos Cerrados aqui

Vencedores dos principais festivais de 2014

Do Que Vem AntesEntre os vencedores de grandes festivais internacionais desse ano que estão na programação da 38ª Mostra, o Tudo Vai Bem aposta mais em ‘Do Que Vem Antes’ (foto ao lado), novo longa do cineasta filipino Lav Diz e vencedor do Festival de Locarno 2014. Diaz é um belo cineasta, teve uma retrospectiva completa de seus filmes na Mostra do ano passado e seu novo filme chega a São Paulo após vencer filmes fortíssimos que estiveram na seleção do festival suíço desse ano. Já o ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2014, Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência’, do diretor sueco Roy Andersson, pode ser uma boa pedida, já que Andersson é um cineasta interessante, mas longe de ser brilhante. Em seu currículo ele tem dois filmes bons ‘Songs from the Second Floor’ (2000) e, principalmente, ‘Vocês, os Vivos’ (2007).

O vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2014, ‘Winter Sleep’, do turco Nuri Bilge Ceylan, pode ser uma boa escolha dentro da programação da Mostra, já que as informações que nos chegam é que o longa está mais próximo do interessante trabalho anterior do diretor ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011) do que de seus fraquíssimos filmes mais antigos: ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008).

Longas do Festival de Brasília 2014

Cinco filmes, dos seis que competiram no Festival de Brasília desse ano, serão exibidos pela 38ª Mostra. Dois deles são muito bons, ‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais e ‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós. Os outros três ‘Brasil S/A’, de Marcelo Pedroso, ‘Pingo D’Água’, de Taciano Valério e ‘Ventos de Agosto’, de Gabriel Mascaro vão de irregulares a medianos. Leia críticas do Tudo Vai Bem para todos os filmes do Festival de Brasília 2014 aqui

Mais algumas dicas e apostas

A retrospectiva com três filmes do cineasta japonês Noboru Nakamura é bem recomendada pelo amigo, crítico e professor Sérgio Alpendre, o que já vale para conferir os filmes. Outro crítico e professor com gosto de primeira, o amigo Filipe Furtado indica o filme ‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do diretor americano Thom Andersen, um longa que faz uma viagem pela forma como a cidade foi representada durante a história do cinema.

Entre outras apostas do Tudo Vai Bem estão ‘As Noites Brancas do Carteiro’, o novo trabalho do cineasta russo Andrei Konchalovskiy (diretor do ótimo ‘Expresso para o Inferno’ de 1985), e ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, o mais recente filme do diretor pernambucano Daniel Aragão, que tem a atriz Bianca Joy Porte em uma atuação poderosa.

 

Primeiras impressões sobre ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa, e um pouco do Festival do Rio 2014

Cavalo DinheiroPor Fernando Oriente

O novo longa de Pedro Costa, ‘Cavalo Dinheiro’, chega às telas após oito anos em que o diretor trabalha no filme. É a volta de Costa ao monumento cinematográfico que iniciou em ‘No Quarto da Vanda’ (2000) e teve sequência com ‘Juventude em Marcha’ (2006). A espera e a expectativa provocadas pelos oito anos em que o cineasta trabalhou nesse ‘Cavalo Dinheiro’ se confirmam da maneira mais positiva. O filme é uma das grandes realizações da década e amplia ainda mais a obra de Pedro Costa como cineasta fundamental na cinematografia contemporânea mundial.

Tudo o que existe de bom (de ótimo) em seus filmes anteriores voltam ainda mais fortes em ‘Cavalo Dinheiro’. Uma evolução dramática mais densa, mais soturna e com uma carga nos conflitos mais intensa dos que nos filmes anteriores, o que não faz de ‘Cavalo Dinheiro’ superior a ‘No Quarto da Vanda’ ou ‘Juventude em Marcha’, apenas uma evolução natural dentro da obra de um cineasta rigoroso na forma como dá continuidade a um projeto tão ambicioso e pessoal como o formado por esses três filmes em conjunto.

Costa parte da matéria que construiu seus longas precedentes: a relação entre o meio em que seus tipos estão inseridos com o peso histórico das vivências lá estabelecidas, a questão da miséria e exclusão social dos pobres, negros e imigrantes, o sofrimento sem voz de inúmeros trabalhadores que vieram a Portugal para serem mão de obra barata e nesse processo colheram apenas dores e traumas. O quanto essa gente não teve sequer possibilidades de participarem dos processos históricos pelo qual Portugal passou desde a Revolução dos Cravos de 1974. A implicação existencial que a vida em favelas e conjuntos habitacionais tem com o cotidiano de exclusão desses tipos.

A extrema complexidade e sofisticação da mise-en-scène de Pedro Costa, sentidas na construção dos quadros, na firmeza de composição dos planos em que enquadramentos, distâncias de câmera bem como a relação entre a disposição em cena dos tipos e objetos e a forma como isso se relaciona com o trabalho assombroso da luz na fotografia e com as opções pelos fundos de quadro implicam e ampliam a força dos discursos, seja o do cineasta ou os que ele dá voz pelas falas dos personagens. Ventura, figura central de ‘Juventude em Marcha’ tem uma entrega ainda mais intensa à dramaturgia do filme, tanto física, quanto emocional e simbólica.

O filme todo é Ventura em uma espécie de purgatório, em que se relaciona com sobreposições constantes de seu passado, seja por meio de lembranças, seja por encontros físicos com os fantasmas desse seu passado calcado no sofrimento. O cinema de Pedro Costa tem terreno fértil dentro de composições políticas de leitura, que estão presentes em tudo o que vemos na tela. Cada um de seus planos é composto como pinturas em que a relação geométrica do quadro, as variações dos focos de luz, as cores e os posicionamentos em cena não são meros exercícios formais, e sim elementos propulsores da dramaturgia e estruturas muito bem pensadas para amplificar os discursos e movimentos internos do filme.

‘Cavalo Dinheiro’ é recheado de sequências impressionantes, como os encontros entre Ventura e a viúva de um antigo colega, os passeios do personagem pelas ruínas de fábricas em que trabalhou, a reconstituição alegórica de uma violenta briga que ele teve com outro imigrante cabo-verdiano nos anos 70 (e os encontros entre os dois pelos corredores e salas do hospital que representa o limbo a que foram renegados), seus deslocamentos por passagens escuras em meio a escombros de um subterrâneo fantasmagórico que posicionam Ventura nas entranhas de um mundo para o qual ele foi impelido e a monstruosa sequência do elevador (que já havia sido vista como um segmento do filme ‘Centro Histórico’ e que o diretor remontou para a parte final de ‘Cavalo Dinheiro’), além de um plano final que dificilmente será apagado da memória de qualquer espectador que tiver o prazer de assistir a essa nova obra-prima de Pedro Costa.

Essas foram apenas algumas primeiras impressões sobre ‘Cavalo Dinheiro’, um filme que pretendo voltar em uma crítica mais extensa após uma mais que necessária revisão.

Festival do Rio 2014

Algo raro em qualquer festival de grande porte, como o Fest Rio e a Mostra internacional de Cinema em São Paulo, aconteceu comigo nesses dias em que passei no Rio de Janeiro vendo filmes. Foram oito longas assistidos, sendo sete muito bons e apenas um fraco, ‘Sangue Azul’, de Lírio Ferreira. Muito disso se deve ao fato de ter selecionado, além do filme de Pedro Costa, longas das retrospectivas de Michael Cimino e do cinema mexicano (que marcou presença na edição desse ano com belos melodramas dos anos 30 e 40), além de ter assistido a ‘O Cheiro da Gente’, novo trabalho de Larry Clark (diretor que gosto bastante apesar da irregularidade de seus filmes) e da excelente surpresa que tive ao ver o ótimo ‘Carvão Negro’, do diretor chinês Diao Yinan.

Michael Cimino

O Ano do DragãoCimino é um dos grandes realizadores do cinema e pude ver cópias belíssimas dos dois filmes dele que mais gosto: ‘O Portal do Paraíso’ (1980) e ‘O Ano do Dragão’ (1985). Cimino é um diretor que constrói seus filmes a partir das entranhas de seus personagens e dos dramas que eles vivem. Toda sua encenação é de uma passionalidade impressionante e faz da exploração das muitas camadas de seus tipos e dos conflitos gerados por elas a matéria de um cinema político frontal e epidérmico.

Em ‘O Ano do Dragão’, temos um dos mais fiéis retratos da falência ética e ideológica dos anos Ronald Reagan na década de 80 nos EUA. Tanto protagonista como antagonista (o policial de Mickey Rourke e o mafioso chinês que ele persegue de maneira paranóica) são dois lados da mesma moeda. Agem por impulso, individualismo e de maneira extremista. A violência é atávica, é forma de autodeterminação. Nenhum dos dois tem o menor respeito por códigos de conduta e não demonstram a menor consideração por nada e ninguém. Seguem apenas seus objetivos, passam por cima de tudo em um filme em que a política direitista e o racismo da era Reagan estão incrustados no DNA dos personagens, da dramaturgia e da própria encenação. Tudo explode na cara do espectador, Cimino põe tudo na superfície da tela, não tem meio termo e nem travas. É uma descida ao inferno dos personagens, feita de perdas, sangue e impulsos incapazes de serem controlados. Cada fotograma do filme é cinema político, é força primal do cinema puro.

Já em ‘Portal do Paraíso’, temos os mesmos elementos constitutivos dos personagens e dos dramas, mas aqui Cimino ainda elabora um discurso sobre a formação identitária dos Estados Unidos, em que a violência de classes e a imposição do poder econômico moldam uma nação que se encontra em pleno momento de expansão para se tornar a maior potência político-econômica do mundo (o filme se passa na última década do século 19). Além disso, Michael Cimino realiza um filme com fortes elementos do cinema de Luchino Visconti, tanto na composição dos planos como na relação dos conflitos de classe e na presença de valores da formação intelectual aristocrática do protagonista, que pretende se desprender de seu meio para participar de um processo de formação de uma nação que passa a ser construída por imigrantes, pobres e uma insipiente pequena burguesia.

Carvão Negro

O filme chinês foi uma grata surpresa dentro do Festival do Rio 2014. Embora tenha ganhado o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, o histórico recente de premiações desse festival é motivo para suspeitas. Mas o longa de Diao Yinan é de uma força inquestionável e conta como uma encenação precisa, planos muito bem compostos e sequências vigorosas, além de uma evolução dramática bem conduzida. Um dos bons filmes lançados nesse ano.

 

‘Casa de Lava’, de Pedro Costa, 1994

Casa de LavaPor Fernando Oriente

É a partir de ‘Casa de Lava’, em 1994, que Pedro Costa começa a construir uma das obras (seu cinema, proposta estética, materialidade e forma) mais importantes do cinema contemporâneo mundial. Sem desconsiderar o belíssimo ‘O Sangue’ (1989), é com “Casa de Lava” que Costa passa a imprimir as singularidades de suas imagens, a composição rigorosa dos planos, a variação da luminosidade, a cadência da montagem que permite a sucessão sensorial entre planos de força autônoma (mas que somados geram sentido de completude), a construção de personagens com camadas profundas, as relações complexas entre tipos e ambientes e a acepção de um mundo em que pessoas derivam em busca de sentido para si mesmas e em tentativas de decifrar o outro, a história e o espaço em que estão inseridas.

Como pano de fundo estão presentes questões classes, conflitos étnicos, a opressão ao indivíduo, o estado de esfacelamento político da sociedade e as cicatrizes de civilizações construídas na dissonância entre os seres, entre colonizadores e colonizados. Pedro Costa põe tudo isso em seus filmes e muito mais, já que seu cinema é incapaz de ser analisado e apreendido de forma simplista. É um realizador que se coloca sempre em evolução de forma e conteúdo. São filmes que o espectador sente em sua materialidade e fora de zonas de conforto (que não permitem explicações rasas) e que reconduzem a contemplação do público, forçando a uma visão mais ampla do esplendor que se desprende da tela.

‘Casa de Lava’ dialoga diretamente com ‘Juventude em Marcha’ (2006) e ambos se dirigem e se refletem em ‘No Quarto da Vanda’ (2000), além de formarem um sólido conjunto com o universo de “Ossos” (1997). Embora seja em ‘Casa de Lava’ que exista o movimento contrário em relação aos outros filmes: é a personagem européia que sai de seu continente e vai para África, para as terras colonizadas. Aqui a branca é a imigrante, a deslocada de seu meio natural. Essa simbiose entre seus filmes mostra a densidade e o jogo de texturas que compõem sua filmografia, um cinema aberto ao mundo, em que se chega ao todo a partir do mínimo.

‘Casa de Lava’ acompanha a viagem da enfermeira Mariana (Inês Medeiros) à antiga colônia portuguesa de Cabo Verde. Mariana leva Leão, um operário cabo-verdiano que, após sofrer um acidente na construção em que trabalha em Lisboa, ganha direito de voltar, mesmo em aparente estado de coma, para sua terra natal. A simplicidade dos motes dramáticos se abre para as possibilidades de Pedro Costa construir seu sofisticado discurso. Esse discurso está na construção de cenas que mostram a inércia melancólica dos moradores da ilha, a presença da morte, o medo, travestido de indiferença, em reconhecer, receber e acolher Leão, bem como a incapacidade de Mariana em se comunicar e se entender com aquelas pessoas.

Existe de maneira intensa na figura da enfermeira a representação do deslocamento do europeu em meio a um mundo que foge de sua compreensão. Ela se vê dentro de uma comunidade (ou o que sobrou dela) em que os tipos locais interagem entre si entre a sensação de morte (simbólica e física) que paralisa o tempo e o efeito de tudo o que o tempo levou daquele lugar, sejam pessoas, esperanças ou sentimentos. A viagem de Mariana pode ser vista como sua fuga de Lisboa, de um lugar que não faz mais sentido para ela. É esse sentido que ela busca em Cabo Verde, é a ela mesma, em sua essência, que ela procura em sua jornada. Ao tentar ajudar as pessoas, ela procura reconstruir a imagem dela mesma. Ao não entender aquele universo, ao se perder naquele espaço que ela vislumbra seu próprio papel no mundo, sua capacidade ou incapacidade de ser.

Pedro Costa capta as possibilidades infinitas do espaço onde se desenrolam as ações. Os enquadramentos, os ângulos da câmera, os movimentos internos dos planos e a luz que varia de forma a traduzir a diegese das situações fazem da composição de quadro o real sentido de tudo o que o cineasta quer comentar, questionar e propor sobre o material que constitui seu filme. Esse espaço primorosamente aberto pelos quadros compreende uma virulenta noção de tempo. Simultaneamente em que o filme observa de diversas maneiras a relação espaço temporal, ele faz com se sinta o tempo, seus efeitos, o que já passou e o que está por vir, tudo compreendido dentro do tempo presente que Costa eleva a infinitas possibilidades dentro de cada plano.

Nunca é demais ressaltar a sofisticação na construção de planos nos filmes de Pedro Costa. Embora a câmera se mexa mais em ‘Casa de Lava’, com travellings variados e algumas panorâmicas marcantes, o posicionamento da câmera, a distância entre a lente os personagens, objetos e cenários segue o mesmo padrão rigoroso que podemos ver em ‘Ossos’, ‘No Quarto da Vanda’ ou ‘Juventude em Marcha’, embora o rigor da geometria do quadro seja mais solto em ‘Casa de Lava’.

A principal diferença é que em ‘No Quarto da Vanda’ e ‘Juventude em Marcha’, os planos estáticos e a relação entre o dentro e fora de quadro, bem como o reposicionamento de eixos nos enquadramentos, tenham um destaque maior e sirvam para acentuar o que está sendo proposto a cada cena. A ausência da maior incidência desses recursos em ‘Casa de Lava’ não torna o filme menor esteticamente em oposição aos outros. Essa sutil mudança formal acompanha a evolução do discurso de Costa de um filme para outro, a mudança na cadência e na forma que o cineasta usa para construir o espaço-tempo de sua dramaturgia, a evolução da sua coerência discursiva.

O cinema de Pedro Costa busca sempre as pessoas e os espaços, e dessa busca compõe a relação política entre eles. O rigor construtivo do cineasta português une o tecido humano ao existir político que todos somos parte. Não existe cinema sem política para Costa. O tempo presente de seus filmes carrega séculos de relações de dominação, de chagas da colonização, de conflitos raciais e da eterna luta de classes, amplia as consequências da pobreza e da miséria, sem abandonar o fator de que se dirigir ao outro, fazer parte de uma comunidade é um ato de resistência e uma maneira de ato-afirmação também política.

‘Casa de Lava’ é o primeiro fragmento de uma obra ainda em construção. É o início da cinematografia colossal que Pedro Costa realiza e que faz com que aguardemos ansiosamente por seus novos filmes, pela continuidade desse cinema com que o Costa eleva as expectativas em suas possibilidades. O cinema com Pedro Costa mostra que sempre pode ir além do que já estamos acostumados. Enorme Pedro Costa! Enorme!

 

Cobertura do 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Por Fernando Oriente

Sobre o último dia da Mostra Competitiva (22/09)

Curtas

‘Estátua!’, de Gabriela Amaral Almeida

EstátuaA diretora Gabriela Almeida faz de seu curta ‘Estátua!’ um belo trabalho de construção de quadro. Os planos são todos funcionais e a composição de cena impressiona pela forma como a cineasta utiliza os espaços do apartamento em o filme se desenvolve como elemento dramático. A câmera está sempre posicionada para criar uma relação geométrica com o ambiente que potencializa as angústias da protagonista, a babá Isabel (Maeve Jinkings, na melhor interpretação do Festival desse ano, entre todos os curtas e longas).

Em ‘Estátua!’ estamos dentro dos códigos do cinema de gênero, no caso o horror psicológico, que o filme se entrega de maneira sincera. A decupagem rigorosa, a relação entre os personagens e os objetos de cena, bem como as possibilidades da profundidade de campo e os ângulos de visão que o curta oferece ao espectador, sempre priorizando a relação entre a geometria do quadro com as intensidades dramáticas, fazem do filme de Gabriela um conciso e sólido curta dentro da relação matéria/forma, respeitando as estruturas e a linguagem do dispositivo narrativo em curta-metragem.

Trata-se de um filme que respeita o formato e dele tira sua força. Saber trabalhar dentro das limitações (e possibilidades) da curta duração de um filme é sempre um desafio para o realizador, e Gabriela mostra-se totalmente à vontade na maneira como domina o material de seu discurso fílmico.

Longa

‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais

Ela Volta na QuintaNa última noite da Mostra Competitiva, o Festival de Brasília teve seu melhor longa exibido: ‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais. O primeiro longa-metragem de Novais confirma o talento que o diretor havia mostra em seus curtas ‘Fantasmas’, Domingo’ e ‘Pouco Mais de Um Mês’, e faz com que seu filme supere até o ótimo ‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós, dentro da competição do festival de 2014.

‘Ela Volta na Quinta’ é um filme sobre um tempo presente que carrega os desgastes do passado, a erosão do que foi vivido, e projeta medos e incertezas sobre o futuro. Desenvolvido com encenação vigorosa, o longa caminha para um discurso sobre a perda, os processos que levam às perdas, e chega a um desfecho em que os personagens se encontram diante do muito de vida que resta, ao mesmo tempo em que são postos frente os dilemas de como levar essa vida em meio às dores e as cicatrizes das perdas. Essa complexa estrutura é solidificada na construção dramática de André Novais, que tem na sensibilidade e na frontalidade seus fios condutores.

No filme, Novais cria uma ficção sobre um casal que enfrenta crise no relacionamento, desgastado após 38 anos de vida em comum e com a doença da mãe e uma relação extraconjugal do pai como elementos agravantes. Isso se reflete na forma com a situação afeta toda a família, os dois filhos do casal e suas namoradas.  Novais utiliza membros de sua própria família (seu pai, sua mãe, irmão, cunhada e namorada, além dele mesmo) como atores de uma história inventada, o que cria um dispositivo que permite uma maior integração entre o elenco e seu envolvimento com os dramas encenados. Não é mero capricho de Novais, e sim uma escolha que regula o trabalho no set e aprofunda a encenação exatamente por utilizar pessoas que já carregam uma história de vida e intensas relações em comum. Isso faz com que diretor e elenco projetem na ficção um alto teor de intertextualidade e intimidade que já trazem incrustradas em suas personalidades, e assim legitimam a ternura, os conflitos e os afetos encenados por meio da própria afetuosidade que já existe entre eles mesmos.

‘Ela Volta na Quinta’ é construído em planos longos, câmera estática, algumas poucas panorâmicas e enquadramentos que respeitam o tempo das ações e da vivência dramática dentro do quadro. André Novais compõe uma mise-en-scène que prioriza a densidade por meio de uma aproximação total entre o diretor, seus personagens e o meio em que estão inseridos. As relações entre eles, com todo o peso que o passado e a vida em comum lhes deixaram, é matéria viva da evolução narrativa, conduzida sempre para retirar o máximo se significação dos diálogos, gestos e muitos silêncios que existem entre os personagens.

O cinema de André Novais, principalmente nesse ‘Ela Volta na Quinta’, tem uma aproximação com seus personagens e seus espaços tão orgânica, que seus filmes atingem momentos mágicos, no sentido em que a simplicidade singela e frontal daquela realidade recriada torna-se tão cativante e honesta que o espectador sente-se em uma espécie de contato com o sublime do caráter mundano da existência. É um cinema que é feito de dentro de sua matéria, da cumplicidade total entre o realizador, seus tipos e a forma com que se projetam no centro de um universo onde a sinceridade e a entrega mútua se unem para formar um tecido dramático original e complexo.

Voltando mais uma vez ao momento do atual cinema brasileiro e seus dilemas, o filme de André Novais é uma prova viva de como temas saturados como o afeto e a aproximação ao outro podem ser trabalhados de maneira intensa, sincera e funcional dentro de um filme. O coletivo mineiro Filmes de Plástico, do qual Novais faz parte ao lado de outros jovens realizadores de muito talento como Maurílio Martins (que faz o som direto em ‘Ela Volta na Quinta’), Gabriel Martins (fotógrafo e montador do filme), Leo Amaral, produtor Thiago Macêdo Correia  e a diretora de arte Tati Boaventura, entre outros, é responsável por vários filmes que representam o melhor da produção atual brasileira. E, se pensarmos que estão chegando agora a produção de longas metragens após anos realizando belíssimos curtas, são aposta certa para serem um farol do bom cinema feito no Brasil em um futuro já bem próximo.

Sobre o quinto dia da Mostra Competitiva (21/09)

Longa

‘Ventos de Agosto’, de Gabriel Mascaro

Ventos de AgostoEssa edição do Festival de Brasília está sendo uma ótima oportunidade para reflexões mais extensas sobre o atual momento do cinema brasileiro. É, sem dúvida, um momento de impasse, um ponto de crise de um caminho que foi construído nos últimos anos, com vários acertos e diversos erros (que ficaram por muito tempo eclipsados pela euforia provocada por um número razoável de bons filmes). Sobre isso eu escrevi na crítica do filme ‘Pingo D’Água’, aqui mesmo na cobertura do Festival desse ano (a crítica segue abaixo, dentro do terceiro dia da Mostra Competitiva).

A exibição de ‘Ventos de Agosto’ escancara de vez os problemas e impasses do nosso cinema. O filme de Gabriel Mascaro parece existir apenas como exaltação superficial do belo. Em nenhum momento o longa cria tensões internas, conflitos não são explorados, mal chegam a ser propostos. A distância estetizante que as imagens de Mascaro mantém do ambiente e do mundo que recria é imensa, o filme se nega a entrar nesse espaço, de onde tenta apenas arrancar elementos etéreos para a construção do belo. Mas é uma beleza engessada, que evapora em meio a um punhado de imagens plastificadas dentro da inércia desse tipo de cinema. ‘Ventos de Agosto’, se for lançado em Blu-Ray, será um ótimo presente de Natal para pessoas de bom gosto que tenham uma TV Full HD de 60 polegadas. Mas essa pessoa tem que ser apreciadora do cinema de arte.

Ao contrário de ‘Pingo D’Água’, em que a fetichização do cinema é ponto para uma proposta de pacto com o espectador, que pode ou não aceitar essa proposta, ‘Ventos de Agosto’ é o extremo do cinema fetiche, em que tudo vira objeto para expropriações estéticas que não vão a lugar algum. Querem provocar o gozo visual do espectador. Tudo vira espetáculo. Se fetichiza os corpos, a luz, os espaços, os sons, a natureza. Nada existe em função de tensões ou propostas dramáticas. Em ‘Ventos de Agosto’ temos apenas a obsessão pela beleza.

Mascaro se perde em sua primeira ficção. Ele tenta buscar o real através do registro naturalista de seus personagens e ambientes, com os não atores, as cenas que escrutinam os espaços, no tempo longo dos planos que detalham ações simples e banais. Mas ao mesmo tempo em que o diretor pretende ser fiel a esse material, trai suas intenções ao abusar de ângulos de câmera e efeitos de luz que exaltam o quanto a natureza é linda, o quanto os corpos são sensuais, o quanto o mar é pulsante e tudo mais de espetacular que os olhos de um turista veriam em meio a locações tão belas.

Os truques ingênuos para se tentar esses objetivos ficam escancarados no abuso de rebatedores que ampliam focos luminosos artificialistas no quadro, nos pontos de luz tênue em meio à penumbra e às sombras nas cenas escuras e que chegam ao limite em cenas de tempestade em que o pesquisador é filmado registrando seus sons por uma câmera com a lente encharcada em que o excesso e o movimento da água turvam as imagens e geram um efeito embaçado na fotografia. Todos esses recursos não se integram organicamente com o discurso do filme, se perdem na superficialidade e na ausência de tecido dramático consistente.

Para tentar amarrar tamanha explosão de beleza natural, Mascaro cria tensões que não funcionam, como as modulações de humor do casal de protagonistas, o surgimento na comunidade de pescadores de um pesquisador de sons que registra os ventos e as tempestades do local, o cadáver que o jovem encontra no mar e o quanto ele se torna obsessivo em relação a esse corpo e a cenas cômicas da vida cotidiana no meio do esplendor da natureza e da simplicidade da gente humilde. Além disso, o filme tenta compor relações simbólicas entre a vida e a morte, o tempo da natureza e o quanto ele interfere no ritmo da existência efêmera dos homens e mais um punhado de tentativas poéticas.

Gabriel Mascaro é um diretor com trabalhos interessantes e irregulares, como ‘Avenida Brasília Formosa’ e ‘Doméstica’. Essa sua passagem do documental para o ficcional não foi feliz, mas tanto ele quanto inúmeros realizadores no Brasil estão nesse momento de impasse. Mascaro tem talento e repertório para encontrar soluções muito melhores do que esse equivocado ‘Ventos de Agosto’.

Sobre o quarto dia da Mostra Competitiva (20/09)

Longa

‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós

Branco Sai Preto FicaÉ interessante que o novo longa de Adirley Queirós tenha sido exibido no Festival no dia seguinte a ‘Pingo D’Água’, de Taciano Valério. ‘Branco Sai. Preto Fica’ é um filme que segue no caminho oposto em relação ao longa de Taciano. Enquanto ‘Pingo D´Água’ é um grande resumo de quase todos os mecanismos, fórmulas, acertos e erros do cinema contemporâneo no Brasil, o filme de Adirley é um exemplo de como o cinema independente brasileiro pode encontrar caminhos para ser criativo, esteticamente forte e se adequar a questões do momento de forma orgânica e engenhosa, sem abrir mão da autenticidade e da independência formal e de conteúdo.

‘Branco Sai. Preto Fica’ consolida Adirley Queirós como um dos mais talentosos e criativos cineastas surgidos no país nos últimos anos. É um filme extremamente original em toda sua matéria e surge como um trabalho que dialoga de maneira espontânea com os curtas do diretor bem como com seu ótimo filme anterior, ‘A Cidade É Uma Só?’ (2011).

A tendência de fundir documentário e ficção, de abolir as fronteiras entre esses dois tipos de registro virou uma tendência e um cacoete dos novos realizadores no país. Muitos usam como fórmula, mas Adirley faz esse processo com uma naturalidade assombrosa. Seu talento para o cinema é instintivo, seus filmes são de uma sinceridade desconcertante em que o diretor espontaneamente coloca a si mesmo e a sua história de vida como elementos dramáticos de tudo o que se vê na tela. Adirley Queirós faz filmes em que o ato de filmar, decupar, criar, cortar e unir sequências e planos parece tarefa fácil devido à fluência que atinge no desenvolvimento dramático e na evolução de seus trabalhos.

‘Branco Sai. Preto Fica’ usa a história real de conhecidos do diretor (dois deles foram vítimas de uma tragédia provocada pela brutalidade e o preconceito da policia do Distrito Federal nos anos 80) e recria esses fatos e outros elementos do cotidiano da vida de Adirley a partir de depoimentos diretos e por meio de uma ficcionalização do real que vai desde sequenciais naturalistas que registram de forma frontal um espaço e um estar no mundo até cenas e sub-tramas de ficção científica, sempre usando e abusando do dispositivo que for necessário para dar vida ao que se deseja lembrar, contar e recriar. Tudo no filme existe em função da existência do próprio fazer cinema, narrar, reviver, tornar memória em imagens e transformar reflexões sobre o passado e o estado atual das coisas em filme, em discurso.

A integração entre os personagens, a câmera e a evolução da dramaturgia é notável em ‘Branco Sai, Perto Fica’.  Adirley constrói planos cheios de vida e significado, registra tudo priorizando o pertencimento de seus personagens aquele espaço em que habitam. As relações entre os tipos é natural, o carinho, a amizade e as características comuns que os aproximam são de uma autenticidade rara no cinema. O gesto de afeto, tão exaurido no cinema contemporâneo do país, são gestos naturais, consequências óbvias da própria existência dos personagens e da relação que constroem entre si e com a câmera de Adirley.

O uso da música é fator fundamental no filme, as canções são uma manifestação da identidade cultural, uma afirmação dos gostos e escolhas que constroem a própria personalidade e a maneira de expressão dos personagens. A música é um prazer, um escape, uma forma de comunicação e compartilhamento.

A Ceilândia, lugar de Adirley, é personagem do filme. Ela surge registrada em planos abertos, uma característica comum nos trabalhos do diretor, bem como nos espaços fechados, na estetização criativa de alguns ambientes (elemento novo no cinema do diretor), nos códigos que pautam as trocas e os conflitos entre os personagens e na maneira como o se relacionar com uma identidade urbana periférica torna-se uma caraterística existencial.  É um cinema do pertencimento. Pertencer a um espaço, a uma história pessoal e de comunidade. A Ceilândia está em todos e em tudo o que vemos na tela. Ela pulsa na razão de ser do filme.

Essa identidade da Ceilândia representa o universo subjetivo dos personagens bem como é um recorte do imenso universo das periferias na cultura brasileira. Espaço de sobrevivência, em que seus moradores são aviltados e abandonados pelos poderes constituídos, mas desenvolvem maneiras de interação e autoafirmação dentro do tecido social do país.

Uma das melhores situações criadas por Adirley em ‘Branco Sai. Preto Fica’ é uma ação de resistência, que serve como uma resposta violenta a um sistema opressor, em que os personagens constroem uma bomba para ser jogada sobre Brasília (mais uma vez um espaço proibido para quem é da Ceilândia e de onde saem as forças que agridem seus moradores). Essa bomba é constituída por sons e ruídos das ruas da Ceilândia e por músicas de vários gêneros que representam as expressões culturais distintas que são produzidas na cidade satélite. Explodir a bomba no coração das forças opressoras é uma das claras formas de ação política dos personagens e faz parte do discurso potente de interação e autoafirmação de identidade de Adirley Queirós.

O espaço como lugar de intervenção, como ambiente político e de resistência. O cinema de Adirley é um cinema de ação, não de lamentos, imobilismo e meros registros de um mal estar no mundo ou de problemas sociais. O cineasta acredita no movimento natural das coisas e das pessoas, movimento esse que ele incorpora as modulações internas de seu filme.

No texto que escrevi ontem sobre ‘Pingo D’Água’, menciono alguns diretores que fizeram filmes muito bons e apontam caminhos para o cinema brasileiro atua (‘Com os Punhos Cerrados’, ‘Batguano’, ‘A Vizinhança do Tigres’). Não citei Adirley Queirós exatamente para esperar seu filme ser exibido aqui em Brasília para poder escrever sobre seu trabalho. Adirley é sem dúvida um autor que realiza ótimos filmes e aponta um caminho muito promissor para a cinematografia brasileira contemporânea. Seu cinema já é uma realidade entre o que de melhor se vê nas telas nos últimos anos.

Sobre o terceiro dia da Mostra Competitiva (19/09)

Longa

Pingo D’Água’, de Taciano Valério

Pingo D'ÁguaO longa de Taciano Valério surge como um ponto de reflexão para o cinema brasileiro em um momento muito oportuno. ‘Pingo D’Água’ tem todos os elementos, características e mecanismos, além de operar dentro do tão comentado dispositivo, de um tipo de cinema que é feito no país há mais ou menos uma década. Esse cinema, com seus curtas e longas, está sendo analisado com mais profundidade cada vez mais. Nele existem pontos em comum, a presença constante de temas que afloram na estética e na ética desse dito “novíssimo cinema brasileiro”. São eles: o afeto, o deslocamento, o mal estar, a improvisação e a liberdade formal em relação ao roteiro.

Nesse período, esse tipo de cinema produziu ótimos filmes, revelou inúmeros talentos e apontou formas de se fazer e distribuir filmes independentes no Brasil. Aqui não vou citar nomes exatamente por medo de esquecer alguém importante. Ao mesmo tempo foram feitos inúmeros filmes fracos, ou simplesmente irrelevantes. Esse processo levou a criação de fórmulas e métodos que acabaram por garantir a existência dessas obras em circuitos de festivais e em eventuais estreias em algumas capitais. Por outro lado, essa hipervalorizarão de um estilo acabou por engessar realizadores, que ficam escravos dessas fórmulas. Eis que a produção cinematográfica enfrenta hoje uma saturação desses produtos e se encontra em um momento de autorreflexão para se descobrir onde levar e como injetar mais vida, criatividade e talento no cinema brasileiro.

É aqui que entra ‘Pingo D’Água’. Não como um novo caminho, mas como uma síntese de quase tudo o que esse estilo independente contemporâneo representa e construiu até hoje. O longa de Taciano tem em destaque a constatação do mal estar na sociedade, personagens em deslocamento ou em uma paralisia que exige esse deslocamento como solução, a eclosão do afeto em momentos de crise existencial, a melancolia e crise de identidade do homem em relação ao seu estar no mundo e como a arte pode se relacionar com esses estados de espírito.

Um fator torna ‘Pingo D’água’ uma experiência estética subjetiva que pode causar repulsa imediata ou adesão sensorial ao longa: a escolha de Taciano por construir todo seu filme dentro dos preceitos do fetichismo cinematográfico. O longa existe no fetiche de filmar e ser filmado e na fetichização das imagens e da matéria fílmica projetadas no espectador, esse também um consumidor fetichista.

Taciano já parte desde o início dentro dos códigos da estetização de tudo em seu filme. Da escolha por filmar em preto e branco (as relações de poetização da imagem que a modulação da luz traz na fotografia em preto e branco), a narrativa improvisada e construída dentro do set em um claro movimento de recusa ao roteiro formal, a fragmentação da montagem e do desenvolvimento dramático, o metacinema com os filmes dentro dos filmes, a câmera inserida dentro dos planos como um olhar-personagem (o que traz um excesso de movimentos de câmera e imagens trêmulas) e as constantes citações poéticas, literárias e filosóficas.

Essas escolhas do diretor estão presentes em seus longas anteriores, ‘Onde Borges Tudo Vê’ e ‘Ferrolho’, mas em ‘Pingo D’Água’ são sentidas de maneira mais intensa pela adesão total de Taciano ao cinema fetiche e a estilização brutal de tudo. As intenções do diretor são claras, o filme é aquilo que ele queria que fosse, é honesto em sua radicalidade e em seu amálgama de inúmeros elementos do cinema contemporâneo brasileiro. É um filme que pode ser visto como sintoma, bem como resumo de um esgotamento estético, mas que não deixa o espectador impassível e pode ser uma experiência prazerosa e de beleza pontual.

O caráter de discurso social do filme já fica de fora logo de cara, pois as escolhas pelo radicalismo e estilização criam uma barreira que diluem a recepção do discurso e excluem o espectador de um processo mais orgânico com as intenções desse discurso. ‘Pingo D’Água’ fica centrado na fúria estética e na explicitação dos mecanismos do fazer cinema como potencializadores do fetiche de filmar e consumir imagens e sons.

Ao contrário de Pedro Diógenes, Luiz e Ricardo Pretti, que com seu mais recente longa dentro do coletivo Alumbramento, ‘Com os Punhos Cerrados’ e Tavinho Teixeira, com seu longa ‘Batguano’ (entre outros exemplos recentes que ainda incluem o poderoso ‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa), encontram caminhos criativos e saídas que apontam um rumo para o cinema contemporâneo no Brasil ( já que os filmes citados acima são ótimos), Taciano Valério faz um resumo, uma colagem, com acertos e erros, de tudo de bom e de ruim que esse cinema fez até hoje e o levou a um estado de exaustão.

Uma cena em ‘Pingo D’Água’ é extremamente emblemática. Quase um resumo em uma única sequência do que tem sido o cinema contemporâneo brasileiro. Nela Jean Claude Bernardet fica nu, entra dentro de uma mala e chama um outro personagem que do fecha todinho dentro lá dentro. Com apenas seu braço e sua mão para fora, o personagem de Bernardet afaga as mãos e o rosto de seu companheiro. Nessa pequena cena temos cristalizados a necessidade de deslocamento (o homem dentro da mala, pronto para sair) e o afeto do gesto de carinho que surge em um momento de tensão existencial. Deslocamento + afeto. Mais didático do sintoma atual de nosso cinema, impossível.

Sobre o segundo dia da Mostra Competitiva (18/09)

Curtas

‘Sem Coração’, de Nara Normande de Tião (crítica escrita na época do Festival de Curtas de SP de 2014 e ampliada nesse texto)

Sem CoraçãoO curta de Nara Normande e Tião tem muito de sua inegável força na capacidade dos diretores de desenvolverem uma narrativa simples (o amor que surge entre dois adolescentes de universos distintos durante uma temporada de férias na praia) de maneira sensível e sofisticada, consolidada a partir de uma decupagem precisa que tira o máximo de significação de cada um dos planos e de uma montagem preciosa por meio de elipses muito bem definidas. Um filme em que as sensações são o centro da encenação. Um curta impregnado de sensibilidade e que exalta as potências básicas e primais da força e da beleza bruta das imagens e do poder do cinema como dispositivo.

Em pouco menos de 25 minutos, uma alternância de situações dramáticas sensoriais, que sugerem muito mais do explicitam os sentimentos dos dois jovens são amarradas em pequenas elipses onde tudo o que é supérfluo fica fora. ‘Sem Coração’ trabalha no campo da construção narrativa em que a força das imagens e o que elas sugerem substitui a necessidade de diálogos e de elementos narrativos óbvios para compor com coesão a história de um vínculo emocional e de desejo que envolve os dois adolescentes, em um momento de suas vidas em que se abrem ao mundo e à natureza, tanto física quanto psicológica, de seus impulsos eróticos e afetivos.

‘Sem Coração’ alterna planos estáticos expressivos com sequências de câmera na mão, imagens trêmulas e ângulos fechados totalmente funcionais e orgânicos. A câmera de Nara e Tião segue a pulsão emocional do casal protagonista, os integra aos espaços e movimentos em que estão inseridos e trabalha em função do fluxo interior dos personagens. A fotografia sempre precisa de Ivo Lopes Araújo e o uso dramático do formato scope completam os elementos que fazem do curta um dos destaques do festival desse ano.

Longa

‘Brasil S/A’, de Marcelo Pedroso

Brasil SAO novo longa do diretor Marcelo Pedroso tem mais do que apenas ligação com seu filme anterior, o curta ‘Em Trânsito’ (2013). ‘Brasil S/A’ é um desdobramento da obra anterior de Pedroso, mais ainda, chega a ser uma expansão em 72 minutos do conteúdo, das simbologias e alegorias bem como das ideias e mecanismos de encenação de ‘Em Trânsito’.

‘Brasil S/A’ é uma fantasia, um filme em esquetes cheio de sarcasmo e cinismo que explora a obsessão atual do Brasil, e mais particularmente de Pernambuco e sua capital Recife, com o progresso, o desenvolvimentismo e o crescimento econômico. No longa, Pedroso cria situações fantásticas isoladas entre si, com elementos de surrealismo e falsificação do real em que alguns personagens surgem e retornam em cena em esquetes sem nenhum diálogo ou uma fala sequer.

É um terreno perigoso que o diretor adentra e que se funcionou bem no curta ‘Em Trânsito’, não alcança o mesmo impacto nesse novo longa. O filme resulta muito irregular, com várias boas sacadas, mas o excesso de artificialismos, o esquematismo e os maneirismos da encenação atravancam o filme e deixam o resultado final um tanto frouxo.

Pedroso tem ideias interessantes que explora com inteligência, como mostrar a transformação de elementos típicos de Pernambuco como os cortadores de cana e os catadores de caranguejo dos mangues sendo interrompidos em sua força de trabalho pelo avanço do progresso automatizado que chega por meio de máquinas colhedeiras, tratores de última geração, navios cargueiros que transportam essas máquinas e obras de infraestrutura que surgem brutas em meio à natureza pacata de seus antigos locais de trabalho e convivência.

A recente reconfiguração urbana do Recife, com seus novos prédios altos que formam uma linha de torres verticais que agridem o horizonte da cidade, o excesso de carros novos que invadem as ruas, a classe média e as novas e velhas elites que habitam esses paraísos artificias frutos da especulação imobiliária, da gentrificação e da agressão ao patrimônio histórico e urbanístico da cidade também são satirizados pelos filme. O bom humor de ‘Brasil S/A’ não dilui seu caráter crítico e os risos surgem no espectador na mesma proporção em que sugerem uma reflexão desanimada sobre os rumos do desenvolvimentismo e da higienização cafona que estão em progresso a todo vapor no país.

Apesar dessas qualidades, o filme de Marcelo Pedroso sofre muito exatamente por sua ligação umbilical com o curta que o precede. Algumas cenas, como o balé de carros e máquinas, encenados como uma dança ritualística do progresso ao som de música instrumental em alto volume, são idênticas nos dois filmes, mas funcionavam melhor em ‘Em Trânsito’, tanto pela condensação dramática potencializadora do formato curta-metragem como pelo ineditismo desses procedimentos estéticos. O uso de uma câmera funcional, que trabalha no papel de maximizar o sentido direto do sarcasmo dos planos em meio às cores fortes que caracterizam o imaginário do visual ultra colorido de progresso do “Brasil potência” também são repetições literais de ‘Em Trânsito’.

‘Brasil S/A’ é cheio de altos e baixos, seus excessos superam seus acertos, mas ao mesmo tempo fazem do filme um bom exemplo de um cinema de risco, um cinema que busca repaginar conceitos e se atira sem medo em sua expressão, em sua necessidade de existir e se fazer ver. Tudo isso para o bem e para o mal. A repetição gera um impasse na obra do talentoso Marcelo Pedroso e põe um ponto de interrogação em para onde ele pretende levar sua obra a partir de agora.

Sobre o primeiro dia da Mostra Competitiva (17/09)

Curtas

‘Loja de Répteis’, de Pedro Severien

Loja de RépteisUm dos melhores curtas do ano foi o responsável por abrir a competição em Brasília. O filme de Severien cria uma atmosfera claustrofóbica repleta de tensões que vão se acumulando diante do espectador. Várias referências a pulsões sexuais prestes a explodir, à condição animalesca e a atração pelo lado sombrio e grotesco do ser humano como superação de interditos eróticos e maneiras de dominação e consumação do desejo do outro são a matéria desse curta cheio de simbologias e jogos de significação.

‘Loja de Répteis’ tem como destaque, além da presença de Maeve Jinkings, a mais talentosa atriz do cinema brasileiro atual, um trabalho minucioso de construção dos planos, onde o posicionamento de câmera e a variação no uso das lentes ampliam as sensações de desconforto e as modulações dramáticas dos personagens. O uso de uma luz sub exposta, que deixa as penumbras e a escuridão se destacarem em meio ao direcionamento da luminosidade em pontos específicos do quadro são elementos que ressaltam o aspecto expressionista do filme.

Várias leituras cabem dentro de ‘Loja de Répteis’, um filme que se entrega ao espectador para ser explorado e sentido em igual proporção. A segurança com que Severien constrói o universo do curta, a intensidade física e emocional com que Maeve Jinkings enche a tela com sua presença ímpar, os jogos de significação e o poder do discurso visual do filme fazem dele uma experiência difícil de ser esgotada em apenas uma sessão. Um curta para ser revisto e repensado com frequência.

Longa

‘Sem Pena’, de Eugenio Puppo

Sem PenaO documentário de Eugenio Puppo parte de uma ideia, uma defesa de causa que o diretor constrói como enunciado do seu filme: o sistema carcerário no Brasil é péssimo, bem como os procedimentos da justiça e a desigualdade social no país, tudo isso aliado a um crescente medo coletivo imposto aos cidadãos por diversos meios. O diretor defende que essa soma de fatores cria situações insustentáveis em que o respeito aos mais básicos direitos do ser humano são aviltados constantemente e que não existem soluções aparentes para resolver esse caos.

A partir daí, Puppo seleciona depoimentos de várias fontes, dos mais variados segmentos sociais e setores da sociedade, que fazem seus discursos que sempre corroboram com o enunciado do filme e as ideias defendidas pelo diretor. ‘Sem Pena’ é um filme que tem uma clara função social, defende pontos de vista totalmente nobres e causas urgentes e justas. Mas em cinema é necessário mais do que ter função social ou boas intenções.

O longa constrói um discurso coeso, mas não acrescenta nada de novo para quem já acompanha os temas abordados, não dá espaços para novos debates nem cria possibilidades para uma dialética estética dentro do filme em termos cinematográficos. Nesse ponto, ‘Sem Pena’ vai no sentido oposto dos filmes ‘Justiça’ e ‘Juízo’, de Maria Augusta Ramos, que abordam temas semelhantes mas com uma construção cinematográfica bem mais sofisticada e elementos estéticos muito mais ricos em permitir aberturas para o espectador dentro de sua estrutura construtiva.

O enunciado de Puppo é corretíssimo, as questões que levanta são fundamentais para serem debatidas em exaustão no Brasil de hoje. Os problemas de ‘Sem Pena’ são de ordem cinematográfica, estão no auto-esgotamento do material que o filme entrega ao público, sem arestas, nada além de uma tese bem defendida, um longa que não se projeta para além da força limitada de seu material central.

‘Sem Pena’ se aproxima de outro documentário atual, ‘O Mercado de Notícias’, de Jorge Furtado, que também aborda temas de extrema relevância, mas de maneira mecânica, com depoimentos que se atropelam e sem espaço para aprofundamentos das questões postas. O filme de Puppo é superior ao de Furtado, a qualidade dos depoimentos é melhor e o tempo de duração das falas mais extenso, o que ajuda a embasar mais as intenções discursivas do filme. ‘Sem Pena’ também conta com boas imagens, captadas por Puppo e sua equipe, em que vemos presídios, cadeias, filas de familiares em dias de visita, repartições públicas abarrotadas de papéis de inquérito e outros planos, que montados de maneira sobreposta aos depoimentos ou apenas com músicas e ruídos de fundo, ajudam a potencializar ainda mais as intenções do diretor.

A banda sonora é outro problema do longa, em muitos momentos ela é excessiva, os ruídos, sons e demais dispositivos sonoros se tornam agressivos demais e tendem a forçar e direcionar as emoções do espectador de maneira pouco sutil.

Puppo não esconde suas intenções, tanto que o primeiro depoimento do longa é de uma artista plástico que ficou preso por mais de um ano sem ter cometido crime nenhum. Parece que apenas defender uma causa nobre já é a ideia e a justificativa da existência do documentário, e isso não é, de forma alguma, um elemento para criticar o filme, que está longe de ser ruim ou equivocado, é apenas limitado para quem espera algo mais. E o cinema é capaz de dar muito mais.

Sobre a Cobertura do 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

O Tudo Vai Bem acompanha a mostra competitiva do 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Serão publicadas pequenas críticas sobre todos os longas da competição e sobre os principais curtas (na opinião do site), divididas por dia de exibição dentro do evento. Os textos serão escritos no calor do festival e trarão uma primeira impressão sobre as obras, influenciadas pela atmosfera do evento. Futuramente voltarei a esses filmes com críticas mais extensas, com a esperança de que todos entrem em cartaz no circuito o mais breve possível.

‘Era uma Vez em Nova York’ (The Immigrant), de James Gray

DSC_3749.NEFPor Fernando Oriente

Em ‘Era uma Vez em Nova York’ o diretor James Gray reafirma com maturidade os elementos que são matéria central em seu cinema: a intensidade dos dramas, a carga emocional de seus personagens e a força das relações entre eles. Gray é um encenador elegante, no que o termo tem de mais elogioso. Seus planos são milimetricamente calculados, sua decupagem é rigorosa e pensada sempre em função da fluidez dramática das sequências. Ele trabalha o quadro em suas minúcias, posiciona atores e objetos em pontos específicos dentro de cada plano que visam à relação mais intensa que eles mantêm com a câmera e a função dramática da luz, sendo o trabalho da fotografia um elemento narrativo de primeira importância dentro de seus filmes, ainda mais em um filme de época como ‘Era uma Vez em Nova York’.

No filme temos uma protagonista (a imigrante polonesa vivida por Marion Cotillard) e dois personagens igualmente importantes que interagem com ela. O principal deles é o gigolô, também filho de imigrantes, que alicia a jovem e a traz para trabalhar para ele. Esse personagem (vivido por Joaquim Phoenix em mais uma interpretação excepcional) é quem vai propor as variações dramáticas mais intensas e os conflitos que permitem a James Gray construir ‘Era uma Vez em Nova York’ como um dos grandes filmes do ano. Para completar o trio de tipos centrais, existe o mágico interpretado por Jeremy Renner, que entra na narrativa como catalisador e força propulsora da desordem emocional que conduzirá o longa aos seus picos narrativos e ao desfecho. E é impossível não ressaltar que todo o impressionante final do filme é fechado por um dos mais belos planos que do cinema recente, com uma construção de quadro, movimento de câmera e jogo de significados que ficarão impregnados no espectador por muito tempo.

Embora desenvolva o filme centrado nos conflitos entre seus personagens centrais, James Gray contextualiza suas relações de maneira porosa com o ambiente e a época em que estão inseridos. Por meio dos dramas dos protagonistas, temos a construção de um universo tenso, de um mundo áspero e de uma rotina asfixiante que marcava a vida dos imigrantes em bairros pobres da cidade de Nova York nos anos 20. Gray faz cinema narrativo, em que força autônoma das sequências soma intensidade e amplia a experiência total do filme. Estamos diante de um cineasta que constrói narrativas adultas em meio a um cinema cada vez mais infantilizado no tratamento com as emoções humanas.

Em seus filmes anteriores, principalmente ‘Os Donos da Noite’ (2007) e ‘Amantes’ (2008), temos nítidas essas preocupações de Gray em que o cinema deve unir a altíssima carga dramática, a força narrativa e a funcionalidade austera da encenação com a profundidade e a complexidade de personagens constituídos por muitas camadas emocionais. São as múltiplas texturas de seus tipos que conduzem seus longas, que dão contornos a narrativa.

Em ‘Era uma Vez em Nova York’ são as modulações internas e as variações emocionais do personagem de Joaquim Phoenix que ditam as regras, bem como as próprias tensões da vida precária em um ambiente inóspito em que todos estão inseridos. O gigolô que interpreta é de uma densidade dramática impressionante. Ele é canalha ao mesmo tempo em que transpira fragilidade em todos os gestos. Em uma das cenas do filme, a personagem de Marion Cotillard diz a sua tia que conheceu um homem perdido. Esse homem perdido, egoísta e explorador é ao mesmo tempo capaz de deixar sentimentos fortes de ternura e amor guiar seus atos. Os tipos de James Gray são todos culpados (embora essa culpa não tenha uma lógica simplista), mas isso não os impede de alternarem as mais distintas e muitas vezes nobres características humanas. Eles buscam seus desejos, seguem seus instintos de sobrevivência. Esses fatores lhes dão complexidade aguda e levam as situações dramáticas a extremos.

É impossível julgar os personagens, a moral do cinema de James Gray vem exatamente da impossibilidade que ele implica aos seus tipos de serem julgados por conceitos rasos ou maniqueísmos. Uma moral construída na solidez da mise-en-scène. Seus personagens são todos demasiadamente humanos. E é das profundezas dessa humanidade que os conflitos surgem, que a violência rompe os limites e os dramas afloram dentro da intensidade ímpar do cinema de James Gray.

‘Era uma Vez em Nova York’ evoca referenciais claras. As mais notáveis são o tratamento na construção da encenação em espaços internos e externos cara a muitos filmes da Nova Hollywood dos anos 70, mais notadamente as sequências do jovem Vito Corleone em ‘O Poderoso Chefão 2’, mas também muito do estilo de Michael Cimino em quase todos seus longas. A luz dourada, os tons marrons amarelados da paleta de cores na fotografia remetem bastante a trabalhos do cinema americano dos anos 70, principalmente em filmes de época. Um uso de luz dramática que imprime às sequências um tom ligado aos humores narrativos e as percepções espaço temporais dos ambientes. A sensorialidade da imagem em função da evolução dramática.

No filme também ficam claras comparações na maneira como James Gray constrói a encenação, com posicionamentos e movimentos de câmera, bem como a relação entre os tipos e os objetos, que lembram bastante a forma de Luchino Visconti perscrutar os espaços em muitos de seus filmes, mais notadamente ‘Vagas Estrelas da Ursa’, ‘Violência e Paixão’ e ‘O Inocente’.

James Gray tem apenas cinco longas realizados em quase vinte anos de carreira (seu primeiro longa-metragem ‘Fuga Para Odessa’ é de 1994). Trata-se de um cineasta que realiza apensas os projetos que deseja e pode ter controle total sobre eles. Gray é um artesão do cinema, um narrador sofisticado e um dos maiores encenadores surgidos no cinema mundial nas últimas décadas. ‘Era uma Vez em Nova York’ é um claro exemplo disso.

‘Bem-Vindo a Nova York’, de Abel Ferrara

Bem-Vindo a Nova YorkPor Fernando Oriente

O novo longa de Abel Ferrara é de uma contemporaneidade espantosa. Seus temas, a maneira como Ferrara encara esses temas e arquiteta seu discurso e as possibilidades de leitura que surgem desse processo não só interagem com o estado das coisas do mundo atual como chegam a representar imagens, significados e sensações que traduzem a época e os valores em que vivemos. “Bem-Vindo a Nova York’ é sobre poder, carne (corpo), dinheiro, impulsos, relações de poder. No filme temos escancarada a incapacidade da essência humana ser dominada, muito menos domada, temos o sentimento de vazio do homem contemporâneo. Tudo com a intensidade e o jorro de encenação visceral laboriosamente construída de Abel Ferrara.

Ferrara parte da história real de Dominique Strauss-Kahn, antigo chefe do FMI e nome certo para concorrer (e vencer) as eleições para a presidência da França, que foi preso e acusado de assédio sexual a uma camareira de um hotel em Nova York em 2011. Esse mote envolvendo figura do alto escalão do poder mundial serve de ponto de partida para Abel Ferrara desenvolver um estudo sobre as relações de empoderamento na sociedade que vão além do dinheiro. Elas passam pelos impulsos desse poder, as ações desenfreadas que os que detêm essa força impõem a todos e a tudo o que está em seu entorno. Ter poder é conquistar, é consumar desejos, é fazer com que qualquer pulsão e mesmo obsessão seja satisfeita de maneira imediata, sem esforço, mecanicamente.

No centro dessa ciranda está o personagem Devereaux, o Dominique Strauss-Kahn de Ferrara interpretado por Gerard Depardieu em uma de suas grandes atuações na carreira, que remete muita ao vigor com que o ator se entregava aos papéis que vivia em filmes de Pialat e Marco Ferreri, entre outros.

Muita da eficácia do personagem de Devereaux vem de sua figura, da aparência obesa e desleixada, das dificuldades em se mover em meio à gordura excessiva do corpo, a respiração ofegante, o olhar injetado de fúria quanto tomado por seus impulsos sexuais. A complexidade do tipo criado por Ferrara no corpo e nos gestos de Depardieu vem das nuances de sua construção emocional. Embora surja na tela como uma besta predatória, homem de poder e força, além de intelectual brilhante, Devereaux é uma figura vazia existencialmente, um sujeito desencantado. Sua personalidade é movida por uma imensa falta, mais do que vazio, seu personagem carrega dentro de si a falta, a incompletude de algo que foge a mera consumação de seus impulsos e ao sucesso na carreira. Os excessos do protagonista de ‘Bem-Vindo a Nova York’, como o de quase todos os personagens de Ferrara, buscam suprir esse sentimento da falta, da incompletude que esmaga seus tipos.

Em seu cinema, Ferrara busca a força e o impacto sensorial do momento, das ações dentro de cada plano. Ele valoriza as obsessões humanas e a intensidade com que essas obsessões tomam conta do agir e marcam emocionalmente seus indivíduos. Tudo isso sem negligenciar as sensações de culpa, consciente ou não, bem como as sequelas e cicatrizes que os personagens carregam. Ninguém fica impune no cinema de Abel Ferrara. A ética religiosa complexa e seus desdobramentos é matéria onipresente na obra do diretor.

Por mais que o personagem de Devereaux mostre seu total desprezo pelo mundo e pelas pessoas a sua volta, seu desencanto existencial, a crença cínica na falência dos valores que um dia acreditou são características fundamentais de sua personalidade. Em “Bem-Vindo a Nova York’, Ferrara cria uma das mais belas cenas do filme exatamente em um monólogo de Depardieu em que ele discorre sobre sua formação ideológica nos tempos de estudante e depois professor e como o desencanto e a falência na crença religiosa, quase sagrada dessa ideologia fez com que se tornasse um homem amargo, que carrega suas cicatrizes interiores nos excessos que vão de uma trepada a outra, de uma suruba a próxima gincana sexual. É na carne, na possessão da carne e dos corpos de incontáveis mulheres (de estudantes a putas, de jornalistas a empregadas de hotéis e quais outras mais que aparecem a sua frente) que Devereaux exerce seu poder, um poder melancólico que Ferrara ressalta no contraste da beleza das formas dessas mulheres com a gordura e a flacidez obscena do corpo de Depardieu, bem como em seus limites físicos.

As relações de poder em ‘Bem-Vindo a Nova York’ são trabalhadas por Ferrara em dois registros distintos. Na primeira parte do filme, vemos Devereaux em diferentes situações em que consome sexualmente inúmeras mulheres, interage e aplica fisicamente seus impulsos sobre corpos que estão a sua disposição para o consumo. São cenas longas em que transa com prostitutas em quartos de hotel, participa de jogos eróticos regados a bebida, sorvetes e estimulantes sexuais em meio a seus amigos e garotas de programa, assiste duas mulheres se pegando enquanto interage com elas dentro de suas limitações, além de passar a mão, bolinar e se esfregar em quase toda personagem do sexo feminino que cruza seu caminho. Ferrara filme isso de maneira crua e direta, em ângulos fechados e movimentos de câmera que acompanham o fluxo das ações.

Em um segundo momento, quando Devereaux é preso, passamos a acompanhar os tormentos do todo-poderoso chefão do FMI, a perda do poder e do direito de fazer tudo aquilo que bem entende e deseja, a inversão da lógica desse poder. Ele é capturado, algemado, levado de uma delegacia a um presídio. A câmera apreende sua figura trancada em celas, atrás de grades, o vemos através de vidros blindados, barras de ferro, espaços claustrofóbicos.

Em uma das mais emblemáticas sequências do filme, Ferrara escolta de perto, em longos planos, o trajeto de seu protagonista pela cadeia a que é conduzido. Acompanhamos suas caminhadas por corredores, passando por grades, tendo suas impressões digitais tiradas, sua foto com crachá de presidiário sendo clicada por policiais que pouco se importam com ele. E, para coroar essa passagem fundamental do filme, vemos Devereaux se despindo na frente dos policiais, retirando cada uma das peças de sua roupa com as dificuldades que o físico lhe impõe até termos sua figura obesa totalmente nua em cena. A fragilidade de sua imagem nua, a ausência simbólica de todos os elementos que caracterizam seu empoderamento diante do mundo está revelada de forma chapada na tela. Novamente Ferrara compõe seus planos de forma direta, frontal.

Os jogos de poder prosseguem, a importância da figura de Devereaux é salva por aqueles que o colocaram no poder. Esses são personificados na personagem de Simone, sua bilionária esposa e mentora política, a responsável por planejar sua carreira e que almeja mais poder por meio do marido, o futuro presidente da França. Simone sabe de todas as características emocionais e condutas de seu marido. Aceita sua promiscuidade, seu vício por sexo (como ele mesmo admite). Ele é, nas mãos da mulher, um fantoche, mais uma peça na consumação e manutenção do poder econômico e político nas mãos daqueles que controlam o mundo: as corporações, os investidores, o Capital.

O cinema de Abel Ferrara tem muita influência de Samuel Fuller. Os dois colocam as emoções e a carga dramática de maneira frontal ao espectador. Está tudo na superfície da tela, nessa frontalidade da mise-en-scène, com fúria, intensidade e sem meio termo. São emoções traduzidas de maneira explícita na gênese dos planos, no centro das cenas, que subvertem noções preconceituosas do bom-gosto em função da força sensorial do cinema. Ferrara, como Fuller, trabalhada na potencialização dos excessos e na capacidade transcendente desses excessos.

Como diz o crítico e pesquisador Rui Gardnier, curador de uma retrospectiva completa dos filmes de Abel Ferrara que aconteceu alguns anos atrás em São Paulo e no Rio: “Em Ferrara o sujeito aspira ao sentimento do absoluto, almeja a completa dissolução do sujeito no mundo (ou no nada)”. Ferrara é o cineasta dos excessos em função da dramaturgia, na base do discurso fílmico. É um cronista dos conflitos internos entre os impulsos, o desprezo e a culpa, a religiosidade, a crueldade e o mundano. O sublime que nasce do aviltamento questionador dos paradigmas morais.

‘Com os Punhos Cerrados’, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti

Com os Punhos Cerrados-posterPor Fernando Oriente

O novo longa de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti, ‘Com os Punhos Cerrados’ começa com uma questão posta aos personagens bem como ao espectador: “O que fazer?”. Essa mesma questão também estava presente no início (e a ao longo de toda a duração) dos dois filmes anteriores do trio ‘Estrada para Ythaca’ (2010) e ‘Os Monstros’ (2011), esses dois também co-dirigidos por Guto Parente. Esses filmes, bem como o trabalho dos cineastas e do coletivo Alumbramento, partem de uma inquietação social com o momento em que vivemos e com um desconforto em relação ao papel do cinema e da arte que seja capaz de traduzir esses tempos e suas angústias.

‘Com os Punhos Cerrados’ teve sua estreia mundial no Festival de Locarno 2014, que aconteceu na cidade suíça entre os dias 6 e 16 de agosto.

Em ‘Com os Punhos Cerrados’, vemos os diretores, que também interpretam o trio de protagonistas do filme, em um momento divisório, em que o inconformismo com o estado das coisas os abriga a agirem. Eles montam e transmitem uma rádio pirata, com textos e músicas anarquistas, em que atacam a sociedade capitalista e os conceitos engessados e reacionários do Estado e a apatia alienada de uma sociedade perdida entre a obrigação do trabalho e os desígnios consumistas que a vida estabelece para inserir as pessoas em seu jogo monótono.

O trabalho dos diretores é construído por meio da autonomia dos planos, que trazem uma relação física e poética entre os personagens, os textos, suas inquietações e as limitações espaciais e políticas que estão contidas nos espaços em que estão confinados. Elementos dramáticos são acrescentados ao longa como comentários sarcásticos. Primeiro um vilão propositalmente caricato que representa os valores do capitalismo e do pensamento autoritário e moralista da direita brasileira. E, mais interessante ainda, a presença de uma jovem sedutora que é enviada pelo vilão para se infiltrar entre o trio de protagonistas para servir de espiã de suas ações.

As cenas com a jovem, que acaba se envolvendo física e emocionalmente com os três personagens centrais é um achado no filme. Os longos planos em que ela permanece em silêncio, observado e escutando o que dizem e fazem, o olhar melancólico da moça, as lágrimas que escorrem de seus olhos são uma potencialização das idéias e das angústias em que vivem os jovens anarquistas. Ela passa de agente alienado a serviço de uma causa canalha a uma mulher que se mostra capaz de entender, se envolver e, principalmente, sentir os significados do discurso e as dores dos jovens. É um colocar-se no mundo o movimento vivido pela jovem interpretado por Samya de Lavor.

O filme não prega soluções, não aponta caminhos para conquistas. O que os diretores/personagens fazem são pequenos atos de resistência, são reações necessárias a eterna questão “o que fazer”. Os planos longos, os enquadramentos oblíquos, o excesso de imagens capturadas através de panos, lenços e em meio a objetos de obstruem uma visão limpa dos espaços impulsionam as sensações claustrofóbicas em que as ações e intenções do trio estão condenadas.

Os três personagens centrais praticamente não conversam. Dialogam por meio dos textos que lêem, dos olhares que trocam, dos silêncios a que estão inseridos e aos movimentos e ações que se dedicam por uma simples necessidade de ação, de movimento, de seguir adiante. Entre os textos lidos ao longo de ‘Com os Punhos Cerrados’ estão Antonin Artaud, Elie Faure, Oswald de Andrade, James Joyce, William Powell, além de textos dos próprios cineastas e um discurso seguido de uma poesia lida pelo amigo, poeta e também cineasta Uirá dos Reis, que participa de uma das mais belas cenas do longa.

Os textos, a relação dialética entre as palavras lidas com as imagens, silêncios e movimentos (dos personagens e da câmera) constituem uma afirmação do poder dessas palavras em meio à inação a que somos condenados. As possibilidades das significações dessas palavras aumentam a angústia e a dor de viver em um mundo sem possibilidades de auto determinação dos seres.

‘Com os Punhos Cerrados’, dentro de sua encenação solta, aberta aos espaços e as percepções do espectador, segue a linguagem dos cineastas, presente tanto em seus longas anteriores, quanto em alguns de seus mais significativos curtas. O respeito pelos ambientes a e a relação desses com os personagens e com a câmera são elementos centrais no cinema dos diretores. Outra presença forte no filme, que também era notada em ‘Estrada para Ythaca’, é a influência dos filmes que Jean-Luc Godard fez em sua fase política mais radical do final dos anos 60 e primeira metade da década de 70, principalmente nos filmes que Godard fez com o coletivo Dziga Vertov, como ‘Vento do Leste’, e ‘Tudo Vai Bem’, entre outros. Só que os diretores cearenses atualizam essas influências e a traduzem para os dias de hoje.

A necessidade dos personagens fazerem suas vozes, suas palavras e idéias serem ouvidas (via rádio pirata) é a mesma necessidade dos cineastas fazerem existir o seu cinema. A luta sem possibilidades de ser vencida do trio protagonista é como o cinema feito com independência e originalidade pelos irmãos Pretti e Diogenes, bem como por todo o coletivo Alumbramento e outros artistas que produzem esse cinema inquieto e talentoso que não para de apontar caminhos, conquistar espaço e oferecer filmes consistentes e cheios de possibilidades.

25º Festival de Curtas de SP: seis pequenas críticas para filmes recomendados

cartazPor Fernando Oriente

A 25ª edição do Festival de Curtas de São Paulo começa no dia 20 de agosto e segue até o dia 31 em várias salas da capital. Seguem pequenas críticas de alguns curtas recomendados dentro da seleção da mostra desse ano. A programação completa está no site do festival: http://www.kinoforum.org.br/curtas/2014/

‘Quinze’ (Brasil, 2014), de Maurílio Martins

Quinze‘Quinze’, de Maurílio Martins, é forte candidato a um dos melhores filmes da edição do festival esse ano. No filme, temos uma mise-en-scène que privilegia a significação dos gestos, dos olhares, os silêncios (a amargura e a ternura que eles indicam) e a relação que se estabelece entre os personagens e o ambiente que os cerca. Tudo isso está imbricado com as expectativas, frustrações e esperanças de pessoas que vivem na limitação material de uma vida simples, mas que fazem com que essas limitações não os impeçam de desejarem, de retirarem de seus limites um impulso de viver, de ocupar um espaço simbólico em um mundo que ainda guarda possibilidades de felicidade, alegrias e perspectivas de amor, por mais reprimidas que essas possam ser.

O curta de Maurílio é um filme político em sua essência, na gênese da encenação e na representação de mundo que constrói. Os espaços, a rotina de vida e as asperezas da realidade que cercam os personagens definem uma situação política precária, um esmagamento calcado nas limitações que só podem ser superadas pela força dos sentimentos que unem os personagens e pela capacidade que eles têm de tirar o mínimo de expectativa de seguir, de continuar em frente sem medo. São seres colocados à margem da grande contemplação consumista e de aparências pré-fabricadas do mundo do espetáculo, mas que exercem uma condição de protagonistas de suas vidas.

Maurílio Martins é um diretor de rara sensibilidade, seus instantes dramáticos atingem pontos altos, ele é frontal e poético ao mesmo tempo. Sua encenação é contaminada de vida, de autenticidade diante do material que registra. ‘Quinze’ é um filme que remete constantemente ao cinema de Carlos Reichenbach, a quem o curta é dedicado. A bela cena de escape poético em que a mãe interpretada por Karine Teles (ótima no papel) dança com sua namorada sob uma luz dramática artificial no meio da rua e depois segue seu caminho andando pela rua escura e deserta e se distanciando da câmera é uma síntese dessa poesia melancólica e cheia de energia vital que caracteriza o filme e que sempre marcou a obra de Reichenbach.

‘Quinze’ são 20 e poucos minutos de cinema, de vida, de gente, de sentimentos. Um filme que busca o outro, que se debruça sobre seus personagens. Um olhar sobre o caráter imenso daquilo que está no simples viver. Do amargo e do sublime que nos cerca.

‘Estatua!’ (Brasil, 2014), de Gabriela Amaral Almeida

EstátuaA diretora Gabriela Almeida faz de seu curta ‘Estátua!’ um belo trabalho de construção de quadro. Os planos são todos funcionais e a composição de cena impressiona pela forma como a cineasta utiliza os espaços do apartamento em o filme se desenvolve como elemento dramático. A câmera está sempre posicionada para criar uma relação geométrica com o ambiente que potencializa as angústias da protagonista, a babá Isabel (mais uma interpretação primorosa de Maeve Jinkings, que a cada filme se consolida como uma das melhores atrizes do Brasil).

Em ‘Estátua!’ estamos dentro dos códigos do cinema de gênero, no caso o horror psicológico, que o filme se entrega de maneira sincera. A decupagem rigorosa, a relação entre os personagens e os objetos de cena, bem como as possibilidades da profundidade de campo e os ângulos de visão que o curta oferece ao espectador, sempre priorizando a relação entre a geometria do quadro com as intensidades dramáticas, fazem do filme de Gabriela um conciso e sólido curta dentro da relação matéria/forma, respeitando as estruturas e a linguagem do dispositivo narrativo em curta-metragem.

Trata-se de um filme que respeita o formato e dele tira sua força. Saber trabalhar dentro das limitações (e possibilidades) da curta duração de um filme é sempre um desafio para o realizador, e Gabriela mostra-se totalmente à vontade na maneira como domina o material de seu discurso fílmico.

‘Coisas Nossas’ (Brasil, 2013) de Daniel Caetano

Coisas NossasO tempo e os efeitos do tempo. As relações, os sentimentos e o inevitável curso que a vida impõe no destino das pessoas e como isso interrompe desejos e expectativas ao mesmo tempo em abre novos caminhos de possibilidades a serem exploradas e sem conhecimento prévio de desfechos. Tudo isso está no belíssimo curta ‘Coisas Nossas’, de Daniel Caetano.

A narrativa se resume a dois planos (estáticos e abertos em que todos os personagens se encontram e se dispõe dentro dos limites do quadro), dois encontros entre antigos amigos de faculdade, dois momentos separados por dez anos. Daniel Caetano tira o máximo desses dois momentos, constrói uma encenação leve que permite que cada olhar, cada gesto e que cada frase dita, bem como os silêncios e pausas, tenham uma repercussão muito maior do podem simplesmente aparentar. ‘Coisas Nossas’ mostra a maturidade do cineasta como encenador no domínio das especificidades de uma mise-en-scène que reafirma em apenas nove minutos um discurso sólido.

A economia de planos e a encenação aberta ao que está fora de quadro (tudo que esses amigos viveram juntos, seus sentimentos um em relação ao outro, suas expectativas, interrupções, frustrações e a vida material que existe fora desses encontros) fazem a força do curta e o oferecem de maneira aberta e porosa a sobreposições de interpretação desse tempo implicado no viver de cada um, na suave e silenciosa angústia que contrapõe o vivido ao que era esperado do viver.

‘Sem Coração’ (Brasil, 2014) de Nara Normande e Tião

O curta de Nara Normande e Tião tem muito de sua inegável força na capacidade dos diretores de desenvolverem uma narrativa simples (o amor que surge entre dois adolescentes de universos distintos durante uma temporada de férias na praia) de maneira sensível e sofisticada consolidada a partir de uma decupagem precisa que tira o máximo de significação de cada um dos planos. Um filme em que as sensações são o centro da encenação.

Em pouco menos de 25 minutos, uma alternância de situações dramáticas sensoriais, que sugerem muito mais do explicitam os sentimentos dos dois jovens são amarradas em pequenas elipses onde tudo o que é supérfluo fica fora. ‘Sem Coração’ trabalha no campo da construção narrativa em que a força das imagens e o que elas sugerem substitui a necessidade de diálogos e de elementos narrativos óbvios para compor com coesão a história de um vínculo emocional e de desejo que envolve os dois adolescentes, em um momento de suas vidas em que se abrem ao mundo e à natureza, tanto física quanto psicológica, de seus impulsos eróticos e afetivos.

‘Sem Coração’ alterna planos estáticos expressivos com sequências de câmera na mão, imagens trêmulas e ângulos fechados. A câmera de Nara e Tião segue a pulsão emocional do casal protagonista e trabalha em função do fluxo interior dos personagens. A fotografia sempre precisa de Ivo Lopes Araújo completa os elementos que fazem do curta um dos destaques do festival desse ano.

‘O Porto’ (Brasil, 2013) de Julia de Simone, Clarissa Campolina, Ricardo Pretti, Luiz Pretti

o portoExistem filmes em que os recursos formais e a estética são elementos constitutivos de um discurso sólido. ‘O Porto’ é um desses filmes. A relação temporal, hstórca e afetiva deuma cidade com seus espaços (o Rio de Janeiro e sua região portuária), a decadência física desses locais que é incapaz de esconder a beleza que eles ainda trazem dentro do espaço urbano e o contraste disso com projetos de especulação imobiliária e a gentrificação que isso acarreta são o centro discursivo do curta.

Tudo isso ganha contornos imagéticos fortes na escolha dos diretores por elementos narrativos como as imagens desfocadas, os planos estáticos e os enquadramentos rigorosos. É notável a tensão espacial que ‘O Porto’ traz em suas imagens. Seus silêncios e ruídos, a banda sonora em contraste com as imagens e a analogia temporal entre os espaços e a duração dos planos dão força sensorial e criam uma relação dialética entre as imagens e suas possibilidades de apreensão.

‘O Porto’ é um filme que se propõe em camadas. Na relação atemporal que suas imagens evocam. É um típico caso em que a geometria do quadro é usada como elemento dramático. Esse recurso ressalta a representação material dos espaços e a partir dela cria possibilidades de relação entre esses ambientes com fatores que vão além das imagens e da presença física do que é registrado pela câmera.

‘A Quilômetros de Distância’ (A Million Miles Away, EUA, 2014) de Jennifer Reeder

Irregular, mas ao mesmo tempo criativo e sincero na forma como a diretora se entrega a construção narrativa de seu discurso, o curta norte-americano de ‘A Quilômetros de Distância’, de Jennifer Reeder, tem alguns momentos de muita força, como a maneira como a cineasta articula o fluxo de pensamento de suas personagens com as imagens de seus rostos em close, ancorada em uma montagem ágil e num ritmo truncado que amplia as inquietações emocionais dos personagens.

O filme é totalmente aberto na relação orgânica que desenvolve com o universo das adolescentes que compõem o filme. A maneira como essa perspectiva subjetiva das meninas é transposta para a professora de meia idade, que tem sua representação construída dentro dos mesmos códigos que regem o universo adolescente, com suas dúvidas e ansiedades, é um trunfo do filme.

A diretora não recusa mergulhar de cabeça na maneira como se entrega aos objetos de sua narrativa e aos seus exageros. Ela é excessiva, carrega nas cores e nos códigos visuais e narrativos típicos dos adolescentes, como a linguagem truncada das mensagens de texto via celular e nas referências da simbologia da cultura pop. Com altos e baixos, alguma ingenuidade e momentos que beiram o piegas, mas sempre autêntica na entrega ao desenvolvimento de seus enunciados, Jennifer faz do curta um interessante e pessoal registro de um universo instável e cheio de energia e turbulência emocional.

 

Dois documentários: ‘Hélio Oiticica’, de César Oiticica Filho e ‘O Mercado de Notícias’, de Jorge Furtado

Oiticica_posterPor Fernando Oriente

‘Hélio Oiticica’

O grande mérito desse documentário dirigido pelo sobrinho de Hélio, César Oiticica Filho, é a capacidade de unir (na e pela montagem) imagens de arquivo de várias fontes e gravações em áudio feitas pelo próprio artista ao longo de sua vida em um processo capacitador de grande força dialética, um dos principais elementos da obra de Hélio e que é matéria central do filme. Essa relação orgânica entre o documentário de César Oiticica e o pensamento e a obra de seu tio que fazem a grandeza desse longa, um dos mais interessantes documentários biográficos dos últimos anos.

A energia criativa de Hélio Oiticica, suas obras vanguardistas que tinham no conceito criador e na idéia conceitual de arte seu elemento central são difíceis de traduzir em um registro cinematográfico. A porosidade dessa arte singular de Oiticica com os ambientes e espaços que o cercavam (Rio, Londres, Nova York), bem como com as expressões e pulsões do tempo em que criou, tornou seu trabalho orgânico demais para ser captado dentro de simples espaços expositivos. A obra de Hélio precisa era ancorada em performances, em inter-relações físicas com os espaços e o público. Ela extrapola as galerias e vai para as ruas.

O documentário de César é capaz de traduzir muito do espírito da obra de Hélio exatamente por utilizar de maneira feliz as imagens (em sua maioria 8 milímetros, super 8 e 16mm) do artista e sua falas, em que ele expõe seu processo criativo, conta sua história e formação intelectual bem como divaga sobre assuntos e temas variados, mas sempre ligados ao criar, ao fazer e as manifestações artísticas. As imagens por vezes se referem diretamente às imagens que vemos na tela, mas por vezes imagens e texto falado se relacionam um com o outro de maneira autônoma, um reforçando a intensidade do outro, se contrapondo e se complementando, o que amplia força isolada que teriam de não estivesses montados com a eficiência que vemos no longa.

É exatamente o ritmo fragmentado e altamente dialético entre imagens e sons, entre tempos distintos da vida de Hélio e os mais diversos ambientes em que ele viveu e atuou que geram a força propulsora do documentário, que consegue, de maneira impressionista, compor um mosaico de imagens, movimento e discursos que penetram em camadas a obra e o pensamento de Hélio de maneira subjetiva, mantendo o filme aberto a interpretação e em constante diálogo com o que Hélio produziu, pensou e deixou como legado. Além disso, o filme resgata uma época, dos anos 50 aos 80, onde a criatividade, a invenção, a inquietação, o inconformismo e os questionamentos político-estéticos impulsionaram um dos grandes momentos das artes no Brasil e no mundo.

‘O Mercado de Notícias’

Cinema, como tudo na vida, é feito de escolhas. Esse clichê serve para entrarmos no novo filme de Jorge Furtado, o documentário ‘O Mercado de Notícias’. Para o filme, Furtado escolheu traçar um panorama dinâmico do jornalismo, desde sua função e funcionamento, até questões de manipulação da notícia e parcialidade ideológico-política das empresas de comunicação. Para compor esse panorama, temos o depoimento de 13 jornalistas, dos mais diferentes veículos, que falam diretamente para a câmera entrecortados por uma edição ágil. Para completar, Furtado apresenta trechos da peça ‘O Mercado de Notícias’, escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, em 1625 e que tem como tema a nascente imprensa inglesa do século 17.

O que fica do documentário é a impressão de que Furtado expôs diversas opiniões e conceitos, mas de uma maneira superficial, em que prefere o excesso de depoimentos curtos e a variedade de sub-temas em detrimento a um aprofundamento em algumas questões mais cruciais para um tema tão complexo quanto o poder político que a mídia exerce no país.

Isso não é um defeito do filme, e sim uma escolha de seu realizador. É como se Furtado quisesse que seu filme fosse apenas um mosaico de informações pontuais que o espectador possa usar como ponto de partida para tentar tirar suas próprias conclusões sobre o jornalismo praticado no país a partir de sua visão individual do tema no cotidiano. Outro ponto a deixar bem claro é que o discurso de Furtado, embora crítico, enaltece a profissão jornalismo.

O documentário tem um inegável valor, pelo teor dos depoimentos e pelos tópicos abordados, de propor um debate e de servir como uma espécie de guia de investigação sobre um tema atualíssimo como o papel político e econômico da mídia e as relações de poder e manipulação em que essa mídia exerce papel condutor na sociedade.

É notório, e alguns depoimentos deixam claro, que o jornalismo no Brasil segue a linha política ideológica das empresas, que quanto maiores, mais conservadoras. Para aqueles que acompanham o papel dessa imprensa, o filme deixa uma sensação de que poderia ser mais enfático no desmascaramento da falsa imparcialidade dos grandes jornais, portais, TVs e rádios. O documentário carece de mais confronto entre o realizador e os seus entrevistados. O fato de Furtado optar por depoimentos curtos, pela agilidade com que alterna os depoimentos e pela introdução de trechos da peça em meio aos temas, tira o impacto dos assuntos abordados isoladamente e reforçam a intenção do diretor em ser plural na temática.

Como exemplo, a pluralidade excessiva de discursos e temas distintos evitam o aprofundamento em um tema capital: o fato dos grupos de mídia já serem, há tempos, um dos poderes constituídos dentro da sociedade, com uma força e uma legitimação similares aos poderes executivos, legislativos e o judiciário. Isso é mencionado superficialmente no filme, mas acaba por se perder ao ser posto de lado para novos temas, uma nova enxurrada de depoimentos e uma variação frenética entre os muitos depoentes.

Muito dessa diluição da profundidade dos debates no longa de Furtado vem dessa tendência no documentário de ser ágil demais, de fazer com que um excesso de depoimentos curtos se atropelem, o que não permite que os entrevistados desenvolvam com mais tempo suas idéias e opiniões e impede o cineasta de expor mais camadas e texturas na apresentação de determinados temas. A própria inclusão da peça não funciona muito bem em ‘Mercado de Notícias’. O texto fica diluído e não consegue interagir como confronto ou mesmo diálogo com o que é falado pelos jornalistas e com os temas propostos pelo diretor.

‘O Mercado de Notícias’ toca em temas espinhosos como a linha política defendida pelos grandes veículos de informação apesar da dita imparcialidade de seus discursos, a perseguição dos principais grupos de mídia ao governo do PT, os factóides que são transformados em notícia, a relação dúbia entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão e o papel da Internet na renovação da maneira como a notícia chega ao público. Mas faz isso de maneira panorâmica. Furtado não se esquiva desses temas, ao mesmo tempo em que não se aprofunda neles. Fica um gosto de que o filme poderia ser mais.

 

‘Amar, Beber e Cantar’, de Alain Resnais

Aimer, boire et chanterPor Fernando Oriente

Exatamente por Alain Resnais ser um dos maiores e mais fundamentais cineastas de todos os tempos, seu cinema já recebeu diversas análises e estudos. Já foram definidos elementos comuns a sua obra, características marcantes em seu estilo, da mesma forma como foram apontados temas recorrentes e enunciados e discursos comuns aos filmes do diretor. Tudo isso serve bem para abordarmos seu cinema. São colocações precisas, observações perspicazes e análises profundas e abertas a novas visões e leituras. Mas por mais correto que seja o vasto repertório crítico usado para definir Resnais, é impossível apreender a obra desse artista de forma total. É como se seus filmes permanecessem sempre como discursos em aberto; abertos ao cinema como arte total, aquela que implica em sua matéria todas as outras e ainda assim tem em sua linguagem particular os códigos mais complexos para se debruçar sobre o mundo e suas representações. Complexidade é um termo muitas vezes usado em análises críticas, em Resnais essa noção de complexidade chega próxima da definição mais completa do termo.

Resnais é sem dúvida, um cineasta da memória, do peso significante do que ocorreu em tempos passados. Ele trabalha na sobreposição e recolocação entre passado e presente, entre vários possíveis passados e as relações que esses têm com os desdobramentos do tempo, culminando sempre num tempo presente de incertezas. São fendas no tempo, dobraduras de épocas e experiências vividas que impulsionam a angústias e impossibilidades que seus personagens se encontram presos em um presente etéreo.

A fragmentação do tempo no cinema de Resnais reflete na estrutura labiríntica dos espaços em que seus filmes se desenvolvem. Tanto os espaços físicos, quanto os espaços temporais. Seus planos são fluxos de incertezas, carregam narrativas de muitas possibilidades, de constantes re-significações. A imagem em Resnais é impregnada pelas muitas texturas do tempo e da memória. Nunca são elementos de uma linearidade, a evolução da narrativa é sempre questionada, certezas não fazem parte de seu cinema.

‘Amar, Beber e Cantar’, último longa do diretor está inserido em todas essas análises. Por mais leve que seja a encenação, por mais que o humor e o tom farsesco imperem no filme, os questionamentos e elementos centrais da obra de Resnais estão presentes em todo o filme. Como sempre foi um artista inquieto, que buscou continuamente novos meios e linguagens para construir seu cinema, ‘Amar, Beber e Cantar’ pode ser colocado ao lado de alguns de seus mais recentes trabalhos, como ‘Melô’ (1986) ‘Smoking/No Smoking’ (1993), ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ (2006) e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’ (2012). Não só por se basearem em peças teatrais, mas também pelo uso do artificialismo nos cenários, o tom carregado das cores na fotografia, o cinismo na construção dramática e tom farsesco na encenação e no trabalho gestual e na presença cênica dos atores.

Em ‘Amar, Beber e Cantar’ temos seis personagens em cena, três casais. Mas o principal personagem nunca aparece. Ele é George, um conhecido comum aos seis, cada um com um grau de envolvimento diferente com ele ao longo de suas vidas. George, mais que um tipo dramático, é um agente desencadeador de conflitos. É ele quem traz toda a carga do tempo passado, das memórias de cada um dos seis. O peso do fora de quadro é elevado à força motora e matéria central do filme. Tanto que a maioria das cenas se passam em cenários artificiais que representam ambientes externos, jardins, fachadas de casas e estradas. O que está dentro das casas é mantido oculto, fora do quadro, assim como George e assim como as reais pulsões existências e desejos dos personagens. Mas sofisticação na encenação e na evolução do filme abrem brechas para o espectador penetre em frestas do interior dos personagens e componha um retrato do que esses tipos carregam dentro de si.

George representa o que foi vivido e, por contingências da vida, deixado de lado na existência de cada um dos personagens que vemos em cena. Ele é, para o seu melhor amigo, o exemplo do homem que não se vendeu, ele representa a possibilidade de felicidade sexual e a alegria de viver na irresponsabilidade para antiga namorada. Para sua ex-mulher, George personifica o elemento que traz de volta tudo o que de errado foi vivido no relacionamento, toda a frustração que foi uma vida conjunta que seguiu por caminhos imprevistos, mas que não encerram novas possibilidades de um recomeço. Para os que não o conheceram tão bem, ele representa uma força existencial que esses perderam com o tempo, ou mesmo nunca chegaram a pôr em prática.

George é o passado, é o tempo que foi e nele estão as imagens refletidas de cada um dos seis tipos que vemos em cena. Ele é a memória real, fantasiada ou imaginada do que eram suas vidas e, principalmente, do que eles mesmos poderiam ter sido. É a memória novamente como força avassaladora que guia o caminho e os dramas de Resnais. São as dobras de tempos passados que implicam o que o presente reflete nas inquietações dos personagens.

O fato de sabermos, logo no início do filme, que George tem apenas seis meses de vida é o fato que introduz seu personagem como agente central da dramaturgia do filme. A presença da morte, a ameaça da finitude retira o torpor e a aparente serenidade na vida dos três casais. Resnais usa uma mise-en-scéne carregada no duplo sentido que os gestos e as falas de seus atores implicam. É um falso tom de leveza na encenação (acentuado pelos movimentos e posicionamentos de câmera), um sarcasmo impregnado pelo diretor na construção das cenas que multiplica as camadas de absorção das tensões aparentemente leves e frugais que as imagens sugerem. No artificialismo e na desconstrução anti-naturalista Resnais tece camadas de interpretação e abre espaços para o espectador penetrar na relação dos personagens consigo mesmos e na carga memorial e temporal que trazem para as sequências.

Gilles Deleuze diz que Resnais cria “um cinema de filosofia, um cinema do pensamento”. Deleuze lembra que “Resnais sempre disse que o que lhe interessava era o mecanismo cerebral, o funcionamento mental, o processo de pensamento, e que era isso o verdadeiro elemento do cinema… o processo cerebral enquanto objeto e motor do cinema”.

Essa definição surge precisa em relação à construção fílmica de ‘Amar, Beber e Cantar’. Se a mise-en-scène de Resnais é calcada nos já mencionados tons de farsa, comédia sarcástica e anti-naturalismo cênico e gestual, esses recursos são capacitações de um pensamento cinematográfico cerebral, em que as implicações da encenação desvendam, enfatizam e potencializam os discursos e os comentários do cineasta diante da história e das emoções que compõem seu filme.

Um pequeno detalhe, quase ao final do filme, pode iluminar a relação que Resnais manteve durante décadas com seu trabalho como cineasta. Trata-se da cena em que o personagem de André Dussollier (um simples agricultor que casou com a ex-mulher de George) diz, após assistir a peça em que os personagens do filme encenam. “Eu prefiro cinema”.

Sim Resnais pode usar elementos de várias artes, como fez com o teatro em alguns de seus filmes, mas usa-os para enaltecer a força do cinema, a capacidade da encenação cinematográfica, aliada à decupagem e a evolução rítmica de um filme, bem como elementos básicos de enquadramento, movimentos e posicionamentos de câmera, fotografia, cenário e montagem.

Alain Resnais deixou uma obra cheia de filmes seminais, desde ‘Guernica’ (1950), ‘Noite e Neblina’ (1955), ‘O Ano Passado em Marienbad’ (1961), ‘Muriel’ (1963) e ‘Eu Te Amo, Eu te Amo’ (1968), passando por ‘Providence’ (1977), “A Vida É Um Romance’ (1983) e ‘Melô’, até ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’. Esteve sempre a frente de seu tempo como artista inovador e complexo, um cineasta-pensador, um intelectual que fazia da arte de construir filmes uma expressão complexa do estar no mundo. Fazia tudo isso com uma naturalidade proporcional a sofisticação de seus filmes.

Ou, nas palavras do próprio Resnais: “Se eu pudesse definir o cinema em duas palavras, eu diria reunião e frescor. Frescor porque o privilégio do cinema é se prestar à improvisação – mas para isso, é preciso ter tudo cuidadosamente preparado. Reunião, porque a invenção verdadeira está nas seqüências. Os detalhes não contam, a combinação é tudo”. Sem mais.

 

‘Do Leste’, de Chantal Akerman, 1993

chantal 1Por Fernando Oriente

 

Construir um encanto estético de 110 minutos, composto por planos estáticos e longos travelling diretos e sem nenhum diálogo é um feito que só pode ser atingido por cineastas do nível de Chantal Akerman, uma das maiores realizadoras do cinema europeu moderno. A beleza de ‘Do Leste’, filme lançado pela cineasta belga em 1993, é calcada naquilo que o cinema tem de mais autêntico, orgânico e visceral: o poder da imagem e a que patamar esse poder pode ser alavancado pelos recursos técnicos e criativos do artista.

O termo artista aqui empregado é fundamental para definir o trabalho de Chantal. Como afirma Fernando Watanabe em seu texto publicado no site Cinequanon, a obra de Akerman foge do campo restrito do cineasta e é, nas palavras de Watanabe, “movido por uma pulsão criativa de grande amplitude” que envolve noções que ampliam o fazer estritamente cinematográfico.

‘Do Leste’ é montado em cima de um rigoroso trabalho de tempo-espaço, em que a diretora decupa (escrutina, estuda) primorosamente as ações, situações e espaços que captura com a câmera. Os cenários, ambientes e figuras humanas compõem a dialética que estrutura o próprio conceito do filme. O registro de uma parte do mundo (o Leste Europeu), durante um momento histórico único, em que a passagem de uma esperança socialista fracassada para um futuro incerto provoca mais uma sensação angustiada de espera do que um furor reformista, é potencializado e traduzido em toda a sua textura pela beleza funcional que domina cada plano e cada quadro do longa.

Novamente é necessário citar o quanto a força discursiva das imagens é fundamental para a obra de Akerman. Ao longo se sua carreira, a diretora construiu filmes intensos em que as imagens são a força motora e a matéria central. Chantal prescinde de evoluções narrativas para enfatizar a força autônoma de seus planos, as possibilidades implícitas na absorção de um material imagético quase puro e como ele se relaciona com as percepções do espectador. Planos que muitas vezes se repetem e se atualizam dentro de mesmos cenários e ambientes. Os espaços e a implicação da ação/relação desses com o tempo é chave no cinema da diretora, bem como o tratamento que ela dá à geometria do quadro.

Esses elementos são notáveis em longas como ‘Do Leste’, ‘Hotel Monterey’(1972), ‘News From Home’ (1977), ‘Toute Une Nuit’ (1982), bem como no curta ‘Tombée de Nuit Sur Shanghai’, segmento do longa ‘O Estado do Mundo’ (2007), entre outros.

Em ‘Do Leste’, a ausência de diálogos e o registro de sons e ruídos diegéticos é um recurso que não só contextualiza o ambiente registrado, mas amplia o aspecto sensorial das imagens. O registro natural da luz, que a cada cena varia em intensidade, é mais um elemento de potencialização da complexidade imagética do longa. A luminosidade do quadro, tanto nas cenas diurnas quanto nas noturnas, é a sutil moldura que delimita o ambiente filmado, é o elemento que desvenda o mundo que vemos e que segue as ações e inações dos personagens que desfilam ou imobilizam-se diante da câmera de Chantal Akerman.

Acompanhamos pessoas que entram e saem da tela sem serem apresentadas, sem que tenham qualquer particularidade explicitada. Esses tipos são observados apenas como habitantes de um mundo que, embora seja o mesmo no qual vivemos, não é nosso espaço natural. Os percebemos da mesma forma que um observador mais atento repara naqueles que andam ao seu lado em um dia qualquer, mas nunca serão nada além de rostos em uma multidão de desconhecidos.

O que Akerman reafirma com suas imagens é a existência tangível dessas figuras humanas. São seus movimentos mecânicos, seus gestos banais, suas expressões faciais e toda uma gramática gestual e corporal que abrem espaço para as inúmeras possibilidades existenciais que eles representam. A captura quase poética dos espaços físicos torna ainda mais densa a materialidade dos locais filmado.

Longos planos-sequência, que desvendam o ambiente e a disposição física das pessoas nesse espaço, são intercalados por planos estáticos, em que o quadro é composto pelo conflito da imobilidade dos objetos com as ações corriqueiras dos tipos. O arrastar do tempo é sentido a cada sequência. É um tempo sensorial que marca a evolução de ‘Do Leste’.

Um detalhe que amplia mais ainda o desnudamento distante desse mundo em mutação é a presença de várias frases e palavras soltas que as pessoas emitem em suas línguas nativas, mas que não são traduzidas para nós. Esses elementos sonoros se somam aos sons diegéticos para dar mais corpo ao registro detalhista do espaço capturado.

Uma boa leitura desse recurso usado por Akerman foi feita pela curadora da mostra com todos os filmes da diretora que ocupou o Centro Cultural Banco do Brasil há alguns anos, Carla Maia, durante a primeira apresentação do longa em São Paulo. Carla compara a linguagem não traduzida dessas pessoas ao conceito de Robert Bresson de que os sons devem servir a um filme como música de cena. É exatamente esse ritmo, que chega próximo a um andamento musical, que conduz o espectador ao longo desse extraordinário ‘Do Leste’.

 

‘Vício Frenético’ de Werner Herzog, 2009

bad_lieutenantPor Fernando Oriente

Em “Vício Frenético” Werner Herzog consegue impregnar cada imagem com as texturas e as sensações que deseja transmitir, injeta sensorialmente em todos os planos e ainda tece seu discurso cínico e seus comentários ácidos. O espectador é transportado para um ambiente sórdido, sujo e onde não existem julgamentos morais.

Os acontecimentos se desenvolvem seguindo uma lógica própria, em que viradas do destino assentam o fadário dos personagens. Estamos em Nova Orleans após a tragédia do Katrina. A cidade feia e a beira do caos reflete o interior do protagonista, o tenente interpretado de forma over por Nicolas Cage. Novamente Herzog volta a enfocar o ser humano levado ao limite, forçado a reagir (ou apenas se deixar levar) à violência que o meio (o ambiente) exerce sobre ele.

Esses temas, tão caros ao cineasta, nos chegam de forma direta em “Vício Frenético”. A câmera de Herzog registra de dentro os tormentos e a alienação dopada do tenente Terence McDonagh. Segue o personagem em suas ações frenéticas e em sua descida ao inferno potencializando as relações entre ele e o ambiente que o cerca.

Constantemente sobre o efeito de todos os tipos de drogas, se arrastando entre atitudes desprovidas de ética, o tenente Terence conduz o espectador a esse mundo de valores falidos e constante angústia. Não existe espaço para ações edificantes. Mesmo quando segue o curso de seu trabalho, visando o cumprimento da lei e a punição dos infratores, o protagonista é apenas um reflexo de uma sociedade corrompida em que as boas intenções são apenas um detalhe no jogo da sobrevivência na selva urbana.

Herzog domina o material de seu ofício. As sequências são compostas com a precisa intenção de poluir as situações dramáticas com a sordidez do mundo encenado. A luz, muitas vezes excessivamente clara, suja ainda mais o quadro e revela as entranhas desse ambiente. As relações de Terence com os demais personagens são contaminadas por seus desvarios interiores. Vemos o mundo através da visão dele. Tudo nos parece fora de lugar, errado e mesmo assim acreditamos piamente que esse é o nosso mundo, que tudo o que está na tela está acontecendo na esquina mais próxima e em qualquer grande cidade do planeta.

Terence não é mau nem bom. Suas ações e reações são compostas como um simples estar no mundo. Ele não sabe qual é a verdade do que o cerca, não quer entender nada, apenas segue a diante. Os tipos à sua volta são tão tortos quanto ele. A naturalidade das ações dos personagens é outro ponto forte. A prostituta vivida pela estonteante Eva Mendes namora Terence sem que seu trabalho seja questionado na relação. A ternura entre os dois é sincera e não calculada, surge da necessidade de estar ao lado de alguém, mesmo que essa necessidade não seja algo nobre a ser buscado, apenas um remédio para a sobrevivência.

Os métodos do tenente, sua impaciência, obsessões e vícios são registrados por Herzog com naturalidade. A banalidade de suas vicissitudes serve para apimentar o cinismo do discurso do cineasta. Irônico, Herzog tinge diversas passagens do longa com um humor irresponsável que é pura refração da hipocrisia social que impera. A afirmação da essência distorcida de Terence, a consolidação de sua identidade é a crítica social direta e sem pieguice que o diretor faz.

Herzog despreza moralismos na mesma proporção de se sente desconfortável com os males do mundo. Ele não faz discursos panfletários, apenas registra de forma intensa o pulsar das coisas, a falta de direção dos seres e a incapacidade do Estado de oferecer qualquer mediação nesse processo. Tudo isso nos chega pela forma como Herzog penetra os ritmos e as sensações das experiências de seus personagens.

O pano de fundo de “Vício Frenético”, a cidade de Nova Orleans, a sociedade norte-americana e a calamidade provocada pelo Katrina, também fazem parte da sofisticação do discurso de Herzog. Desde o torpor das autoridades, o descaso com a população pobre (principalmente negros e imigrantes) e a alienação consumista da elite branca (os jovens atacados por Terence na saída de um clube noturno) fazem parte do material fílmico do longa sem que sejam elementos perturbadores da fluência e sim pequenos resíduos da realidade encenada.

Werner Herzog afirma não ter assistido ao “Vício Frenético” dirigido por Abel Ferrara em 1992. Embora seja mais um entre tantos ótimos trabalhos de Ferrara, o registro que Herzog usa em seu filme é totalmente distinto daquele usado pelo diretor americano nos anos 90. Enquanto Ferrara atirava seu protagonista em um turbilhão de sofrimentos e angustia em que culpa e redenção guiavam o desespero encenado, Herzog abusa do cinismo e da sujeira das imagens para tecer seus comentários ácidos e desprovidos de qualquer moralidade. Dois grandes cineastas e dois grandes filmes.

 

‘Jersey Boys’, de Clint Eastwood

JERSEY-BOYSPor Fernando Oriente

Que Clint Eastwood é um dos maiores cineastas da história do cinema americano já é um fato consumado. Clint faz cinema americano de primeira, carrega na matéria de seus filmes os elementos, a construção, o tratamento da narrativa, as variações emocionais, os temas, as formas e o mito da grande cinematografia dos Estados Unidos, além de uma reflexão e uma autocrítica típicas do cinema europeu, fonte na qual Clint também bebe.

É um diretor cinéfilo que usa o que aprendeu assistindo os grandes mestres de Hollywood, além de aplicar em sua obra o que viveu como ator dentro dos sets de cineastas como Don Siegel e do italiano Sergio Leone, entre outros. Toda essa gama de referências não impede Clint de ser um autor pessoal e original. Faz um cinema que os Estados Unidos andam meio carentes: cinema adulto.

Toda essa introdução para chegarmos a ‘Jersey Boys: em Busca da Música’, seu último longa. Nele Clint imprime suas marcas pessoais como a precisão e a beleza funcional dos enquadramentos, a modulação da dramaticidade por meio da decupagem das cenas e da montagem e a evolução acentuada narrativa em direção situações dramáticas que entram como uma aula do que um clímax pode ser dentro de uma estrutura narrativa de roteiro. Tudo isso em função e por meio de uma encenação que busca a emoção, a tensão entre os personagens, seus desejos, capacidades, impossibilidades e a realidade que os cerca.

‘Jersey Boys’ é um grande filme, um dos melhores de Clint nos últimos anos. Nele, a assinatura do diretor se faz notar em meio a referências e influencias de Vincente Minelli, Don Siegel, King Vidor e Nicholas Ray, entre outros. Como no cinema desses autores, bem como em toda sua obra, Clint busca a emoção, o potencial do homem como gerador de narrativas fortes e que carregam todo o conflito entre desejo, sucesso e frustração dentro de suas existências. O mundo, o cinema é o campo de embate entre os homens e seus impulsos, tudo moderado de forma austera pelos motores da vida e as limitações dos espaços e momentos históricos.

Em ‘Jersey Boys’, Clint trabalha as relações entre os personagens dando ênfase à cumplicidade, ao compromisso com o outro em meio a situações adversas. É um companheirismo similar ao dos westerns, a relação de fidelidade entre homens em que o compromisso supera os momentos mais improváveis para que se escolha pelo companheiro em detrimento aos benefícios e os riscos que as tensões e possibilidades externas podem oferecer. O ‘buddy film’ tão caro ao cinema americano é evocado por Clint de maneira orgânica dentro das relações entre os tipos que pretende imprimir no filme.

Clint faz uso preciso dos gêneros dentro do cinema. Seja o musical (de maneira periférica e pessoal) em ‘Jersey Boys’, o drama de conflito clássico em ‘Gran Torino’, ‘Sobre Meninos e Lobos’ e ‘Um Mundo Perfeito’, o faroeste em ‘Os Imperdoáveis’ e ‘O Cavaleiro Solitário’, o filme político em ‘Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal’, o melodrama em ‘Menina de Ouro’ ou o cinema de ação em ‘Rota Suicida’ e ‘Impacto Fulminante’.

A música é personagem de ‘Jersey Boys’, isso sem que o filme seja um musical tradicional. É necessária a precisão de um encenador como Eastwood para tornar isso possível sem cair em armadilhas sentimentalóides do uso de canções como manipulação simplista do emocional do espectador. A música tem o mesmo peso dramático de todos os outros personagens do filme e suas múltiplas texturas. Filmaço. E com direito a presença no elenco do mito Christopher Walken.

 

‘Em Busca de um Lugar Comum’, de Felippe Schultz Mussel

lugar comumPor Fernando Oriente

Entre as várias qualidades do documentário ‘Em Busca de um Lugar Comum’, de Felippe Schultz Mussel, uma se destaca de maneira acentuada. A montagem do filme atinge resultados notáveis. A imersão do longa nas favelas do Rio, guiada pelo registro de diversos grupos de estrangeiros durante o já famoso “turismo de favela” é potencializada pelas opções de edição em montagem paralela.

Esse paralelismo não é apenas na variação entre as sequências de cada um desses grupos, é, também, e principalmente, entre os discursos, os pontos de vistas, os subtextos e a interpretação dos espaços e das situações que surgem em meio a esses passeios de lazer nas comunidades carentes do Rio. São no conflito entre as vivências de cada um desses grupos e suas relações com os cenários, as diferentes posturas dos guias locais e as interpretações que surgem nas distintas situações que estão a grande força do documentário de Mussel.

O filme não julga seus personagens, sejam turistas, guias, operadores de empresas de turismos e moradores das comunidades. Essa distância moral que Mussel mantém de seus personagens permite que discursos dos mais distintos surjam de forma espontânea. Temos desde os que defendem as políticas agressivas e segregacionistas dos modelos UPP, passando pela visão arrogante e superior de estrangeiros orgulhosos de pertencerem a países ricos, a comiseração assistencialista dos turistas, o oportunismo dos operadores de agências de turismo que querem capitalizar em cima das carências das comunidades, o encantamento meio bobo de “gringos em meio a lugares exóticos” até guias locais que procuram ressaltar as reais desigualdades sociais do Brasil e enaltecer as inúmeras qualidades presentes nas comunidades.

Embora mantenha a distância crítica, Mussel constrói um filme com planos poderosos. As imagens e as escolhas dessas imagens dentro da decupagem engrandecem o desenvolvimento do filme e dão suporte estético à matéria central do filme. Os planos são pensados dentro de uma linguagem rigorosamente cinematográfica, o documentário não fica refém do cinema direto, é muito mais arejado e contemplativo, sem perder sua postura incisiva de debruçar-se sobre uma realidade que procura transportar para a tela.

Não existe imagem inocente, como diz Godard, e mesmo com a distância crítica que Mussel impõe ao longa, o diretor faz de seu filme um conciso e coerente comentário sobre as diferenças sociais do país, a exploração da pobreza como atração para turistas em busca de uma aventura em meio ao exotismo terceiro-mundista e a ausência no espaço público de um real debate sobre caminhos para se integrar as comunidades à vida social de um país que cresce sem saber muito por onde e nem para quem.

‘Em Busca de um Lugar Comum’ é cinema político complexo e moderno, sem dogmas, moralismos ou discursos prontos. Faz da estética uma ferramenta de discussão sociopolítica e do cinema um espaço para se levantar questões e explorar conflitos que muitas vezes são diluídos na explosão audiovisual capenga que toma conta dos principais canais de comunicação do país. Um documentário mais do que obrigatório, não para entender o país, mas para se pensar sobre ele.

 

‘Riocorrente’, de Paulo Sacramento

RiocorrentePor Fernando Oriente

Existe uma força geradora em ‘Riocorrente’: a cidade de São Paulo. Essa força, em expansão como um dos textos lidos no filme menciona, gera os dramas, as situações e os próprios personagens. A cidade é mais forte que os tipos, as pessoas que vemos na tela são produtos de São Paulo, são suas crias. Existem por causa da metrópole e estão subordinados a ela.

‘Riocorrente’ é um filme sensorial, sua encenação impõe ao espectador uma matéria fílmica ancorada em sensações, emoções, tensões e angústias transmutadas em imagens. Os quatro personagens do longa são compostos por fragmentos emocionais, vivem um presente caótico que arrasta atrás dele um passado cheio de rupturas, de impossibilidades de ser, de frustrações. Os tipos são apenas micro organismos de um enorme corpo urbano. São estilhaços cheios de energia reprimida que, unidos a milhões de outras pessoas, concreto, asfalto, ferro e poeira, compõe o todo que é a cidade de São Paulo.

O filme é formado por situações isoladas, por pequenos eventos na vida dos quatro personagens. A evolução em elipses e a fragmentação da narrativa são combinadas com muita propriedade pela montagem de Sacramento e Idê Lacreta. A força sensorial do filme vem das sensações que essa fragmentação propõe. Mas existe uma continuidade forte em ‘Riocorrente’, a crescente tensão que acompanha todo o filme. Tudo o que vemos na tela, as cenas que se sucedem, as idas e vindas entre os personagens, vão compondo um angústia que prenuncia uma explosão. Algo está sempre prestes a entrar em ebulição. A cidade e seus personagens não conseguem mais reprimir a violência que alimenta seus conflitos internos.

Sacramento dá muito importância aos simbolismos em ‘Riocorrente’. As alegorias, o anti-naturalismo de diversas situações fantásticas que aparecem ao longo do filme servem para o diretor reforçar seu discurso. Imagens como um leão enjaulado no meio da cidade, uma garrafa de água que se transforma em coquetel molotov e põe fogo em uma banca de jornal, uma montanha russa que acompanha em montagem paralela a masturbação da personagem, motos em um globo da morte, uma cabeça que pega fogo e o rio Tietê em chamas são expressões visuais poderosas dos sentimentos e das impressões que o filme procura.

A própria atuação dos atores tem muito dessa representação alegórica de sensações. Muitas vezes eles surgem no limite do caricatural, mas é exatamente essa caricatura como representação simbólica que Sacramento busca por meio de seus tipos. Eles representam diferentes características do paulistano contemporâneo. A opção pela vida à margem da sociedade, o refugio na intelectualidade e na valorização da arte, a entrega ao sexo como válvula de escape da opressão, o inconformismo reprimido que impõe uma incapacidade de agir, a solidão compulsória a que todos são condenados. E, principalmente, um mal estar impossível de ser aliviado.

O som no filme atua como um dos protagonistas. ‘Riocorrente’ capta e joga sobre o espectador toda uma variedade de ruídos e de barulhos. Não existem silêncios, a banda sonora é sempre preenchida por rumores, por uma agressiva invasão auditiva dos espaços.

Sacramento não está preocupado em contar uma história linear, ele faz de seu filme um registro emocional de um estado de espírito que capta as pulsões urgentes do momento atual de uma cidade como São Paulo e de seus habitantes. É um discurso sobre o tempo presente, sobre a incapacidade de se chegar a conclusões e a ausência de solução para o viver na metrópole.

‘Riocorrente’ alterna constantemente as ações entre os personagens. O filme corta de um para o outro de forma seca. Isso está longe do esquematismo que engessa a evolução de muitos filmes. No longa de Sacramento, essa alternância reforça o caráter tenso de seu discurso. A variação entre os tipos serve como força propulsora do mal estar e das emoções dilaceradas que o filme procura retratar.

A personagem de Simone Iliescu vive um triângulo amoroso com tipos bem diferentes, mas muito próximos em suas angústias. Ela serve de elo entre os dois, mas ganha cada vez mais importância sozinha, independente de seus dois amantes. A opressão emocional não poupa ninguém. A cidade cobra o preço de seus habitantes por fazerem parte de seu corpo orgânico. Todos dividem a mesma sensação de que estão próximos a entrar em colapso.

Exu, um menino de rua que é cuidado por Carlos, o personagem marginal de Lee Taylor, é o mais sólido emocionalmente de todos os tipos. Ele aparece em movimento constante pelas ruas de São Paulo, se desloca sem destino certo; é como se estivesse correndo dentro das veias da cidade. Sua expressão fria remete a um controle existencial que nenhum dos outros personagens tem. Ele possui um poder de existir legitimamente dentro do espaço urbano, é livre em relação tensões e preocupações que consomem os outros tipos.

‘Riocorrente’ usa muito bem ícones paulistanos. Além do registro pessoal que Sacramento faz da cidade, seus pequenos e amplos espaços e a autenticidade com que isso surge na tela, o filme conta com a participação da Patife Band e de Arnaldo Baptista. Suas músicas, bem como suas presenças, remetem a uma São Paulo dos anos 60, 70 e 80 que está em constante relação dialética com o momento atual. São elementos que se desenvolveram dentro do crescimento ininterrupto da metrópole e que ajudam a decifrar um pouco essa São Paulo.

O filme de Paulo Sacramento, com impressionante fotografia de Aloysio Raulino, recupera uma das melhores características dos grandes filmes da Boca do Lixo, as texturas da cidade na tela, a relação orgânica entre o cinema e os espaços urbanos. Todos os planos de ‘Riocorrente’ estão impregnados das imperfeições, do caos, dos ruídos, da opressão e da sujeira de São Paulo. E, mesmo assim, a cidade aparece imponente, com uma beleza ameaçadora dentro de sua desordem.

O longa dialoga com qualquer espectador, mas nós paulistanos somos atingidos por ele com uma intensidade ainda maior, gerada no processo de identificação, nas sensações de espelhamento a que o filme remete quem faz parte dessa cidade.

 

‘Rio em Chamas’

Por Fernando Oriente

Um longa coletivo, que utiliza uma grande quantidade de imagens das mais variadas origens e captadas nos mais deferentes formatos, em resoluções que vão de baixíssimos registros de câmeras celulares às imagens em HD de câmeras profissionais. Todo esse rico universo imagético em função de discursos distintos em relação aos protestos e as manifestações de rua que tomam conta do Brasil desde junho de 2013 até os dias de hoje.

‘Rio em Chamas’ é tudo isso, uma colagem de imagens e segmentos em que câmeras presentes no meio dos acontecimentos e das ações registram uma indignação popular contra uma série de fatores que mantém a grande maioria do povo excluído dos processos democráticos do país e reféns de péssimos serviços sócias oferecidos por governos municipais, estaduais e federal incapazes de atenderem a essas demandas.

‘Rio em Chamas’ é um filme político, um filme urgente, um filme manifesto em que o centro de tudo é os corpos de manifestantes em conflito físico com policiais e forças de segurança. Esses corpos e seus embates materiais com as forças de repressão formam o discurso ideológico que pauta as manifestações. É na materialidade desses corpos em movimento, que se unem, que marcham na mesma direção, que apanham e são agredidos, fogem e se reagrupam para continuarem suas marchas em direção ao que reivindicam que está a grande força de ‘Rio em Chamas, um filme de e sobre corpos (e mentes) em movimento.

O filme tem uma montagem aberta, em que fragmentos formam uma unidade e compõem um painel dessas lutas de rua. É um filme livre, que se constrói na cabeça do espectador, que forma um todo, um discurso multifacetado que não explica, mas que denuncia, aponta caminhos e levanta questões sobre as urgências de um país em ebulição, mesmo que ainda, felizmente, não exista um consenso em torno das prioridades dessas reivindicações.

Existe um eixo comum em todo o longa: a brutalidade, a violência e o desrespeito da polícia e das forças de segurança em relação à população. As imagens das agressões e do barbarismo com que essa polícia ataca manifestantes e cidadãos em geral é tônica em ‘Rio em Chamas’, Se existe um discurso que se sobressai no filme é a necessidade de um basta às ações nefastas das PMs, a urgência de se mudar a postura e os mecanismos de ação das nossas forças de segurança.

As sequenciais ficcionais de ‘Rio em Chamas’, bem como os depoimentos, pontuam de maneira inteligente as imagens documentais e reforçam os discursos e os intertextos do filme. Embora o filme não se debruce muito sobre as pautas conservadoras e um certo golpismo de direita que se misturou de forma oportunista aos protestos, em nenhum momento isso é escondido do espectador e chega a ser mencionado em imagens e depoimentos ao longo do filme.

Em ‘Rio em Chamas’ temos cinema de guerrilha (no melhor sentido do termo), cinéma verité, cinema direto e muito mais, Mas temos principalmente um desejo sincero de se fazer um discurso sólido em imagens, uma vontade de cinema aliada a uma necessidade de mostrar de forma independente um momento crucial na história do Brasil e quem vem sendo escrito com corpos, idéias, sangue e muita vontade política nesse exato momento. Ninguém sabe quantos movimentos, quais todas as causas e lutas que estão sendo colocadas nas ruas. O filme, bem como o espectador ao final da sessão, aguarda os desfechos dessa nova onda que toma conta do país.

Por esses e muitos outros motivos, ‘Rio em Chamas’ é um filme que tem que ser visto e revisto com urgência, para que possamos sempre voltar a ele sob as luzes dos acontecimentos futuros.

link para ‘Rio em Chamas’ completo: http://vimeo.com/88130053

 

‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’, de Glauber Rocha, 1969

antonio das mortesPor Fernando Oriente

‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreio’, que deu a Glauber o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes de 1969, é um longa em que o cineasta baiano utiliza e revisa inúmeros elementos da estética cinema-novista. É uma obra fundamental, onde a urgência daquilo que Glauber via como cinema revolucionário (tanto em sua forma como em seu conteúdo) é sentida em alta voltagem, dentro de um jorro cinematográfico em que ele transforma o filme. Ao mesmo tempo, é um dos trabalhos em que o cineasta procura se comunicar com um público amplo, por isso muitos apontam ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’ como o seu filme mais popular.

O longa transporta para a tela representações de tipos característicos do sertão nordestino, meio no qual Glauber procura incorporar aspectos primários da cultura popular brasileira. Temos o coronel reacionário, literalmente cego em seu apreço à propriedade da terra e forjado em valores de indiferença diante da miséria que o cerca. Ele é um típico representante da minúscula oligarquia que impõe há séculos a pobreza e o subdesenvolvimento ao nordeste do país, e que serviu de molde para o comportamento tão característico e ainda muito atual presente nas elites brasileiras. Ao lado do coronel temos outro representante do poder: o jovem capitalista interpretado por Hugo Carvana, que carrega as crenças no desenvolvimento brasileiro propagado pelos milicos da ditadura. Eram pessoas que viam o Brasil como um local de inúmeras possibilidades para uma modernização sectária calcada no dinheiro dos Estados Unidos e na manutenção do poder econômico na mão de poucos, enquanto o restante da população era relegada à condição de pobreza e fome.

O povo é composto por uma massa de desesperados, entregue ao misticismo religioso e à crença no poder vingador e no potencial revolucionário dos cangaceiros. O cangaço é representado por um herdeiro de Lampião e Corisco que promete a redenção dos sertanejos calcada na violência de resistência à situação vigente e aos códigos de exclusão do sertão. Em meio a esses tipos temos ainda a representação da santa e do negro guerreiro, além do intelectual de esquerda (um professor vivido por Othon Bastos) corroído pela impossibilidade de agir, desiludido e entregue ao sarcasmo.

Mas a principal presença em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreio’ é a de Antonio das Mortes, o mais temido dos jagunços. Personagem mítico vivido por Maurício do Valle e que apareceu pela primeira na vez nas telas em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964). Antonio das Mortes é um personagem gerado e criado pelo sertão e por seu folclore; é um tipo autenticamente brasileiro. Ele possui seus próprios códigos de conduta, carrega suas crenças e é dotado de um misticismo particular. Suas ações são pautadas pela necessidade de interferir naquela sociedade para impor os valores que acredita. A violência é natural e atávica nele, é uma forma pura de se manifestar e de tentar moldar o mundo a sua volta com suas crenças e seu senso ético. Como a moral é abstrata e subjetiva, Antonio das Mortes age para fazer valer o seu conceito moral.

Antonio das Mortes entra em cena logo no primeiro plano do filme. Com a câmera fixa, ele ingressa e sai de quadro atirando com seu rifle, em seguida entra em cena um cangaceiro ferido por ele, que agoniza e cai sem vida no solo seco do sertão. Essa violência nasce de outra violência: a miséria social que impera no universo sertanejo, no Brasil profundo.

Glauber trabalha no anti-naturalismo e impõe uma dialética entre mito, miséria, representações de poder e o inconsciente. O diretor cria representações e parábolas por meio de imagens e situações muitas vezes barrocas e contrapõe aspectos míticos e metafísicos em meio à religiosidade, devaneios e delírios. Tudo isso é jogado em contato direto com o cotidiano ordinário e material da pobreza. Esse cenário é potencializado pela fotografia de Affonso Beato, onde prevalece uma luz chapada que inunda o espaço de uma intensa claridade que sufoca os personagens e o ambiente seco e poeirento.

Em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreio’ temos a continuidade da jornada constitutiva do personagem Antonio das Mortes, que teve início em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. Ele percebe, ou melhor, assimila pela primeira vez, o sofrimento dos sertanejos quando acompanha a agonia do cangaceiro que matou. A dor daquele homem, bem como a de toda a comunidade pela qual ele lutou, faz o jagunço entrar em algo próximo a um processo de culpa e até mesmo remorso.

Após ter matado mais de 100 cangaceiros em sua vida, ter sempre lutado ao lado dos ricos contra os pobres como lhe diz o moribundo que ele acaba de ferir de morte, Antonio decide usar a mesma a violência que sempre regeu suas ações para impor o que começa a acreditar que é o certo.

Nessa sua nova cruzada ele contará com a ajuda do professor vivido por Othon Bastos, que vê nessa situação a oportunidade de transcender suas idéias em atos. Nesse momento de nova lucidez, Antonio das Mortes afirma com convicção: “Deus fez o mundo e o diabo o arame farpado”.

Mas ao final dessa nova jornada, o jagunço volta a sair de cena com a mesma amargura de sempre, continuará um condenado da brutalidade que o alimenta e o cerca, vivendo à margem; não há redenção possível para ele.

A montagem de ‘O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro’ merece destaque. Os cortes ao longo do filme são primorosos na separação dos planos que dividem os focos das ações dramáticas. Glauber utiliza-se muito bem de pequenas elipses que avançam e recuam em meio ao desenvolvimento narrativo.

A mise-en-scéne é baseada em uma composição que trabalha a totalidade do quadro. Glauber compõe com igual cuidado os planos de fundo, primeiro plano e planos intermediários, além das bordas dos enquadramentos. Isso permite a divisão da ação na mesma cena sem a necessidade de cortes e garante um movimento constante por meio do deslocamento dos personagens e do uso da câmara na mão.

A música e o som também são elementos fortes em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreio”. Muitos discursos passam da boca dos personagens para a banda sonora que embala as cenas seguintes, as palavras transcendem os personagens que as estão proferindo e suportam um discurso maior, que serve de ilustração para o contexto geral dos dramas. As canções não-diegéticas são usadas para comentar e ilustrar acontecimentos, sentimentos e sensações.

Outro aspecto singular no longa é o tratamento da sexualidade. Ela é forte ao mesmo tempo em que é latente e reprimida nos personagens. Quando essa sexualidade vem à tona (ou melhor, tem necessidade de ser exposta) ela surge como um grito de desespero, que também é na miséria da realidade retratada no filme. É o desespero e as necessidades da carne que assumem aspectos materiais no cinema de Glauber, tornam-se elementos sensíveis e não apenas representações narrativas. Essas situações surgem de forma muito intensa graças à atuação de todo o elenco, que como em todos os filmes do diretor, mostra total entrega ao projeto.

O cinema de Glauber é uma busca constante pelo ato revolucionário dentro de seu próprio fazer, na essência de sua matéria. Essa estética revolucionária era a força motora de sua obra. Palavras do próprio Glauber ajudam a definir seu discurso cinematográfico: “O cinema revolucionário é sempre melhor que o cinema reacionário”.

‘Os Contos de Canterbury’, de Pier Paolo Pasolini, 1972

Por Fernando Oriente

A aparente simplicidade das narrativas soltas que compõe “Os Contos de Canterbury” (1972) é a matéria dramática que Pier Paolo Pasolini usa para desenvolver um tratado de celebração da vida por meio de seus prazeres, desejos, conflitos e imperfeições. Nesse processo está presente uma contundentenegação crítica do moralismo reacionário que tanto o incomodava. Assim como nos outros dois longas que compõem a “Trilogia da Vida” (“Decameron”, de 1971 e “As Mil e Uma Noites”, de 1974) o cineasta italiano trabalha a poética visual, a liberdade de encenação e o sentido dos planos para enaltecer o homem em suas características mais humanas, instintivas e elementares.

Existe em “Os Contos de Canterbury” uma afirmação do prazer e da alegria, aliadas a uma celebração positiva do sexo, do corpo e das pequenas ambições e suas satisfações imediatas. Para Pasolini, esses elementos são fundamentais para consolidação do eu; são, ao mesmo tempo, alimento para o espírito e para o corpo.

A crítica do diretor em relação à sociedade da época (os anos 70 na Europa), e que se torna ainda mais atual nos dias de hoje, vem do conflito entre a visão visceral e autêntica de mundo que ele encena e a vulgarização da auto-exposição asséptica e do voyeurismo covarde e de recalque puritano que domina nossa sociedade.

Com uma mis-en-scene ancorada na liberdade de construção dos planos e de decupagem, com uma câmera leve e solta e com uma composição de quadro em que o movimento constante dentro do plano dialoga com a movimentação da câmera e a variação de ângulos proposta pelas mudanças de posicionamento da câmera após cada corte, Pasolini aborda o sexo, o prazer e a cobiça, bem como as inter-relações dos personagens com uma naturalidade objetiva que destaca o ser humano como tipos imperfeitos em busca de felicidade, gozo e liberdade. É a forma sustentando a matéria de maneira orgânica dentro dos processos de encenação.

O desenrolar das ações em um tempo passado (com impressionante apuro e bom gosto na direção de arte), livre de códigos de conduta ditos racionais, amplia o potencial da retórica do diretor.

Outro aspecto que estende ainda mais a força de “Os Contos de Canterbury” é o trabalho de montagem. A união entre os contos dá-se de maneira sutil (ao mesmo tempo em que direta e imediata), em que o espectador é levado espontaneamente de um relato a outro sem que a fruição do longa perca o ritmo.

Essa desafetação das cenas esconde um aprimorado trabalho de encenação que mergulha no registro da sensualidade, do prazer e do descompromisso moral das ações. Como Pasolini sabe que a moral é abstrata e subjetiva, faz com que as atitudes de seus personagens sejam comandadas por impulsos, sem amarras conservadoras ou respeito a códigos de conduta castradores.

Os personagens que surgem e desaparecem ao longo de ‘Os Contos de Canterbury’ são tipos humanos instintivos, viscerais em sua ligação orgânica com a força de seus desejos e impulsos imediatos. Agem e têm suas presenças físicas e emocionais constituídas por meio do caráter cru desses seus instintos.

No desenrolar natural de suas existências, na fluência de suas vidas, esses instintos básicos estão sempre em conflito com códigos e regras de repressão, sejam eles sociais, de classe e de casta, regidos por uma ordem moral repressiva, imposta por conjunturas pré estabelecidas que são a base essencial dos mecanismos de exclusão do mundo.

Em Pasolini, viver em direção a uma possível liberdade existencial é assumir esse conflito e tentar superar, guiado pela força do desejo bruto gerado no instinto, essa obstrução em busca dos objetos e da realização dos prazeres sensoriais do desejo. Viver é se auto-afirmar por meio e dentro das estruturas do próprio conflito.

São as imperfeições humanas e a noção dessa limitação que permite aos tipos a consolidação do encanto e o acesso à alegria da existência. O moralismo existe, no universo de “Os Contos de Canterbury”, para ser superado, enganado e ter suas imposições e regras implodidas pela liberdade de agir do ser humano. É uma certa imoralidade que desafia de forma quase heróica, ao mesmo tempo que natural, esses valores moralistas tortos.

Ao filmar a essência instintiva da vida, Pasolini critica o artificialismo e o consumismo higiênico (no sentido daquele que apreende tudo aquilo que se pode adquirir dentro das normas de alienação segura do consumo da mercadoria). Os personagens nunca são julgados; seus esquemas, artimanhas e pequenos delitos são vistos com distanciamento conivente, em que a busca da felicidade e a consumação do desejo dão autenticidade as ações.

É essa postura afirmativa de Pasolini que o tornou um dos artistas mais “humanos”, libertários e, ao mesmo tempo, críticos da história do cinema. Da mesma forma que dava liberdade aos tipos comuns, condenava de forma impiedosa os estratos sociais que tanto desprezava (a burguesia em “Teorema” e “Pocilga” e os conservadores fascistas em “Saló”)

O sexo, elemento fundamental em toda a “Trilogia da Vida” é o oposto do que vemos na sociedade do espetáculo que domina o mundo. É livre do aspecto marqueteiro e artificialista, em que a exibição dos corpos de laboratório mecanizada em repetições em série (em que gestos e expressões ditas sensuais dominam a cena) revela simulacros de intimidade que recalcam qualquer tentativa de autodeterminação da sexualidade.

Em “Os Contos de Canterbury” o sexo e o gozo (filmados de maneira direta e objetiva) são um exercício libertário e verdadeiro, são atos políticos; a exibição dos corpos nus é fonte de prazer tanto para os que se desnudam como para os que observam. A leveza e a sinceridade do erotismo conduzem as cenas.

As imagens de Pasolini são uma expressão poética de uma realidade pretendida pelo cineasta. Ele extrai poesia das sensações de prazer e alegria dentro de uma visão subjetiva da vida. São possibilidades de significação do real trabalhadas pelo olhar e pela sensibilidade do autor. A obra de Pasolini é sempre uma analise particular de uma realidade possível, em que a recusa do cinema verdade e do naturalismo vem carregada e contraposta pela poesia material da imagem e dos significados amplos que caracterizam seu trabalho singular de construção cinematográfica.

O marxismo de Pasolini está presente ao logo do filme, principalmente na crença que o cineasta sustenta nas potencialidades do homem como agentes políticos e em sua visão terna em relação às características essencialmente humanas de seus personagens. Um marxismo livre de dogmas, discursos didáticos e revisionismos, em que a equidade (e a busca dessa equidade) entre das pessoas articulam e pontuam suas ações.

É interessante notar como cada um dos filmes da “Trilogia da Vida” possui características particulares no seu aspecto formal, embora os três longas componham um todo coerente com os movimentos internos que sustentam o tríptico. Desde as tonalidades de cor, passando pela intensidade da luz até a maneira como Pasolini traduz para a mis-en-scene alguns detalhes da dramaturgia de cada um dos textos clássicos que filma. Essas pequenas e admiráveis diferenças fazem com que cada obra tenha um fôlego próprio que as sustentam de forma independente, mas que quando unidas no conceito central do projeto, ganham ainda mais poder de conjunto.

 

Sobre ‘Vontade Indômita’ (The Fountainhead), de King Vidor, 1949

Por Fernando Oriente

Um dos principais problemas da crítica é quando deixamos o ideal, os conceitos e as propostas políticas interferirem no julgamento de uma obra. Como uma pessoa abertamente de esquerda (no sentido socialista do termo), quando me deparo com filmes cuja matéria constituinte é composta por discursos de direita, mas cuja qualidade fílmica é notável, em termos formais, estéticos e de constituição dramática, minha admiração por tais filmes é incapaz de ser abalada. Logicamente que existe um limite ético que me impede de apreciar um cinema que tem na abjeção reacionária seu principal meio de existir e se expressar.

Coloco isso para falar de ‘Vontade Indômita’ (The Fountainhead), que King Vidor dirigiu em 1949. O filme é um esplendor cinematográfico, um dos mais extraordinários trabalhos de decupagem e encenação já registrados.

Cada cena é contaminada por uma força avassaladora, confeccionada por meio de uma mise-en-scéne que articula todos os detalhes, desde os posicionamentos primorosos de câmera, passando pela composição dos quadros e as modulações dos dramas, até a marcação e as inter-relações da narrativa com os espaços cênicos.

Tudo encadeado em um ritmo ágil e em uma evolução da montagem que reafirmam as propostas dramáticas por meio de uma sucessão veloz das situações narrativas, com ênfase em suas reviravoltas, elipses e conclusões.

‘Vontade Indômita’ é conduzido inteiramente em função e em defesa de um discurso, em que as idéias liberais e a justificação do individualismo empreendedor e artístico do protagonista são ancoradas por meio das construções de cena e do desenrolar narrativo. É um longa que assume claramente o partido de seu protagonista e suas ideias e usa todos os elementos cinematográficos na construção dessa retórica partidária. Um filme de ideologia.

Existe em cada sequência um cuidado em modular a dramaticidade da narrativa em função da defesa que Vidor faz desse discurso. A mise-en-scène trabalha para potencializar os objetivos e os ideais do arquiteto visionário. Trata-se de um filme que se apropria e enaltece seu objeto discursivo com todos os meios possíveis, uma obra que existe para sublimar uma posição político-social incorporada no personagem central.

Em meio a esse processo, é fundamental o papel que o dono do jornal exerce. Ele, que vinha de uma vida de desprezo pelo ser humano, encontra a redenção ao assumir os riscos e tomar as ações que o levam a defender, contra tudo e contra todos, o arquiteto. Ao se redimir, encontra um caminho de salvação existencial bem como uma função prática na imposição do ideário libertário e individualista que o filme abraça.

A geometria dos quadros, com a relação entre os ângulos e movimentos de câmera, a profundidade de campo e os posicionamentos e marcações de cena, tende a dar destaque presencial e moral ao personagem de Gary Cooper, seja em relação aos demais tipos no quadro, bem como em sua relação com os espaços cênicos. A forma do filme sempre destaca sua presença e glorifica suas atitudes em cena.

As relações do personagem com tudo o que o cerca, seja com a mulher que ama, seus projetos profissionais e suas ambições como arquiteto criador são ampliadas no processo da evolução narrativa, com notável destaque à força que as acentuadas elipses imprimem desenrolar da história. Por mais percalços que seu personagem enfrente, sua postura irá levá-lo obstinadamente em direção aos seus objetivos. O filme existe para garantir esse trajeto.

A decupagem em ‘Vontade Indômita’ oferece algumas das cenas mais marcantes do cinema clássico americano. A cena em que o personagem de Gary Cooper faz a defesa de seus ideais e ações no tribunal deveria ser estudada em escolas e cursos de cinema. Como um cineasta pode tirar o máximo de um discurso e transformá-lo em matéria cinematográfica pura, em todo seu potencial estético.

A cena final, com a personagem de Patricia Neal subindo dentro de um andaime em direção a um Gary Cooper parado no topo de um arranha-céu em construção, é outro momento monumental no filme. Uma sequência em que se sobressaem as escolhas de Vidor na construção dos planos (uma variação primorosa entre campo e contra-campo, entre plongê e contra-plongês) em função de uma decupagem que enaltece a força o discurso do filme ao mesmo tempo em que compõe uma conclusão extremamente impactante.

King Vidor é um dos maiores encenadores que o cinema já teve. Seus filmes mudos, como ‘O Grande Desfile’, de 1925 e ‘A Turba’, de 1928 estão entre os grandes longas realizados no período. Após a passagem ao som, e com os novos elementos desenvolvidos para a mise-en-scène, Vidor se aperfeiçoou ainda mais em obras como ‘Mãe Redentora’, de 1937 e ‘Duelo ao Sol’, de 1946. Mas talvez seja nesse ‘Vontade Indômita’ que o diretor tenha atingido seu ápice como realizador.

‘Vontade Indômita’ é um filme que defende o liberalismo individualista de direita ao mesmo tempo em que argumenta a favor da liberdade da criação artística. E um caso perfeito que demonstra como um longa pode defender conceitos totalmente contrários as minhas crenças políticas (ser de direita, no caso) e mesmo assim ser um filme primoroso. Impressionante.

Três próximas estreias e um filme de Aldrich

Por Fernando Oriente

Ao longo dos próximos meses teremos três estreias de peso no circuito cinematográfico, pelo menos em São Paulo e no Rio. Três filmes bem diferentes entre si em quase tudo, mas com um fator fundamental em comum: um trabalho notável de mise-en-scène. ‘Riocorrente’, de Paulo Sacramento, ‘A Imigrante’, de James Gray e ‘Expresso do Amanhã’, infeliz título brasileiro para ‘Snowpiercer’ do sul-coreano Bong Joon-Ho.

‘Riocorrente’, de Paulo Sacramento

Paulo Sacramento chega ao seu primeiro longa de ficção depois de ter assinado a direção do documentário ‘O Prisioneiro da Grade de Ferro’ (2003), um dos melhores filmes brasileiros das últimas décadas. Sacramento tem no currículo um trabalho primoroso como montador e produtor. Ou seja, apesar da juventude, ele já é um nome de peso dentro do bom cinema praticado no país.

‘Riocorrente’ é um murro na cara do espectador. Um filme denso ao extremo, construído em cima de uma tensão extrema e sensorial, potencializada pela força e o vigor da encenação de Sacramento, do trabalho ímpar de fotografia do saudoso Aloysio Raulino e de uma montagem asfixiante.

Atualíssimo, ‘Riocorrente’ usa a cidade de São Paulo como personagem, agente encadeador dos dramas e cenário labiríntico e repressivo, Os três personagens principais, mais o menino de rua (talvez o mais importante dos tipos dramáticos), têm suas histórias e tormentos interligados e dilatados dentro de um espaço claustrofóbico de uma cidade em constante ameaça de ebulição. Para o público paulistano, em especial, ‘Riocorrente’ dialoga diretamente com as vísceras.

‘A Imigrante’, de James Gray

James Gray é, provavelmente, o melhor cineasta norte-americano surgido nos últimos vinte anos. Seus longas anteriores, ‘The Yards’ (2000), ‘Os Donos da Noite’ (2007) e ‘Amantes’, (2008) estão entre os grandes lançamentos dos anos 2000.

Em ‘A Imigrante’, temos mais uma vez o primoroso trabalho de encenação, composição de quadro e construção de planos tão típicos do cinema de Gray, que por meio desses recursos encena seus dramas em um nível de intensidade raramente atingido no cinema. Em seu novo filme, essa densidade dramática interage de maneira enfática com os fortes elementos de melodrama presentes na matéria constitutiva do longa.

Os personagens de James Gray são trabalhados minuciosamente em relação à exploração e desnudamento de suas muitas camadas dramáticas. A relação entre os tipos com o ambiente que os cercam é sempre um destaque a parte nos filmes do diretor. ‘A Imigrante’ é uma comprovação desse enorme talento de Gray e já está, tranquilamente, garantido na lista dos melhores filmes lançados no cinema nesse ano de 2014.

‘Expresso do Amanhã’, de Bong Joon-Ho

Se em ‘Memórias de um Assassino’ (2003), Bong Joon-Ho já mostrava seu talento mesmo em um filme limitado, foi com ‘O Hospedeiro’ (2006) e ‘Mother’ (2009) que o cineasta deixou claro que é o melhor diretor dentre todos os badalados realizadores de cinema de gênero surgidos na Coréia do Sul nos últimos anos. É muito importante deixar bem claro que o cinema de Bong é muito diferente do feito pelo melhor cineasta sul-coreano de todos, o genial Hong Sang-Soo.

‘Expresso do Amanhã’ é a primeira produção internacional assinada por Bong. Com atores americanos, ingleses e coreanos, falado em inglês e baseado em uma história em quadrinhos francesa, o filme é uma ficção científica pós-apocalipse, encenada quase que exclusivamente dentro de um trem.

Aqui temos a capacidade de imprimir ritmo, tensão ininterrupta e evolução precisa da narrativa de Bong Joon-Ho. Tudo isso por meio de uma mise-en-scène vigorosa e um cuidado em imprimir densidade e função dramática para a relação entre os tipos em meio a situações extremas.

Em ‘Expresso do Amanhã’, Bong usa a limitação dos espaços a seu favor para compor a geometria, o ritmo e a visceralidade das ações. Existem usos muito bons do foco, da profundidade de campo e do slow-motion. O longa é um thriller vigoroso cheio de referências e citações e um dos melhores filmes de ação dos últimos tempos.

‘O Que Terá Acontecido a Baby Jane’, de Robert Aldrich, 1962

Já que esse texto foi sobre três belos trabalhos de encenação, nada melhor do que acrescentar breves comentários sobre um dos principais filmes de um dos maiores encenadores da história do cinema, Robert Aldrich.

Em ‘O Que Terá Acontecido a Baby Jane’, de 1962, Aldrich parte de um drama psicológico e um embate entre duas personagens (vividas por duas grandes atrizes: Bette Davis e Joan Crawford) e atinge um nível de tensão que insere o filme dentro do terror psicológico.

Aldrich constrói a força do filme por meio da composição de quadros, do posicionamento de câmera e da intensidade dramática que imprime em cada cena. ‘O Que Terá Acontecido a Baby Jane’ é um dos mais primorosos estudos sobre o ressentimento, a inveja, a crueldade e o fracasso.

O cinema de Aldrich, com sua intensidade dramática, sua aproximação dos conflitos a da crueldade humana o aproximam muito de outros dois grandes autores do cinema mundial, Samuel Fuller e Nicholas Ray.

Cada um dos quatro filmes desse texto merece uma crítica extensa e profunda. Aqui temos apenas uma pequena e breve aproximação a eles. Material de primeira para futuras publicações do blog.

 

‘Batguano’, de Tavinho Teixeira, 2014

Por Fernando Oriente

BatguanoEm 2014, em meio aos vários filmes fortes, criativos e poderosos que foram exibidos no Festival de Tiradentes (tanto em Minas quanto no recorte do evento exibido no CineSesc em São Paulo) um longa em especial deixou sua marca. ‘Batguano’, de Tavinho Teixeira, cria um universo particular abarrotado de códigos da cultura popular, referências filosóficas, reflexões sociológicas e elementos da vida ordinária para compor uma ficção científica essencialmente brasileira, sem perder seu caráter universal. O longa é uma felicíssima leitura decadentista de um mundo que se auto-implodiu em meio ao hiperconsumismo e a proliferação epidêmica de valores da indústria cultural.

‘Batguano’, em meio às várias leituras possíveis que cabe ao filme, é um longa que se enquadra dentro de um registro decadentista. O decadentismo do filme tem inúmeros pontos em comum com o estilo literário e filosófico do final do século 19 (de escritores como Joris-Karl Huysmans, Jean Lorrain, Gabriele d’Annunzio, Oscar Wilde, Stéphane Mallarmé e Walter Pater) com sua crítica aos valores burgueses, aversão aos preceitos da moral, uma defesa agressiva e sarcástica do isolamento social e da fuga da realidade. Mas em ‘Batguano’, esse decadentismo perde o caráter aristocrático que o marcava no século 19 e é atualizado em uma corrosiva visão do Brasil e do mundo em anos 2010.

Tavinho Teixeira cria uma particular modernização desses conceitos decadentistas potencializada pelos efeitos de um mundo pós indústria cultural e contaminado pelas sequelas de uma sociedade do espetáculo alucinada. Em ‘Batguano’, os tipos estão inseridos em um apocalipse em que valores da cultura pop, subprodutos do consumo de massa, excessos de informação e ícones do hiperconsumismo são quase os únicos valores afetivos que ainda fazem parte do imaginário do mundo.

‘Batguano’ acompanha Batman e Robin, velhos e aposentados, refugiados em um galpão abandonado na beira de uma estrada. Eles se isolam e se protegem de um mundo pós apocalíptico infestado por um vírus mortal. Os signos visuais do filme remetem a uma sensação de esfacelamento, lentidão, ruínas e angústia. A estrutura formal do longa é solidificada em simulacros e suas possibilidades estéticas e materiais.

A velhice, os corpos cansados, os espaços em deterioração, o fracasso e o braço amputado do homem morcego constroem um campo imagético de força ímpar. Raras vezes o cinema foi tão feliz em transformar em imagens sensações de desterro e deslocamento, de imobilidade e desesperança quanto em ‘Batguano’. Toda a construção estética do filme ressalta o cansaço, físico e emocional, da dupla de protagonistas. Um filme sobre o esgotamento da alma.

As cenas (registradas por meio de planos estáticos com variações de eixo) em que Batman e Robin sentam-se em frente a uma televisão e ficam zapeando entre canais de todos os tipos, anestesiados pelo jorro desconexo de informações, sons e imagens que vem da TV, são comentários corrosivos de Tavinho Teixeira sobre sua visão do mundo atual, sobre a apatia como sintoma de viver. É o decadentismo convertido em matéria estética, em discurso fílmico de texturas múltiplas, em expressão artística visceral.

Esse estilo de vida decadentista da dupla é, também (e paradoxalmente), uma forma de resistência aos valores que se legitimaram na sociedade como senso comum. Aqui, os super heróis ainda negam (ao se refugiarem delas e se anestesiarem de seu contato direto) as mazelas do mundo, embora não tenham mais forças para combatê-las.

Como já foi dito, estamos diante de um filme construído por meio de simulacros. Nada em ‘Batguano’ tenta emular a realidade física do mundo. Os conflitos são registrados em um tempo suspenso e de maneira anti-naturalista, A duração dos planos é longa e cadenciada, a câmera se articula em movimentos calculados que desvendam o quadro, reorganizando os personagens e objetos dentro de cena, mudando e recriando os sentidos e os códigos visuais do que se vê na tela.

A mise-en-scène de Tavinho Teixeira se debruça sobre o cotidiano de Batman e Robin em seu isolamento dentro do galpão em ruínas e entulhado de bugigangas. A encenação detalha as pequenas ações do casal, os breves diálogos, os embates e os conflitos emocionais entre eles bem como os momentos de silêncio e prostração. Um dia a dia contaminado pelo tédio e a sensação de fracasso com que a dupla enfrenta o lento passar das horas. Batman e Robin vivem o saudosismo melancólico de um tempo em que as coisas pareciam fazer sentido. Fazem suas refeições à base de produtos industrializados, refeições essas que são intercaladas por doses de uísque e carreiras de cocaína.

A câmera de Tavinho registra o tempo arrastado com que dupla joga fora seus dias. Temos diversos planos em que os rostos de Batman e Robin são captados em sua apatia, em seu desânimo consentido diante do colapso existencial. Planos de rostos que trazem muitas texturas, uma infinidade de sensações e emoções suspensas e perdidas em olhares vagos. Suas ações são arrastadas, suas falas são parcas e cheias de desânimo. A vida é só uma sombra dos dias de glória, dos anos de sucesso e brilho, da época em que formavam a dupla dinâmica das telas.

Existe na encenação de Tavinho Teixeira uma forma de transformar em matéria cinematográfica os sentimento do fracasso, da decrepitude física e existencial. Todo o filme é permeado por uma relação temporal que transcende o plano e remete a uma visão ampla de um mundo em ruínas. Um mundo que se extingue em seus excessos.

Apesar do clima melancólico, da acidez da decadência retratada, Tavinho não permite que seu filme caia em lamentos piegas. Existe em ‘Batguano’ uma forte dose de sarcasmo e de humor corrosivo e cruel que potencializam os dramas.

O sexo no filme aparece tanto de maneira melancólica como uma forma de troca muitas vezes desastrada de ternura. O gozo, ou a busca pelo gozo, nesse ambiente esfacelado de valores e sentimentos é, ao mesmo tempo, um fugaz refúgio de prazer momentâneo bem como um lamento carinhoso diante das impossibilidades de uma maneira mais plena de autodeterminação do desejo.

Mais do que sexo, a maneira como os personagens se projetam fora da realidade corroída da existência são em seus passeios de carro. Essas passagens estão entre as mais fortes do filme. Batman e Robin sobem em um velho batmóvel conversível que, fixo no chão, “se move” por meio das imagens projetadas em uma velha tela de cinema posicionada atrás do carro. Esse truque antigo de cinema cria admiráveis e melancólicos simulacros dentro do longa.

Por meio da aproximação de câmera, o plano de dois tipos fantasiados dentro de um carro velho estacionado em um galpão abandonado se torna um passeio de automóvel por estradas e ruas, permite que os personagens vivam uma simulação de movimento, interajam com espaços diversos. É como se o próprio cinema e seus mecanismos devolvessem aos protagonistas o movimento e a liberdade que a vida lhes tomou.

‘Batguano’ é um filme em que fortes situações isoladas, encadeadas por uma montagem solta, são arranjadas dentro de uma evolução narrativa livre que permite ao filme um todo sólido e coerente. Cinema aberto ao mundo e as suas imperfeições, que desloca seu olhar para as possibilidades de seu material ao mesmo tempo em que tira o espectador de sua posição de conforto.

 

‘Film Socialisme’, de Jean-Luc Godard, 2010

Film SocialismePor Fernando Oriente

Falar do cinema que faz Jean-Luc Godard é debruçar-se sobre uma arte muito mais complexa, uma junção de manifestações artísticas distintas, uma colagem de gêneros e uma ousadia experimental e um projeto político e estético em constante movimento. Uma arte que pulsa no pensar, no ser e no fazer cinema desse que é o cineasta mais importante da história. Falar de Godard é adentrar numa espécie de culto a um artista em constante evolução, cuja obra registra diversas fases que dialogam entre si e que chega ao momento atual como algo maior que o próprio cinema como estamos acostumados a pensá-lo. JLG está além dos filmes, já adentrou com seus trabalhos em novo estágio artístico, que passou do tão falado (e muito esgotado) pós-moderno para penetrar no terreno do hiper-moderno, no limite máximo da capacidade dialética de um artista e de seu fazer. Falar de Godard é falar de Saint Jean-Luc.

‘Film Socialisme’, último longa de Godard, tem que ser revisitado diversas vezes, para se absorver todo seu discurso, tudo que ele reproduz e reflete sobre o mundo de hoje e todos os questionamentos que propõe JLG por meio do longa.

O filme, de uma maneira simples, pode ser dividido em três partes. Cada uma delas contem diferentes construções formais e propostas estéticas distintas. Uma potencializa a outra, são independentes ao mesmo tempo em que formam um todo coerente com a complexidade de sua proposta.

Em ‘Film Socialisme’ Godard não apresenta soluções nem dá respostas ao atual estado de coisas que impera no mundo. Ele fala ao mesmo tempo do micro para refletir sobre o macro. Ele usa os limites do poder da montagem para abordar temas diametralmente opostos que fazem sentido dentro do constante movimento interno de seu filme. ‘Film Socialisme’ é uma colagem, uma ficção, um documentário e um projeto estético de experimentação visual e textual que aborda questões fundamentais no mundo atual.

Godard passou dos 80 anos com uma jovialidade invejável e nega-se ao conformismo que alguns esperam de artistas experientes. Seu posicionamento político de esquerda continua visceral e revolucionário como sempre foi. JLG é um artista de rara coerência em uma sociedade que sordidamente se move rumo ao pesadelo conservador da ridiculamente autodenominada “vanguarda de direita” (?!). Para ele nunca houve e nunca haverá a “morte da ideologia”.

Dito isso, vamos a ‘Film Socialisme’. A primeira parte do longa desenrola-se em um navio, onde diversos personagens estão em um cruzeiro pelo mediterrâneo. Imagens e sons, textos e paisagens se intercalam e se sobrepõem enquanto Godard constrói seu material dramático. Os tipos discutem e soltam frases isoladas que abordam temas como a transformação do mundo em um imenso mercado de consumo em que tudo é balizado pelo dinheiro e seu fluxo, a questão Palestina, a história da Europa e de seu ímpeto colonialista, a americanização do mundo a partir do fim da 2ª Guerra, o fascismo, a União Soviética e outros tantos temas que acabam por compor um painel da sociedade atual, de suas feridas e descaminhos.

A construção dramática de Godard é tão intensa que essa primeira parte do filme atinge, por meio da força de suas imagens e da veemência como essas imagens refletem e se sobrepõe ao que é dito dentro e fora de quadro, um nível de sensorialidade que faz com que o espectador sinta-se em meio a esse navio como se ele fosse uma representação de nosso universo navegando rumo ao abismo. O cruzeiro é a representação da catástrofe do mundo, da condenação a que estamos fadados. A qualquer momento virá o naufrágio. Com isso, ‘Film Socialisme’ é também um longa que adentra os aspectos do cinema de gênero, existe horror e suspense em sua construção e, principalmente, em sua evolução.

Godard consegue incluir frases como “Hoje os canalhas são sinceros”, “O dinheiro foi inventado para que as pessoas não precisem se olhar nos olhos” “O dinheiro é um bem comum… como a água” ou “Por que existe a luz? Por causa da escuridão” e tirar desse recurso o máximo potencial dialético de um discurso que se consolida por meio da justaposição do texto com as imagens, através do conflito que surge entre a oposição/aproximação entre palavra e imagem.

Por falar em dialética, o tema é discutido e comentado por personagens ao longo do cruzeiro. Godard é explícito em esmiuçar a questão dialética em ‘Film Socialisme’, questão essa que ninguém sabe abordar como ele. As imagens dessa primeira parte são captadas em um digital de altíssima definição, com potencialização de nitidez, cores e texturas e diferentes registros e usos do som. Ao mesmo tempo, Godard monta essas cenas intercaladas com sequências captadas por celulares e câmeras digitais de baixíssima resolução, que produzem imagens alteradas que beiram um grotesco intencional e quase abstrato. São maneiras opostas de captar a realidade, de transportar para a tela os meios como essa realidade pode ser vista e sentida.

A segunda parte de ‘Film Socialisme’ se passa em um posto de gasolina onde vive uma família composta pelo pai, a mãe, uma filha adolescente e um filho ainda criança. Não se trata de uma família comum em nossos dias. Eles vêm da época da resistência francesa durante a ocupação nazista e se relacionam dentro de preceitos ideológicos socialistas e ideais revolucionários, bem como discutem valores existencialistas e temas relacionados ao universo familiar e a função social de cada um dentro dessa estrutura.

Godard aborda o microcosmo de uma família para refletir como essa instituição é ou pode ser vista em nossos dias e qual o papel do indivíduo comum dentro do corpo social. Quais valores fazem com que um sujeito se defina em sua subjetividade? Quais os limites e a fronteira entre o eu e o outro? Godard registra tudo isso (o que não é pouco) por meio de planos abertos que contextualizam o espaço em que essas questões são levantadas e pequenos movimentos de câmera que lentamente expõe a ação e a integração dos tipos dentro e fora dos planos. Novamente as imagens são compostas por HD de forte limpidez, acentuação e superexposição de cores.

Em meio a esses planos, temos as tradicionais cenas (utilizadas por JLG desde sua primeira fase nos anos 60) em que o cineasta filma seus personagens na penumbra de ambientes fechados emoldurados por uma luz exterior intensa. A inquietação do registro visual garante uma intensidade extra na relação godardiana entre o fora e o dentro de quadro, entre o que é falado externamente com o que se vê na tela e a diegese e com tudo aquilo que as imagens sugerem. Godard busca sempre mais, sempre potencializa suas sequências para além de simples cenas chapadas. Sua misé-en-scene é inquietante, transcende o usual, o corriqueiro. Ele quer e sabe tirar algo a mais de imagens, frases, ruídos e sons.

Por fim a terceira parte de ‘Film Socialisme’ retoma todos os temas tratados no filme até então e ainda sugere novas questões. Não existe mais encenação, apenas colagens de imagens atuais de cidades como Odessa, Nápoles e Barcelona (e seus significados históricos) e trechos de filmes de Eisenstein, John Ford e Agnès Varda, entre outros. Aqui vemos Godard exercer uma de suas maiores capacidades, usar todo a força dos dispositivos de montagem a favor de criar sentidos e tecer discursos.

A isso Godard soma textos isolados, ditos por diversas vozes em off, frases em cartelas e palavras soltas em sons ou impressas na tela. Cria-se uma superposição de imagens e textos, uma dialética frenética que retoma, questiona e reafirma a matéria e as indagações do mundo atual que interessam a Godard. Na parte final a relação entre passado e presente e as incertezas sobre o futuro ganham a tela com uma visceralidade desconcertante até o filme ser literalmente interrompido por uma frase escrita sobre a tela escura: “No Comment”. Obra-prima que reafirma Godard para o cinema como nada menos que São Jean-Luc.

 

‘Imitação da Vida’ (Imitation of Life), de Douglas Sirk, 1959

Por Fernando Oriente

Alguns filmes são tão bons que serviriam, por si só, como aulas de cinema. Isso é mais que uma expressão ou uma maneira de adjetivar positivamente uma obra. Um longa como ‘Imitação da Vida’, de Douglas Sirk, é um verdadeiro “manual” prático de como se deve enquadrar, decupar, encenar, cortar, dirigir atores, compor o quadro, usar luz e cores, etc., etc. E, a partir de tudo isso, transformar uma história em um monumento cinematográfico.

Sirk é um dos maioes cineastas da história, sua assinatura transforma qualquer argumento em um grande filme. ‘Imitação da Vida’ talvez seja seu filme mais reconhecido, ao mesmo tempo em que é um dos projetos mais ambiciosos do diretor. Nele, Sirk usa sua capacidade impressionante de modular as intensidades dramáticas e atingir o melodrama de uma forma tão intensa que beira o sublime. O melodrama em Sirk transcende o papel meramente catártico desse gênero e, por meio de uma mise en scène perfeccionista e delicada, passa a ser uma expressão de contemplação do mundo em que o diretor destila contundentes retratos de uma sociedade claustrofóbica e saturada de regras morais.

Os melodramas nas mãos de Douglas Sirk são peças sofisticadas de apreensão dos males do mundo. A amplitude dramática do diretor é composta em camadas que contrapõem situações de dor e impotência com comentários cheios de sutileza (e extremamente incisivos) sobre códigos sociais e o quanto o ser humano não vai muito além de uma frágil marionete nas mãos de um destino inevitável em que as regras do jogo, as hipocrisias e a moral conservadora são incapazes de serem contornadas.

A sociedade é uma farsa para Sirk. Seus códigos, seu conservadorismo e seus julgamentos preconceituosos e moralistas vão sempre esmagar o indivíduo que desejar viver de maneira livre e sincera. O mundo não aceita que se viva sem máscaras, não abraça ninguém que não interprete uma figura socialmente aceita e já pré estabelecida dentro dos preceitos do bom comportamento e dos códigos morais.

‘Imitação da Vida’ é um filme com muitos personagens principais. Sirk usa a riqueza dramática de cada um deles para compor um painel dessa sociedade esmagadora. A principal tensão (ou a mais aparente) é entre Annie, uma típica mulher negra americana da primeira metade do século 20 (com todo o ônus imposto a ela por um ambiente racista e com um intransponível abismo social), e sua filha Sarah Jane, uma jovem branca com a cabeça já transformada pelas esperanças de realização pessoal de uma modernidade libertária que vivia seus primórdios nesse final dos anos 50 e cheia de um erotismo pulsante que a move em direção aos objetos de seu desejo. O conflito entre antigo e novo já é intenso por si só, mas a isso se soma a tensão racial, já que Sarah Jane não aceita o fato de sua mãe ser negra. Não é a Annie que a menina rejeita, o que ela recusa é viver na pele os mesmos preconceitos que sua mãe viveu. Ela é uma garota moderna, que quer vencer na vida e ter acesso à felicidade prometida por uma América que se vende ao mundo como a terra das realizações pessoais. A experiência de vida da mãe deixa claro que, no mundo em que vivem, a uma mulher negra será sempre negado as possibilidades de realização social. E, pior ainda, os graus de humilhação e violência a que os negros são submetidos nesse ambiente são de uma bestialidade abjeta.

Esses conflitos são interpostos a todos os outros no filme. Uma das grandes forças de ‘Imitação da Vida’ é a complexidade das relações entre os dramas. A personagem Lora (Lana Turner), que dentro da narrativa é a com maior destaque individual, tem seus tormentos para triunfar como atriz (uma situação explorada como representação das dificuldades que enfrenta uma mulher para conquistar seu espaço dentro de um meio machista que insiste em colocá-la em plano de inferioridade e dependência do homem) diretamente ligados às amarguras que Annie enfrenta para manter vivas as esperanças de criar bem a filha e ter o mínimo de dignidade para existir. As dificuldades para se auto-determinar no mundo são as mesmas, embora as expectativas de vida de ambas sejam diferentes. O racismo e a condição sócio-econômica fazem isso ser mais cruel para Annie, mas a hipocrisia social se apresenta em toda sua força para tentar impedir a realização de Lora. A história de uma personagem se reflete e se completa na das outras.

Isso se projeta tanto na trajetória de Sarah Jane, como na de Susie, a filha de Lora. Sarah tem que enfrentar tanto as dificuldades que o racismo pode impor a sua jornada, bem como os preconceitos morais que julgam a sua personalidade livre, sua feminilidade e seu desejo de independência. Já Susie é a personagem que sofre tanto por essas limitações sociais e de gênero, quanto por ter sido criada por uma viúva que, para conquistar seu espaço, teve que criar a filha por meio de um excesso de zelo em que compensava sua ausência com mimos, boas escolas e todo o luxo e as facilidades que o dinheiro pode comprar.

Lora cria a filha dentro de um processo de alienação materialista que tenta proteger a menina da crueldade que o mundo impôs a ela durante sua vida. A infantilidade e o caráter sonhador de Susie, que fazem dela uma pessoa incapaz de perceber os meandros com que a brutalidade da vida atinge as pessoa a sua volta, são fruto dessa criação, que por sua vez é fruto da intenção de uma mãe que quer que a filha tenha nos confortos e no dinheiro a proteção contra os infortúnios que essa brutalidade impôs a ela. Os aparentes “defeitos” na personalidade de Susie são fruto das limitações de Lora, são decorrência direta de seu próprio sofrimento.

Os personagens masculinos são todos secundários às quatro mulheres que conduzem o filme. Mas não por isso são menos complexos. A implicação que os códigos sociais e a moral impõem em suas personalidades tornam eles típicos exemplos de como o universo masculino e a sociedade patriarcal são capazes de esmagar a individualidade e as possibilidades de autodeterminação das mulheres. Isso existe de forma sofisticada no filme, por meio de uma construção sólida nas relações entre os tipos e como isso implica na evolução dos dramas e na projeção deles em relação a uma visão de mundo nada animadora.

O fotógrafo e publicitário Steve, apesar de sua aparente bondade, é um típico machista que tenta o tempo todo limitar Lora a ser uma mulher dependente dele. Não aceita que ela tenha esperanças e ambições, quer ela dentro do papel de “mulher e esposa”. Os empresários, escritores e diretores de teatro são todos expressões de como a sociedade despreza e humilha a mulher dentro de seus códigos. Mas nenhum tipo do filme é fruto de maniqueísmo nem de julgamentos morais rasos. Eles agem a atuam dentro de características humanas que regem um meio de onde essas características são o que se espera das pessoas dentro de seus papéis pré estabelecidos.

A excepcional sequência final, o suntuoso funeral de Annie, mostra como o melodrama em Douglas Sirk é algo poderoso e complexo. Por meio de uma potencialização desse gênero, o diretor conclui seu longa em uma sequência fortíssima e visualmente arrebatadora ao mesmo templo em que amarra as últimos comentários de um discurso fílmico poderoso.

Uma sequência cheia de dor, com dramas registrados em alta voltagem, serve como desfecho para uma narrativa em que a condenação das personagens é incontornável. O enterro luxuoso tão desejado por Annie durante toda sua existência é uma maneira dela encontrar alegria na promessa cristã de que após a morte o ser humano finalmente terá a paz e a felicidade que foram negadas durante a vida. Celebrar a morte nesse enterro, mesmo que seja com extrema tristeza, é uma forma de rejeitar os sofrimentos e a crueldade da vida. A chegada de Sarah Jane ao cortejo fúnebre e a dilacerante dor da personagem concluem a cena no limite do suportável e com o melodrama encenado no máximo da potência.

A encenação de Sirk faz de ‘Imitação da Vida’ um filme em que os comentários do diretor estão presentes em cada cena. Os usos das possibilidades viscerais do melodrama são canalizados por meio de uma encenação primorosa na construção de uma obra-prima e um dos mais tristes e cruéis retratos de uma sociedade corrompida pela moral, o preconceito e a hipocrisia.

‘Ninfomaníaca’ (vol. 1 e 2)

Por Fernando Oriente

Nos anos 80 e início da década de 90, algumas capas das fitas de VHS com filmes pornôs tinham uma espécie de selo com as palavras “com história”. Era uma forma de diferenciar esses filmes de outros em que havia apenas cenas de sexo explícito em sequência, sem nenhuma trama, enredo ou amarração entre elas.

O que temos em ‘Ninfomaníaca’, de Lars Von Trier, é uma tentativa frustrada de criar dramas, conflitos e evolução narrativa para várias situações sexuais. Ao tentar fazer o seu pornô de butique ser “com história”, Lars se estrepa. Tudo o que acontece entre as sequências diretamente eróticas não tem substância alguma (não que essas sequências sexuais tenham algum valor). São tensões forçadas, confrontos rasos, muita afetação pseudo psicológica e momentos realmente constrangedores.

O principal problema de ‘Ninfomaníaca’, e dos fracos últimos filmes de Lars Von Trier (‘Manderlay’, ‘Anticristo’ e ‘Melancolia’, principalmente) é que o diretor se preocupa, quase que exclusivamente, com o grande “Tema” que irá abordar, com os psicologismos que associa a esses temas e com o marketing em que transformou sua obra e sua persona. Cinema e encenação parecem não serem as preocupações ou as metas reais dele.

No caso de ‘Ninfomaníaca’, o sexo (um elemento altamente cinematográfico, que pode render desde grandes planos a ótimos filmes) fica restrito aos maneiremos de Von Trier, a sua necessidade em construir impacto a qualquer custo e a obsessão do diretor em querer psicologizar tudo. Lars Von Trier insiste em querer passar mensagens, se esforça em ser um analista da alma humana, quer a todo custo abordar os sofrimentos existências de seu tempo. O problema é que ele faz tudo isso de maneira rasa e forçada, por meio de falsificações dramáticas infantis e pelo aspecto publicitário que imprime à construção e a evolução de seu filme.

Von Trier não se preocupa com as possibilidades, texturas, incertezas e questionamentos que uma dramaturgia cinematográfica bem encenada pode alcançar. Ele não se permite o risco e o erro (esse elemento humano tão importante no cinema sincero). O que faz é assumir a postura de quem tudo sabe, oferecer repostas prontas e não abrir espaço para problematizações, para o acaso e nem para deslocamentos do olhar. Com uma mise-en-scène esquemática e truncada e uma evolução engessada, ‘Ninfomaníaca’ é um filme em que situações mal ajambradas se repetem, se acumulam e se agridem entre si, não existe composição entre cenas, existe apenas uma evolução amontoada de momentos repetitivos, falsas surpresas e algumas poucas conclusões pífias. Von Trier tenta ser irônico e sarcástico, se esforça em introduzir elementos de humor crítico no filme, mas nunca consegue mais do gracejos toscos e cenas caricaturadas no grotesco.

Lars está contente em provocar com imagens explícitas fora de contexto, com truques (que servem de muleta para sua encenação torta) como a câmera tremida e os jump cuts ou com o apelo vulgar que imprime na atuação de seus atores, que surgem na tela quase todos com imensa canastrice. As caras e bocas de Charlotte Gainsbourg, sua fala empostada, seus silêncios pseudo-reflexivos e a seriedade mecânica que dá a sua personagem estão entre os (muitos) piores momentos de ‘Ninfomaníaca’.

Os personagens são todos estabelecidos em cima de pretensões dramáticas que em momento algum se tornam matéria no filme. Desde a protagonista Joe, (bem melhor quando interpretada por Stacy Martin do que Charlotte Gainsbourg) com sua total carência de densidade cênica e pretensões psicológicas, passando pela constrangedora esposa traída interpretada por Uma Thurman (cuja sequência em cena é uma das mais constrangedoras passagens do filme) até o péssimo personagem de Jerome (interpretado por um fraquíssimo Shia LaBeouf, em um erro grosseiro de casting do filme) temos um desfile de tipos sem densidades alguma, construídos em cima de clichês, frases de efeito, interpretações fora do tom e muita pretensão existencial.

A idéia de apresentar a protagonista como uma mulher que julga suas ações em cima de idéias de pecado, problemas de caráter e autocensura, ressalta o moralismo que Von Trier tenta, mas não consegue esconder do filme. Ela precisa se culpar o tempo inteiro enquanto conta sua história. Esse recurso, essa falsa culpa forçada, não permite que as ações de Joe existam por si, como parte atávica de uma mulher, mas sim como ações passivas de condenação, atos associados ao pecado e a uma autocomiseração piegas. Von Trier não abre espaço para os paradoxos, para as possibilidades constitutivas dos tipos e nem para o cinismo crítico.

A construção da narrativa a partir das histórias de vida que Joe conta para seu interlocutor, o intelectual celibatário Seligman, seriam para construir uma relação de choque entre o que é narrado e os comentários de Seligman e Joe sobre esses fatos. Essa tentativa de alternar uma análise fria e cheia de referências intelectuais de Seligman às ações e dramas de Joe levam a uma série de falsos conflitos sem (logicamente) nenhuma dialética.

Ao querer ser complexo e adentrar a psicanálise dramática, Von Trier é apenas patético. Usemos o esquematismo do filme e vamos enumerar uma série de situações capengas, perversões estéreis e situações que beiram o ridículo em ‘Ninfomaníaca’:

1- A viagem de trem em que Joe e a amiga caçam trepadas

2- A relação do pai da protagonista com as árvores (haja pretensão e cafonice)

3- As cenas de romance entre Joe e Jerome

4- A cena do orgasmo espontâneo seguida de levitação (um horror de pieguice na base de computação gráfica tosca)

5- O ménage à trois com os africanos

6- As sessões de sadomasoquismo

7- O intumescimento peniano do pedófilo registrado em closes, seguido por um boquete por comiseração

8- O espancamento de Joe com direito a mijada na cara

É melhor parar por aqui, mas outros momentos não faltam.

Em meio a um amontoado de metáforas e simbolismos pobres e forçados, Lars Von Trier raramente leva ‘Ninfomaníaca’ a algum lugar. Quando raramente o filme chega a alguma conclusão, ela é sempre piegas. Exemplos disso não faltam, como na cena em que Joe encontra “sua árvore” no topo de uma montanha ou nos reencontros forçados entre ela e Jerome. Isso sem contar o final, em que o piegas se junta a uma explicitação de outra obsessão mal resolvida em Lars: a fixação do diretor em afirmar que “o mundo é podre e o ser humano não presta”. A conclusão do filme ainda soma isso a uma tentativa de choque, cinismo e surpresa, mas tudo isso somado não passa do mais descarado marketing em que Von Trier transformou sua obra.

Os maneirismos do diretor também já se tornaram insuportáveis. A câmera tremida, os ângulos fechados e os saltos da montagem não funcionam mais. Esses elementos, que foram muito bem utilizados no ótimo ‘Ondas do Destino’ e fazem parte da própria estrutura narrativa do poderoso ‘Os Idiotas’ (só para citar seus dois melhores trabalhos), em seus longas atuais não passam de afetações estilísticas que servem para esconder a incapacidade do diretor em construir planos e decupar cenas.

‘Ninfomaníaca’ pode afirmar (como no pôster do filme) para que “se esqueça o amor”. O problema é que não dá para se fazer um filme e esquecer o que é cinema.