Em “Vício Frenético” Werner Herzog consegue impregnar cada imagem com as texturas e as sensações que deseja transmitir, injeta sensorialmente em todos os planos e ainda tece seu discurso cínico e seus comentários ácidos. O espectador é transportado para um ambiente sórdido, sujo e onde não existem julgamentos morais.
Os acontecimentos se desenvolvem seguindo uma lógica própria, em que viradas do destino assentam o fadário dos personagens. Estamos em Nova Orleans após a tragédia do Katrina. A cidade feia e a beira do caos reflete o interior do protagonista, o tenente interpretado de forma over por Nicolas Cage. Novamente Herzog volta a enfocar o ser humano levado ao limite, forçado a reagir (ou apenas se deixar levar) à violência que o meio (o ambiente) exerce sobre ele.
Esses temas, tão caros ao cineasta, nos chegam de forma direta em “Vício Frenético”. A câmera de Herzog registra de dentro os tormentos e a alienação dopada do tenente Terence McDonagh. Segue o personagem em suas ações frenéticas e em sua descida ao inferno potencializando as relações entre ele e o ambiente que o cerca.
Constantemente sobre o efeito de todos os tipos de drogas, se arrastando entre atitudes desprovidas de ética, o tenente Terence conduz o espectador a esse mundo de valores falidos e constante angústia. Não existe espaço para ações edificantes. Mesmo quando segue o curso de seu trabalho, visando o cumprimento da lei e a punição dos infratores, o protagonista é apenas um reflexo de uma sociedade corrompida em que as boas intenções são apenas um detalhe no jogo da sobrevivência na selva urbana.
Herzog domina o material de seu ofício. As sequências são compostas com a precisa intenção de poluir as situações dramáticas com a sordidez do mundo encenado. A luz, muitas vezes excessivamente clara, suja ainda mais o quadro e revela as entranhas desse ambiente. As relações de Terence com os demais personagens são contaminadas por seus desvarios interiores. Vemos o mundo através da visão dele. Tudo nos parece fora de lugar, errado e mesmo assim acreditamos piamente que esse é o nosso mundo, que tudo o que está na tela está acontecendo na esquina mais próxima e em qualquer grande cidade do planeta.
Terence não é mau nem bom. Suas ações e reações são compostas como um simples estar no mundo. Ele não sabe qual é a verdade do que o cerca, não quer entender nada, apenas segue a diante. Os tipos à sua volta são tão tortos quanto ele. A naturalidade das ações dos personagens é outro ponto forte. A prostituta vivida pela estonteante Eva Mendes namora Terence sem que seu trabalho seja questionado na relação. A ternura entre os dois é sincera e não calculada, surge da necessidade de estar ao lado de alguém, mesmo que essa necessidade não seja algo nobre a ser buscado, apenas um remédio para a sobrevivência.
Os métodos do tenente, sua impaciência, obsessões e vícios são registrados por Herzog com naturalidade. A banalidade de suas vicissitudes serve para apimentar o cinismo do discurso do cineasta. Irônico, Herzog tinge diversas passagens do longa com um humor irresponsável que é pura refração da hipocrisia social que impera. A afirmação da essência distorcida de Terence, a consolidação de sua identidade é a crítica social direta e sem pieguice que o diretor faz.
Herzog despreza moralismos na mesma proporção de se sente desconfortável com os males do mundo. Ele não faz discursos panfletários, apenas registra de forma intensa o pulsar das coisas, a falta de direção dos seres e a incapacidade do Estado de oferecer qualquer mediação nesse processo. Tudo isso nos chega pela forma como Herzog penetra os ritmos e as sensações das experiências de seus personagens.
O pano de fundo de “Vício Frenético”, a cidade de Nova Orleans, a sociedade norte-americana e a calamidade provocada pelo Katrina, também fazem parte da sofisticação do discurso de Herzog. Desde o torpor das autoridades, o descaso com a população pobre (principalmente negros e imigrantes) e a alienação consumista da elite branca (os jovens atacados por Terence na saída de um clube noturno) fazem parte do material fílmico do longa sem que sejam elementos perturbadores da fluência e sim pequenos resíduos da realidade encenada.
Werner Herzog afirma não ter assistido ao “Vício Frenético” dirigido por Abel Ferrara em 1992. Embora seja mais um entre tantos ótimos trabalhos de Ferrara, o registro que Herzog usa em seu filme é totalmente distinto daquele usado pelo diretor americano nos anos 90. Enquanto Ferrara atirava seu protagonista em um turbilhão de sofrimentos e angustia em que culpa e redenção guiavam o desespero encenado, Herzog abusa do cinismo e da sujeira das imagens para tecer seus comentários ácidos e desprovidos de qualquer moralidade. Dois grandes cineastas e dois grandes filmes.