Construir um encanto estético de 110 minutos, composto por planos estáticos e longos travelling diretos e sem nenhum diálogo é um feito que só pode ser atingido por cineastas do nível de Chantal Akerman, uma das maiores realizadoras do cinema europeu moderno. A beleza de ‘Do Leste’, filme lançado pela cineasta belga em 1993, é calcada naquilo que o cinema tem de mais autêntico, orgânico e visceral: o poder da imagem e a que patamar esse poder pode ser alavancado pelos recursos técnicos e criativos do artista.
O termo artista aqui empregado é fundamental para definir o trabalho de Chantal. Como afirma Fernando Watanabe em seu texto publicado no site Cinequanon, a obra de Akerman foge do campo restrito do cineasta e é, nas palavras de Watanabe, “movido por uma pulsão criativa de grande amplitude” que envolve noções que ampliam o fazer estritamente cinematográfico.
‘Do Leste’ é montado em cima de um rigoroso trabalho de tempo-espaço, em que a diretora decupa (escrutina, estuda) primorosamente as ações, situações e espaços que captura com a câmera. Os cenários, ambientes e figuras humanas compõem a dialética que estrutura o próprio conceito do filme. O registro de uma parte do mundo (o Leste Europeu), durante um momento histórico único, em que a passagem de uma esperança socialista fracassada para um futuro incerto provoca mais uma sensação angustiada de espera do que um furor reformista, é potencializado e traduzido em toda a sua textura pela beleza funcional que domina cada plano e cada quadro do longa.
Novamente é necessário citar o quanto a força discursiva das imagens é fundamental para a obra de Akerman. Ao longo se sua carreira, a diretora construiu filmes intensos em que as imagens são a força motora e a matéria central. Chantal prescinde de evoluções narrativas para enfatizar a força autônoma de seus planos, as possibilidades implícitas na absorção de um material imagético quase puro e como ele se relaciona com as percepções do espectador. Planos que muitas vezes se repetem e se atualizam dentro de mesmos cenários e ambientes. Os espaços e a implicação da ação/relação desses com o tempo é chave no cinema da diretora, bem como o tratamento que ela dá à geometria do quadro.
Esses elementos são notáveis em longas como ‘Do Leste’, ‘Hotel Monterey’(1972), ‘News From Home’ (1977), ‘Toute Une Nuit’ (1982), bem como no curta ‘Tombée de Nuit Sur Shanghai’, segmento do longa ‘O Estado do Mundo’ (2007), entre outros.
Em ‘Do Leste’, a ausência de diálogos e o registro de sons e ruídos diegéticos é um recurso que não só contextualiza o ambiente registrado, mas amplia o aspecto sensorial das imagens. O registro natural da luz, que a cada cena varia em intensidade, é mais um elemento de potencialização da complexidade imagética do longa. A luminosidade do quadro, tanto nas cenas diurnas quanto nas noturnas, é a sutil moldura que delimita o ambiente filmado, é o elemento que desvenda o mundo que vemos e que segue as ações e inações dos personagens que desfilam ou imobilizam-se diante da câmera de Chantal Akerman.
Acompanhamos pessoas que entram e saem da tela sem serem apresentadas, sem que tenham qualquer particularidade explicitada. Esses tipos são observados apenas como habitantes de um mundo que, embora seja o mesmo no qual vivemos, não é nosso espaço natural. Os percebemos da mesma forma que um observador mais atento repara naqueles que andam ao seu lado em um dia qualquer, mas nunca serão nada além de rostos em uma multidão de desconhecidos.
O que Akerman reafirma com suas imagens é a existência tangível dessas figuras humanas. São seus movimentos mecânicos, seus gestos banais, suas expressões faciais e toda uma gramática gestual e corporal que abrem espaço para as inúmeras possibilidades existenciais que eles representam. A captura quase poética dos espaços físicos torna ainda mais densa a materialidade dos locais filmado.
Longos planos-sequência, que desvendam o ambiente e a disposição física das pessoas nesse espaço, são intercalados por planos estáticos, em que o quadro é composto pelo conflito da imobilidade dos objetos com as ações corriqueiras dos tipos. O arrastar do tempo é sentido a cada sequência. É um tempo sensorial que marca a evolução de ‘Do Leste’.
Um detalhe que amplia mais ainda o desnudamento distante desse mundo em mutação é a presença de várias frases e palavras soltas que as pessoas emitem em suas línguas nativas, mas que não são traduzidas para nós. Esses elementos sonoros se somam aos sons diegéticos para dar mais corpo ao registro detalhista do espaço capturado.
Uma boa leitura desse recurso usado por Akerman foi feita pela curadora da mostra com todos os filmes da diretora que ocupou o Centro Cultural Banco do Brasil há alguns anos, Carla Maia, durante a primeira apresentação do longa em São Paulo. Carla compara a linguagem não traduzida dessas pessoas ao conceito de Robert Bresson de que os sons devem servir a um filme como música de cena. É exatamente esse ritmo, que chega próximo a um andamento musical, que conduz o espectador ao longo desse extraordinário ‘Do Leste’.
Uau, nunca vou ver um filme dessa forma. Só estudando muito mesmo. Parabéns por cada palavra!
Obrigado