‘Hélio Oiticica’
O grande mérito desse documentário dirigido pelo sobrinho de Hélio, César Oiticica Filho, é a capacidade de unir (na e pela montagem) imagens de arquivo de várias fontes e gravações em áudio feitas pelo próprio artista ao longo de sua vida em um processo capacitador de grande força dialética, um dos principais elementos da obra de Hélio e que é matéria central do filme. Essa relação orgânica entre o documentário de César Oiticica e o pensamento e a obra de seu tio que fazem a grandeza desse longa, um dos mais interessantes documentários biográficos dos últimos anos.
A energia criativa de Hélio Oiticica, suas obras vanguardistas que tinham no conceito criador e na idéia conceitual de arte seu elemento central são difíceis de traduzir em um registro cinematográfico. A porosidade dessa arte singular de Oiticica com os ambientes e espaços que o cercavam (Rio, Londres, Nova York), bem como com as expressões e pulsões do tempo em que criou, tornou seu trabalho orgânico demais para ser captado dentro de simples espaços expositivos. A obra de Hélio precisa era ancorada em performances, em inter-relações físicas com os espaços e o público. Ela extrapola as galerias e vai para as ruas.
O documentário de César é capaz de traduzir muito do espírito da obra de Hélio exatamente por utilizar de maneira feliz as imagens (em sua maioria 8 milímetros, super 8 e 16mm) do artista e sua falas, em que ele expõe seu processo criativo, conta sua história e formação intelectual bem como divaga sobre assuntos e temas variados, mas sempre ligados ao criar, ao fazer e as manifestações artísticas. As imagens por vezes se referem diretamente às imagens que vemos na tela, mas por vezes imagens e texto falado se relacionam um com o outro de maneira autônoma, um reforçando a intensidade do outro, se contrapondo e se complementando, o que amplia força isolada que teriam de não estivesses montados com a eficiência que vemos no longa.
É exatamente o ritmo fragmentado e altamente dialético entre imagens e sons, entre tempos distintos da vida de Hélio e os mais diversos ambientes em que ele viveu e atuou que geram a força propulsora do documentário, que consegue, de maneira impressionista, compor um mosaico de imagens, movimento e discursos que penetram em camadas a obra e o pensamento de Hélio de maneira subjetiva, mantendo o filme aberto a interpretação e em constante diálogo com o que Hélio produziu, pensou e deixou como legado. Além disso, o filme resgata uma época, dos anos 50 aos 80, onde a criatividade, a invenção, a inquietação, o inconformismo e os questionamentos político-estéticos impulsionaram um dos grandes momentos das artes no Brasil e no mundo.
‘O Mercado de Notícias’
Cinema, como tudo na vida, é feito de escolhas. Esse clichê serve para entrarmos no novo filme de Jorge Furtado, o documentário ‘O Mercado de Notícias’. Para o filme, Furtado escolheu traçar um panorama dinâmico do jornalismo, desde sua função e funcionamento, até questões de manipulação da notícia e parcialidade ideológico-política das empresas de comunicação. Para compor esse panorama, temos o depoimento de 13 jornalistas, dos mais diferentes veículos, que falam diretamente para a câmera entrecortados por uma edição ágil. Para completar, Furtado apresenta trechos da peça ‘O Mercado de Notícias’, escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, em 1625 e que tem como tema a nascente imprensa inglesa do século 17.
O que fica do documentário é a impressão de que Furtado expôs diversas opiniões e conceitos, mas de uma maneira superficial, em que prefere o excesso de depoimentos curtos e a variedade de sub-temas em detrimento a um aprofundamento em algumas questões mais cruciais para um tema tão complexo quanto o poder político que a mídia exerce no país.
Isso não é um defeito do filme, e sim uma escolha de seu realizador. É como se Furtado quisesse que seu filme fosse apenas um mosaico de informações pontuais que o espectador possa usar como ponto de partida para tentar tirar suas próprias conclusões sobre o jornalismo praticado no país a partir de sua visão individual do tema no cotidiano. Outro ponto a deixar bem claro é que o discurso de Furtado, embora crítico, enaltece a profissão jornalismo.
O documentário tem um inegável valor, pelo teor dos depoimentos e pelos tópicos abordados, de propor um debate e de servir como uma espécie de guia de investigação sobre um tema atualíssimo como o papel político e econômico da mídia e as relações de poder e manipulação em que essa mídia exerce papel condutor na sociedade.
É notório, e alguns depoimentos deixam claro, que o jornalismo no Brasil segue a linha política ideológica das empresas, que quanto maiores, mais conservadoras. Para aqueles que acompanham o papel dessa imprensa, o filme deixa uma sensação de que poderia ser mais enfático no desmascaramento da falsa imparcialidade dos grandes jornais, portais, TVs e rádios. O documentário carece de mais confronto entre o realizador e os seus entrevistados. O fato de Furtado optar por depoimentos curtos, pela agilidade com que alterna os depoimentos e pela introdução de trechos da peça em meio aos temas, tira o impacto dos assuntos abordados isoladamente e reforçam a intenção do diretor em ser plural na temática.
Como exemplo, a pluralidade excessiva de discursos e temas distintos evitam o aprofundamento em um tema capital: o fato dos grupos de mídia já serem, há tempos, um dos poderes constituídos dentro da sociedade, com uma força e uma legitimação similares aos poderes executivos, legislativos e o judiciário. Isso é mencionado superficialmente no filme, mas acaba por se perder ao ser posto de lado para novos temas, uma nova enxurrada de depoimentos e uma variação frenética entre os muitos depoentes.
Muito dessa diluição da profundidade dos debates no longa de Furtado vem dessa tendência no documentário de ser ágil demais, de fazer com que um excesso de depoimentos curtos se atropelem, o que não permite que os entrevistados desenvolvam com mais tempo suas idéias e opiniões e impede o cineasta de expor mais camadas e texturas na apresentação de determinados temas. A própria inclusão da peça não funciona muito bem em ‘Mercado de Notícias’. O texto fica diluído e não consegue interagir como confronto ou mesmo diálogo com o que é falado pelos jornalistas e com os temas propostos pelo diretor.
‘O Mercado de Notícias’ toca em temas espinhosos como a linha política defendida pelos grandes veículos de informação apesar da dita imparcialidade de seus discursos, a perseguição dos principais grupos de mídia ao governo do PT, os factóides que são transformados em notícia, a relação dúbia entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão e o papel da Internet na renovação da maneira como a notícia chega ao público. Mas faz isso de maneira panorâmica. Furtado não se esquiva desses temas, ao mesmo tempo em que não se aprofunda neles. Fica um gosto de que o filme poderia ser mais.