Por Fernando Oriente
Um dos principais problemas da crítica é quando deixamos o ideal, os conceitos e as propostas políticas interferirem no julgamento de uma obra. Como uma pessoa abertamente de esquerda (no sentido socialista do termo), quando me deparo com filmes cuja matéria constituinte é composta por discursos de direita, mas cuja qualidade fílmica é notável, em termos formais, estéticos e de constituição dramática, minha admiração por tais filmes é incapaz de ser abalada. Logicamente que existe um limite ético que me impede de apreciar um cinema que tem na abjeção reacionária seu principal meio de existir e se expressar.
Coloco isso para falar de ‘Vontade Indômita’ (The Fountainhead), que King Vidor dirigiu em 1949. O filme é um esplendor cinematográfico, um dos mais extraordinários trabalhos de decupagem e encenação já registrados.
Cada cena é contaminada por uma força avassaladora, confeccionada por meio de uma mise-en-scéne que articula todos os detalhes, desde os posicionamentos primorosos de câmera, passando pela composição dos quadros e as modulações dos dramas, até a marcação e as inter-relações da narrativa com os espaços cênicos.
Tudo encadeado em um ritmo ágil e em uma evolução da montagem que reafirmam as propostas dramáticas por meio de uma sucessão veloz das situações narrativas, com ênfase em suas reviravoltas, elipses e conclusões.
‘Vontade Indômita’ é conduzido inteiramente em função e em defesa de um discurso, em que as idéias liberais e a justificação do individualismo empreendedor e artístico do protagonista são ancoradas por meio das construções de cena e do desenrolar narrativo. É um longa que assume claramente o partido de seu protagonista e suas ideias e usa todos os elementos cinematográficos na construção dessa retórica partidária. Um filme de ideologia.
Existe em cada sequência um cuidado em modular a dramaticidade da narrativa em função da defesa que Vidor faz desse discurso. A mise-en-scène trabalha para potencializar os objetivos e os ideais do arquiteto visionário. Trata-se de um filme que se apropria e enaltece seu objeto discursivo com todos os meios possíveis, uma obra que existe para sublimar uma posição político-social incorporada no personagem central.
Em meio a esse processo, é fundamental o papel que o dono do jornal exerce. Ele, que vinha de uma vida de desprezo pelo ser humano, encontra a redenção ao assumir os riscos e tomar as ações que o levam a defender, contra tudo e contra todos, o arquiteto. Ao se redimir, encontra um caminho de salvação existencial bem como uma função prática na imposição do ideário libertário e individualista que o filme abraça.
A geometria dos quadros, com a relação entre os ângulos e movimentos de câmera, a profundidade de campo e os posicionamentos e marcações de cena, tende a dar destaque presencial e moral ao personagem de Gary Cooper, seja em relação aos demais tipos no quadro, bem como em sua relação com os espaços cênicos. A forma do filme sempre destaca sua presença e glorifica suas atitudes em cena.
As relações do personagem com tudo o que o cerca, seja com a mulher que ama, seus projetos profissionais e suas ambições como arquiteto criador são ampliadas no processo da evolução narrativa, com notável destaque à força que as acentuadas elipses imprimem desenrolar da história. Por mais percalços que seu personagem enfrente, sua postura irá levá-lo obstinadamente em direção aos seus objetivos. O filme existe para garantir esse trajeto.
A decupagem em ‘Vontade Indômita’ oferece algumas das cenas mais marcantes do cinema clássico americano. A cena em que o personagem de Gary Cooper faz a defesa de seus ideais e ações no tribunal deveria ser estudada em escolas e cursos de cinema. Como um cineasta pode tirar o máximo de um discurso e transformá-lo em matéria cinematográfica pura, em todo seu potencial estético.
A cena final, com a personagem de Patricia Neal subindo dentro de um andaime em direção a um Gary Cooper parado no topo de um arranha-céu em construção, é outro momento monumental no filme. Uma sequência em que se sobressaem as escolhas de Vidor na construção dos planos (uma variação primorosa entre campo e contra-campo, entre plongê e contra-plongês) em função de uma decupagem que enaltece a força o discurso do filme ao mesmo tempo em que compõe uma conclusão extremamente impactante.
King Vidor é um dos maiores encenadores que o cinema já teve. Seus filmes mudos, como ‘O Grande Desfile’, de 1925 e ‘A Turba’, de 1928 estão entre os grandes longas realizados no período. Após a passagem ao som, e com os novos elementos desenvolvidos para a mise-en-scène, Vidor se aperfeiçoou ainda mais em obras como ‘Mãe Redentora’, de 1937 e ‘Duelo ao Sol’, de 1946. Mas talvez seja nesse ‘Vontade Indômita’ que o diretor tenha atingido seu ápice como realizador.
‘Vontade Indômita’ é um filme que defende o liberalismo individualista de direita ao mesmo tempo em que argumenta a favor da liberdade da criação artística. E um caso perfeito que demonstra como um longa pode defender conceitos totalmente contrários as minhas crenças políticas (ser de direita, no caso) e mesmo assim ser um filme primoroso. Impressionante.