Por Fernando Oriente
Nos anos 80 e início da década de 90, algumas capas das fitas de VHS com filmes pornôs tinham uma espécie de selo com as palavras “com história”. Era uma forma de diferenciar esses filmes de outros em que havia apenas cenas de sexo explícito em sequência, sem nenhuma trama, enredo ou amarração entre elas.
O que temos em ‘Ninfomaníaca’, de Lars Von Trier, é uma tentativa frustrada de criar dramas, conflitos e evolução narrativa para várias situações sexuais. Ao tentar fazer o seu pornô de butique ser “com história”, Lars se estrepa. Tudo o que acontece entre as sequências diretamente eróticas não tem substância alguma (não que essas sequências sexuais tenham algum valor). São tensões forçadas, confrontos rasos, muita afetação pseudo psicológica e momentos realmente constrangedores.
O principal problema de ‘Ninfomaníaca’, e dos fracos últimos filmes de Lars Von Trier (‘Manderlay’, ‘Anticristo’ e ‘Melancolia’, principalmente) é que o diretor se preocupa, quase que exclusivamente, com o grande “Tema” que irá abordar, com os psicologismos que associa a esses temas e com o marketing em que transformou sua obra e sua persona. Cinema e encenação parecem não serem as preocupações ou as metas reais dele.
No caso de ‘Ninfomaníaca’, o sexo (um elemento altamente cinematográfico, que pode render desde grandes planos a ótimos filmes) fica restrito aos maneiremos de Von Trier, a sua necessidade em construir impacto a qualquer custo e a obsessão do diretor em querer psicologizar tudo. Lars Von Trier insiste em querer passar mensagens, se esforça em ser um analista da alma humana, quer a todo custo abordar os sofrimentos existências de seu tempo. O problema é que ele faz tudo isso de maneira rasa e forçada, por meio de falsificações dramáticas infantis e pelo aspecto publicitário que imprime à construção e a evolução de seu filme.
Von Trier não se preocupa com as possibilidades, texturas, incertezas e questionamentos que uma dramaturgia cinematográfica bem encenada pode alcançar. Ele não se permite o risco e o erro (esse elemento humano tão importante no cinema sincero). O que faz é assumir a postura de quem tudo sabe, oferecer repostas prontas e não abrir espaço para problematizações, para o acaso e nem para deslocamentos do olhar. Com uma mise-en-scène esquemática e truncada e uma evolução engessada, ‘Ninfomaníaca’ é um filme em que situações mal ajambradas se repetem, se acumulam e se agridem entre si, não existe composição entre cenas, existe apenas uma evolução amontoada de momentos repetitivos, falsas surpresas e algumas poucas conclusões pífias. Von Trier tenta ser irônico e sarcástico, se esforça em introduzir elementos de humor crítico no filme, mas nunca consegue mais do gracejos toscos e cenas caricaturadas no grotesco.
Lars está contente em provocar com imagens explícitas fora de contexto, com truques (que servem de muleta para sua encenação torta) como a câmera tremida e os jump cuts ou com o apelo vulgar que imprime na atuação de seus atores, que surgem na tela quase todos com imensa canastrice. As caras e bocas de Charlotte Gainsbourg, sua fala empostada, seus silêncios pseudo-reflexivos e a seriedade mecânica que dá a sua personagem estão entre os (muitos) piores momentos de ‘Ninfomaníaca’.
Os personagens são todos estabelecidos em cima de pretensões dramáticas que em momento algum se tornam matéria no filme. Desde a protagonista Joe, (bem melhor quando interpretada por Stacy Martin do que Charlotte Gainsbourg) com sua total carência de densidade cênica e pretensões psicológicas, passando pela constrangedora esposa traída interpretada por Uma Thurman (cuja sequência em cena é uma das mais constrangedoras passagens do filme) até o péssimo personagem de Jerome (interpretado por um fraquíssimo Shia LaBeouf, em um erro grosseiro de casting do filme) temos um desfile de tipos sem densidades alguma, construídos em cima de clichês, frases de efeito, interpretações fora do tom e muita pretensão existencial.
A idéia de apresentar a protagonista como uma mulher que julga suas ações em cima de idéias de pecado, problemas de caráter e autocensura, ressalta o moralismo que Von Trier tenta, mas não consegue esconder do filme. Ela precisa se culpar o tempo inteiro enquanto conta sua história. Esse recurso, essa falsa culpa forçada, não permite que as ações de Joe existam por si, como parte atávica de uma mulher, mas sim como ações passivas de condenação, atos associados ao pecado e a uma autocomiseração piegas. Von Trier não abre espaço para os paradoxos, para as possibilidades constitutivas dos tipos e nem para o cinismo crítico.
A construção da narrativa a partir das histórias de vida que Joe conta para seu interlocutor, o intelectual celibatário Seligman, seriam para construir uma relação de choque entre o que é narrado e os comentários de Seligman e Joe sobre esses fatos. Essa tentativa de alternar uma análise fria e cheia de referências intelectuais de Seligman às ações e dramas de Joe levam a uma série de falsos conflitos sem (logicamente) nenhuma dialética.
Ao querer ser complexo e adentrar a psicanálise dramática, Von Trier é apenas patético. Usemos o esquematismo do filme e vamos enumerar uma série de situações capengas, perversões estéreis e situações que beiram o ridículo em ‘Ninfomaníaca’:
1- A viagem de trem em que Joe e a amiga caçam trepadas
2- A relação do pai da protagonista com as árvores (haja pretensão e cafonice)
3- As cenas de romance entre Joe e Jerome
4- A cena do orgasmo espontâneo seguida de levitação (um horror de pieguice na base de computação gráfica tosca)
5- O ménage à trois com os africanos
6- As sessões de sadomasoquismo
7- O intumescimento peniano do pedófilo registrado em closes, seguido por um boquete por comiseração
8- O espancamento de Joe com direito a mijada na cara
É melhor parar por aqui, mas outros momentos não faltam.
Em meio a um amontoado de metáforas e simbolismos pobres e forçados, Lars Von Trier raramente leva ‘Ninfomaníaca’ a algum lugar. Quando raramente o filme chega a alguma conclusão, ela é sempre piegas. Exemplos disso não faltam, como na cena em que Joe encontra “sua árvore” no topo de uma montanha ou nos reencontros forçados entre ela e Jerome. Isso sem contar o final, em que o piegas se junta a uma explicitação de outra obsessão mal resolvida em Lars: a fixação do diretor em afirmar que “o mundo é podre e o ser humano não presta”. A conclusão do filme ainda soma isso a uma tentativa de choque, cinismo e surpresa, mas tudo isso somado não passa do mais descarado marketing em que Von Trier transformou sua obra.
Os maneirismos do diretor também já se tornaram insuportáveis. A câmera tremida, os ângulos fechados e os saltos da montagem não funcionam mais. Esses elementos, que foram muito bem utilizados no ótimo ‘Ondas do Destino’ e fazem parte da própria estrutura narrativa do poderoso ‘Os Idiotas’ (só para citar seus dois melhores trabalhos), em seus longas atuais não passam de afetações estilísticas que servem para esconder a incapacidade do diretor em construir planos e decupar cenas.
‘Ninfomaníaca’ pode afirmar (como no pôster do filme) para que “se esqueça o amor”. O problema é que não dá para se fazer um filme e esquecer o que é cinema.
Achei um filme sensacional…Todos esses “erros” que você aponta, só sao erros porque voce assim os julga. Nao seja tao pretensioso e inocente em afirmar que um diretor como o Lars nao tenha certeza de suas escolhas. Mas daí a você entender ou nao, sentir ou nao… O filme tem um forte ataque aos críticos e aos moralistas… Entao qualquer um que goste de interpretar algum desses papeis, vai encena-los com muita paixao. Ataques primários. O cinema tem que ir mais além, tudo é possível… Críticas como essas foram feitas a Godard quando lancou O Acossado… Claro, qdo hj se fala sobre isso, ja se pode dizer que nao, explicar os motivos… Bem, vamos esperar…
Oi João,
muitos gostaram do filme, respeito e entendo.
Mas em nenhum momento disse que o Lars Von Trier não tenha certeza de suas escolhas. Com certeza ele tem.
São essas escolhas, tanto estéticas quantos de conceitos e, principalmente, de marketing, que eu não gosto.
Mas isso é uma opinião, minha no caso.
Quanto mais opiniões, melhor.