É a partir de ‘Casa de Lava’, em 1994, que Pedro Costa começa a construir uma das obras (seu cinema, proposta estética, materialidade e forma) mais importantes do cinema contemporâneo mundial. Sem desconsiderar o belíssimo ‘O Sangue’ (1989), é com “Casa de Lava” que Costa passa a imprimir as singularidades de suas imagens, a composição rigorosa dos planos, a variação da luminosidade, a cadência da montagem que permite a sucessão sensorial entre planos de força autônoma (mas que somados geram sentido de completude), a construção de personagens com camadas profundas, as relações complexas entre tipos e ambientes e a acepção de um mundo em que pessoas derivam em busca de sentido para si mesmas e em tentativas de decifrar o outro, a história e o espaço em que estão inseridas.
Como pano de fundo estão presentes questões classes, conflitos étnicos, a opressão ao indivíduo, o estado de esfacelamento político da sociedade e as cicatrizes de civilizações construídas na dissonância entre os seres, entre colonizadores e colonizados. Pedro Costa põe tudo isso em seus filmes e muito mais, já que seu cinema é incapaz de ser analisado e apreendido de forma simplista. É um realizador que se coloca sempre em evolução de forma e conteúdo. São filmes que o espectador sente em sua materialidade e fora de zonas de conforto (que não permitem explicações rasas) e que reconduzem a contemplação do público, forçando a uma visão mais ampla do esplendor que se desprende da tela.
‘Casa de Lava’ dialoga diretamente com ‘Juventude em Marcha’ (2006) e ambos se dirigem e se refletem em ‘No Quarto da Vanda’ (2000), além de formarem um sólido conjunto com o universo de “Ossos” (1997). Embora seja em ‘Casa de Lava’ que exista o movimento contrário em relação aos outros filmes: é a personagem européia que sai de seu continente e vai para África, para as terras colonizadas. Aqui a branca é a imigrante, a deslocada de seu meio natural. Essa simbiose entre seus filmes mostra a densidade e o jogo de texturas que compõem sua filmografia, um cinema aberto ao mundo, em que se chega ao todo a partir do mínimo.
‘Casa de Lava’ acompanha a viagem da enfermeira Mariana (Inês Medeiros) à antiga colônia portuguesa de Cabo Verde. Mariana leva Leão, um operário cabo-verdiano que, após sofrer um acidente na construção em que trabalha em Lisboa, ganha direito de voltar, mesmo em aparente estado de coma, para sua terra natal. A simplicidade dos motes dramáticos se abre para as possibilidades de Pedro Costa construir seu sofisticado discurso. Esse discurso está na construção de cenas que mostram a inércia melancólica dos moradores da ilha, a presença da morte, o medo, travestido de indiferença, em reconhecer, receber e acolher Leão, bem como a incapacidade de Mariana em se comunicar e se entender com aquelas pessoas.
Existe de maneira intensa na figura da enfermeira a representação do deslocamento do europeu em meio a um mundo que foge de sua compreensão. Ela se vê dentro de uma comunidade (ou o que sobrou dela) em que os tipos locais interagem entre si entre a sensação de morte (simbólica e física) que paralisa o tempo e o efeito de tudo o que o tempo levou daquele lugar, sejam pessoas, esperanças ou sentimentos. A viagem de Mariana pode ser vista como sua fuga de Lisboa, de um lugar que não faz mais sentido para ela. É esse sentido que ela busca em Cabo Verde, é a ela mesma, em sua essência, que ela procura em sua jornada. Ao tentar ajudar as pessoas, ela procura reconstruir a imagem dela mesma. Ao não entender aquele universo, ao se perder naquele espaço que ela vislumbra seu próprio papel no mundo, sua capacidade ou incapacidade de ser.
Pedro Costa capta as possibilidades infinitas do espaço onde se desenrolam as ações. Os enquadramentos, os ângulos da câmera, os movimentos internos dos planos e a luz que varia de forma a traduzir a diegese das situações fazem da composição de quadro o real sentido de tudo o que o cineasta quer comentar, questionar e propor sobre o material que constitui seu filme. Esse espaço primorosamente aberto pelos quadros compreende uma virulenta noção de tempo. Simultaneamente em que o filme observa de diversas maneiras a relação espaço temporal, ele faz com se sinta o tempo, seus efeitos, o que já passou e o que está por vir, tudo compreendido dentro do tempo presente que Costa eleva a infinitas possibilidades dentro de cada plano.
Nunca é demais ressaltar a sofisticação na construção de planos nos filmes de Pedro Costa. Embora a câmera se mexa mais em ‘Casa de Lava’, com travellings variados e algumas panorâmicas marcantes, o posicionamento da câmera, a distância entre a lente os personagens, objetos e cenários segue o mesmo padrão rigoroso que podemos ver em ‘Ossos’, ‘No Quarto da Vanda’ ou ‘Juventude em Marcha’, embora o rigor da geometria do quadro seja mais solto em ‘Casa de Lava’.
A principal diferença é que em ‘No Quarto da Vanda’ e ‘Juventude em Marcha’, os planos estáticos e a relação entre o dentro e fora de quadro, bem como o reposicionamento de eixos nos enquadramentos, tenham um destaque maior e sirvam para acentuar o que está sendo proposto a cada cena. A ausência da maior incidência desses recursos em ‘Casa de Lava’ não torna o filme menor esteticamente em oposição aos outros. Essa sutil mudança formal acompanha a evolução do discurso de Costa de um filme para outro, a mudança na cadência e na forma que o cineasta usa para construir o espaço-tempo de sua dramaturgia, a evolução da sua coerência discursiva.
O cinema de Pedro Costa busca sempre as pessoas e os espaços, e dessa busca compõe a relação política entre eles. O rigor construtivo do cineasta português une o tecido humano ao existir político que todos somos parte. Não existe cinema sem política para Costa. O tempo presente de seus filmes carrega séculos de relações de dominação, de chagas da colonização, de conflitos raciais e da eterna luta de classes, amplia as consequências da pobreza e da miséria, sem abandonar o fator de que se dirigir ao outro, fazer parte de uma comunidade é um ato de resistência e uma maneira de ato-afirmação também política.
‘Casa de Lava’ é o primeiro fragmento de uma obra ainda em construção. É o início da cinematografia colossal que Pedro Costa realiza e que faz com que aguardemos ansiosamente por seus novos filmes, pela continuidade desse cinema com que o Costa eleva as expectativas em suas possibilidades. O cinema com Pedro Costa mostra que sempre pode ir além do que já estamos acostumados. Enorme Pedro Costa! Enorme!