Por Fernando Oriente
Primeiro longa de Glenda Nicácio e Ary Rosa, ‘Café com Canela’ é um acontecimento notável no cenário do cinema contemporâneo. Por trás de sua fusão de estilos (uso de elementos do cinema como linguagem), em que a gramática cinematográfica é manipulada constantemente pelos diretores – tanto nas representações, construções e apresentação das imagens, como na evolução narrativa não-linear, bem como na montagem descontínua e na utilização para além do campo da banda sonora -, o filme vai, a cada plano, se mostrando como um discurso orgânico cheio de camadas – em que representações e simbologias do Brasil de hoje (que ecoam o peso histórico, cultural e simbólico do passado) se fazem perceber e sentir em meio ao fluir desconcertante da dramaturgia. Relações afetuosas vão se solidificando entre as personagens em seus encontros e reencontros que resgatam e sobrepujam o peso sensível do passado ao mesmo tempo em que oferecem maneiras de lidar e superar os novos dramas que surgem. A preciosa utilização imagética dos ambientes e locações, como tudo é inserido dentro de um espaço-tempo que se descortina de múltiplas formas expositivas em sua força material, seja na presença física dos tipos, seus agenciamentos dentro dos ambientes diegéticos, seja no encantamento provocado por tudo o que vemos, refletimos e projetamos na tela – assim é esse filme que não tem o menor medo de arriscar, de experimentar, ao mesmo tempo em que conserva uma essência representativa do mundo real que não deixa de se oferecer objetivamente ao espectador, provocando engajamento, envolvimento e emoção, ao propor uma representação da vida ordinária como matéria discursiva e narrativa.
‘Café com Canela’, com sua potência significativa impressa na superfície das imagens, remete à Merleau-Ponty: “Um filme não é pensado; ele é percebido”. E no caso do longa de Rosa e Nicácio ele é percebido numa síntese da dialética entre a representação transparente de uma realidade encenada e a manipulação constante do dispositivo cinematográfico em que a imagem transparente é a todo momento questionada e fortalecida pela sua presença material impressa na textura dessas imagens – que se deixam ver como matéria construída e manipulada. É nesse paradoxo entre imagem como representação (fluência) e imagem como presença (suspensão) que o filme extrai uma força simbólica que ao mesmo tempo em que leva ao deslocamento do olhar e expõe os mecanismos desse dispositivo, confere potência de “verossimilhança” e identificação aos dramas encenados e a evolução narrativa, tanto nas questões dos intertextos do discurso quanto na relação entre personagens e ações que se desenrolam.
Tudo é construído pelos diretores em função de uma fé apaixonada na imagem. A relação entre as protagonistas – a reclusa Margarida e a passional Violeta – e o envolvimento delas com os demais tipos (personagens coadjuvantes imensos em suas texturas e importância dramático-discursivas) e as pequenas ações que povoam o universo dramático, bem como as transformações subjetivantes por que passam, são trazidas à tela e inseridas no desenvolvimento narrativo por meio de uma mise-en-scène contagiante em sua potência criadora de energia vital que celebra o instante, os detalhes, as pequenos atos e gestos, as modulações nas expressões dos rostos; o estar no mundo – as alegrias e dores, esperanças e dúvidas, medos e superações.
O repertório de linguagens e estilos cinematográficos utilizados por Ary Rosa e Glenda Nicácio são fundamentais para a construção do todo de ‘Café com Canela’. O virtuosismo formal é totalmente necessário para a força do discurso e das narrativas produzidas. Nada é gratuito. É a forma que condiciona e determina esse discurso. É difícil e até desnecessário enumerar todos os diferentes tratamentos estilísticos e opções de construção de som e imagem, de escolhas de montagem, de composição da evolução narrativa, alternativas de decupagem e da auto-exposição do fazer cinematográfico (os usos e deslocamentos do dispositivo). São tantos e todos se relacionam da maneira mais harmoniosa possível com o filme. ‘Café com Canela’ trabalha numa construção temporal cíclica e na montagem faz uso constante de técnicas de ruptura de continuidade – como jump-cuts, falsos raccords, cortes secos no meio das ações, split-screams e fusão de sons e imagens dessincronizados (em que diferentes tempos, passado e presente, coabitam – ora juntos na cena, ora em montagem paralela). Na questão de registro e composição das imagens vamos de longos planos estáticos a breves takes com câmera na mão, a junção de sequências captadas em vídeo (que evocam o passado e a memória de Margarida) com cenas gravadas em digital HD, até a mudança da janela de projeção e a inserção bruta de planos subjetivos em meio ao olhar objetivo da câmera.
Tudo serve para ampliar as sensações e estados de espírito dos personagens bem como a força expressiva das cadeias narrativas e as associações desviantes diante do encadeamento lógico das ações num tempo cíclico e impossível de ser representado de maneira linear. São imagens e sons que deslizam uns sobre os outros, ao mesmo tempo em que se referem constantemente entre si por meio desses deslizamentos. Não é uma mimetização do real e do cotidiano que interessa aos realizadores, o que importa é como tudo é representado (recriado) por meio das mediações imagéticas e sonoras, pelas descontinuidades dramático-narrativas; o fluir descontínuo da vida em que a morte está sempre presente como horizonte, mas não anula as pulsões das personagens e nem interrompem o desencadeamento fragmentado da existência.
Uma encenação que se abre às incorporações do acaso, que organiza as ações no espaço de maneira em que a própria vida (tornada imagem e som) é matéria de celebração e questionamento. Uma realidade recriada em que valorizamos o específico das personagens, seus atos e o meio em que estão inseridas, ao mesmo tempo em que projetamos uma ideia de Brasil, de um país que surge dessa multiplicidade de identidades culturais, sotaques, tradições, precariedade e paradoxos – um Brasil que sabemos que maioria da população é composta por pessoas negras ou pardas e onde as mulheres são maioria. Uma realidade que não anula as hierarquias sociais e a luta de classes, mas que valoriza o que de mais autêntico existe por trás de uma identidade brasileira que resiste, se reafirma e se reinventa. Ary Rosa e Glenda Nicácio promovem uma dramaturgia que vem do embate direto com seus protagonistas, no uso sem receios da constante mudança nas formas de registro e passa bem longe de classificações e esquemas generalistas da antropologia ou da sociologia institucional. Um olhar horizontal e cúmplice entre os realizadores e seus personagens.
A câmera de Nicácio e Rosa, ao mesmo tempo em que revela a transparência de uma realidade representada como um duplo do real captado no mundo imante (no sentido de André Bazin) se permite registrar situações fantásticas sem o menor pudor de unir o fantasmático, o anti-naturalista e a exposição dos mecanismos do dispositivo ao mundo orgânico de aparências imanentes em que se dão os acontecimentos encenados. Essa fé apaixonada na imagem é colocada na epiderme da tela por meio de uma contemplação reveladora que se insinua ao dirigir nosso olhar a uma realidade recriada por meio de imagens e sons, no valor transcendente desse mundo banal e vibrante captado pela câmera que surge como uma representação da ambiguidade e do mistério que estão presentes nos próprios personagens e cenários, nas ações, nos objetos, nas incidências e modulações da luz, nos rituais do viver o dia a dia; tudo transformado em agentes de potencialização de laços afetivos que acertam conta com o passado e ressignificam o presente.
‘Café com Canela’ promove uma potencialização da vida que está no maravilhamento de um olhar o mundo e se identificar com ele negando qualquer visão absoluta de verdade e certezas, admitindo que o estar no mundo é estar inserido nas ambiguidades, no mistério, na incompletude fundamental da percepção que permite ao filme (ao cinema) promover a crença nas aparências dadas e captadas na imagem, na essência dos fenômenos como fragmentos que auto-revelam múltiplas possibilidades e significações por meio da organização dos elementos espaço-temporais dessas aparências orquestrados em uma encenação da vida mediada pelo dispositivo cinematográfico.
Dentre as tantas digressões operadas no interior do desenvolvimento do filme, temos uma cena memorável em meio a tantos outros momentos fascinantes: sentadas no chão da casa que começam a arrumar e limpar, Margarida faz uma análise da relação que tem dentro de uma sala de cinema. Teoriza sobre o papel do espectador e sobre as qualidades, atrativos e projeções que valoriza nos filmes. Logo após concluir sua fala, Violeta pergunta se cinema é tudo isso e então ela também faz um breve comentário sobre a relação filme-espectador, ao lembrar que quando era criança se perguntava se os personagens dos filmes eram apenas vistos por ela ou se também a viam em meio à plateia. Nesse momento Violeta lança um breve olhar ao ante-campo e nos encara, fazendo com que nos desloquemos da passividade de voyeurs e nos percebamos como agentes de um olhar direcionado do filme para nós.
É o colocar-se em contato com o outro, permitir-se ser tocado e transformado pela relação que se estabelece com esse outro – aqui a relação construída entre Violeta e Margarida, bem como entre elas e todos os personagens que surgem e desaparecem e ainda de todos eles com nós (os espectadores) – que está no centro da dramaturgia aberta de ‘Café com Canela’. Aberta às apropriações significantes do mundo, às surpresas de cada novo encontro, ao devir presente nos pequenos gestos, nos pequenos rituais como sentar-se à mesa para tomar um café (com canela) e conversar sobre o passado e o presente ou simplesmente escolher entre tomar cerveja ou andar de bicicleta. É ressignificar perdas, reafirmar conquistas, fazer nascer esperanças e se adaptar ao inevitável que faz das personagens o centro de uma narrativa que se projeta além da relação bilateral entre as duas e se insinua no convívio de cada uma com os demais personagens, bem como na relação delas com seus próprios cotidianos – e como tudo isso se lança sobre quem assiste ao filme, constantemente deslocando o espectador em sua passividade e tornando-o cúmplice do que da tela se projeta nele.
É nessa narrativa concentrada no Recôncavo da Bahia que surge uma das mais poderosas representações do Brasil contemporâneo. Personagens apaixonantes – Violeta e Margarida e aqueles que as cercam – que operam um momento de transição mais do que necessário do nosso olhar a respeito de representatividade – sendo os personagens e a região onde estão inseridos em seu dia a dia uma representação orgânica do lugar e do protagonismo da identidade brasileira – múltipla, sem heroísmos idealistas, sem arquétipos totalizantes, incompleta e imperfeita, mas de uma autenticidade que vem da dignidade (no sentido da ética das imagens) com que Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem em ‘Café com Canela’ um universo diegético em que o real imanente das aparências – reorganizado de maneira fragmentária e revelando-se em sua materialidade – faz brotar a prosa e também a poesia de um mundo como potência de criação e liberdade – e nesse mundo a vida, as pessoas, a matéria, as cores, a luz e os sons como presença pura dadas ao nosso olhar e ao nosso sentir.