‘Café com Canela’, de Ary Rosa e Glenda Nicácio

Por Fernando Oriente

Primeiro longa de Glenda Nicácio e Ary Rosa, ‘Café com Canela’ é um acontecimento notável no cenário do cinema contemporâneo. Por trás de sua fusão de estilos (uso de elementos do cinema como linguagem), em que a gramática cinematográfica é manipulada constantemente pelos diretores – tanto nas representações, construções e apresentação das imagens, como na evolução narrativa não-linear, bem como na montagem descontínua e na utilização para além do campo da banda sonora -, o filme vai, a cada plano, se mostrando como um discurso orgânico cheio de camadas – em que representações e simbologias do Brasil de hoje (que ecoam o peso histórico, cultural e simbólico do passado) se fazem perceber e sentir em meio ao fluir desconcertante da dramaturgia. Relações afetuosas vão se solidificando entre as personagens em seus encontros e reencontros que resgatam e sobrepujam o peso sensível do passado ao mesmo tempo em que oferecem maneiras de lidar e superar os novos dramas que surgem. A preciosa utilização imagética dos ambientes e locações, como tudo é inserido dentro de um espaço-tempo que se descortina de múltiplas formas expositivas em sua força material, seja na presença física dos tipos, seus agenciamentos dentro dos ambientes diegéticos, seja no encantamento provocado por tudo o que vemos, refletimos e projetamos na tela – assim é esse filme que não tem o menor medo de arriscar, de experimentar, ao mesmo tempo em que conserva uma essência representativa do mundo real que não deixa de se oferecer objetivamente ao espectador, provocando engajamento, envolvimento e emoção, ao propor uma representação da vida ordinária como matéria discursiva e narrativa.

Café com Canela

‘Café com Canela’, com sua potência significativa impressa na superfície das imagens, remete à Merleau-Ponty: “Um filme não é pensado; ele é percebido”. E no caso do longa de Rosa e Nicácio ele é percebido numa síntese da dialética entre a representação transparente de uma realidade encenada e a manipulação constante do dispositivo cinematográfico em que a imagem transparente é a todo momento questionada e fortalecida pela sua presença material impressa na textura dessas imagens – que se deixam ver como matéria construída e manipulada. É nesse paradoxo entre imagem como representação (fluência) e imagem como presença (suspensão) que o filme extrai uma força simbólica que ao mesmo tempo em que leva ao deslocamento do olhar e expõe os mecanismos desse dispositivo, confere potência de “verossimilhança” e identificação aos dramas encenados e a evolução narrativa, tanto nas questões dos intertextos do discurso quanto na relação entre personagens e ações que se desenrolam.

Tudo é construído pelos diretores em função de uma fé apaixonada na imagem. A relação entre as protagonistas – a reclusa Margarida e a passional Violeta – e o envolvimento delas com os demais tipos (personagens coadjuvantes imensos em suas texturas e importância dramático-discursivas) e as pequenas ações que povoam o universo dramático, bem como as transformações subjetivantes por que passam, são trazidas à tela e inseridas no desenvolvimento narrativo por meio de uma mise-en-scène contagiante em sua potência criadora de energia vital que celebra o instante, os detalhes, as pequenos atos e gestos, as modulações nas expressões dos rostos; o estar no mundo – as alegrias e dores, esperanças e dúvidas, medos e superações.

O repertório de linguagens e estilos cinematográficos utilizados por Ary Rosa e Glenda Nicácio são fundamentais para a construção do todo de ‘Café com Canela’. O virtuosismo formal é totalmente necessário para a força do discurso e das narrativas produzidas. Nada é gratuito. É a forma que condiciona e determina esse discurso. É difícil e até desnecessário enumerar todos os diferentes tratamentos estilísticos e opções de construção de som e imagem, de escolhas de montagem, de composição da evolução narrativa, alternativas de decupagem e da auto-exposição do fazer cinematográfico (os usos e deslocamentos do dispositivo). São tantos e todos se relacionam da maneira mais harmoniosa possível com o filme. ‘Café com Canela’ trabalha numa construção temporal cíclica e na montagem faz uso constante de técnicas de ruptura de continuidade – como jump-cuts, falsos raccords, cortes secos no meio das ações, split-screams e fusão de sons e imagens dessincronizados (em que diferentes tempos, passado e presente, coabitam – ora juntos na cena, ora em montagem paralela).  Na questão de registro e composição das imagens vamos de longos planos estáticos a breves takes com câmera na mão, a junção de sequências captadas em vídeo (que evocam o passado e a memória de Margarida) com cenas gravadas em digital HD, até a mudança da janela de projeção e a inserção bruta de planos subjetivos em meio ao olhar objetivo da câmera.

'Café com Canela

Tudo serve para ampliar as sensações e estados de espírito dos personagens bem como a força expressiva das cadeias narrativas e as associações desviantes diante do encadeamento lógico das ações num tempo cíclico e impossível de ser representado de maneira linear. São imagens e sons que deslizam uns sobre os outros, ao mesmo tempo em que se referem constantemente entre si por meio desses deslizamentos. Não é uma mimetização do real e do cotidiano que interessa aos realizadores, o que importa é como tudo é representado (recriado) por meio das mediações imagéticas e sonoras, pelas descontinuidades dramático-narrativas; o fluir descontínuo da vida em que a morte está sempre presente como horizonte, mas não anula as pulsões das personagens e nem interrompem o desencadeamento fragmentado da existência.

Uma encenação que se abre às incorporações do acaso, que organiza as ações no espaço de maneira em que a própria vida (tornada imagem e som) é matéria de celebração e questionamento. Uma realidade recriada em que valorizamos o específico das personagens, seus atos e o meio em que estão inseridas, ao mesmo tempo em que projetamos uma ideia de Brasil, de um país que surge dessa multiplicidade de identidades culturais, sotaques, tradições, precariedade e paradoxos – um Brasil que sabemos que maioria da população é composta por pessoas negras ou pardas e onde as mulheres são maioria. Uma realidade que não anula as hierarquias sociais e a luta de classes, mas que valoriza o que de mais autêntico existe por trás de uma identidade brasileira que resiste, se reafirma e se reinventa. Ary Rosa e Glenda Nicácio promovem uma dramaturgia que vem do embate direto com seus protagonistas, no uso sem receios da constante mudança nas formas de registro e passa bem longe de classificações e esquemas generalistas da antropologia ou da sociologia institucional. Um olhar horizontal e cúmplice entre os realizadores e seus personagens.

A câmera de Nicácio e Rosa, ao mesmo tempo em que revela a transparência de uma realidade representada como um duplo do real captado no mundo imante (no sentido de André Bazin) se permite registrar situações fantásticas sem o menor pudor de unir o fantasmático, o anti-naturalista e a exposição dos mecanismos do dispositivo ao mundo orgânico de aparências imanentes em que se dão os acontecimentos encenados. Essa fé apaixonada na imagem é colocada na epiderme da tela por meio de uma contemplação reveladora que se insinua ao dirigir nosso olhar a uma realidade recriada por meio de imagens e sons, no valor transcendente desse mundo banal e vibrante captado pela câmera que surge como uma representação da ambiguidade e do mistério que estão presentes nos próprios personagens e cenários, nas ações, nos objetos, nas incidências e modulações da luz, nos rituais do viver o dia a dia; tudo transformado em agentes de potencialização de laços afetivos que acertam conta com o passado e ressignificam o presente.

‘Café com Canela’ promove uma potencialização da vida que está no maravilhamento de um olhar o mundo e se identificar com ele negando qualquer visão absoluta de verdade e certezas, admitindo que o estar no mundo é estar inserido nas ambiguidades, no mistério, na incompletude fundamental da percepção que permite ao filme (ao cinema) promover a crença nas aparências dadas e captadas na imagem, na essência dos fenômenos como fragmentos que auto-revelam múltiplas possibilidades e significações por meio da organização dos elementos espaço-temporais dessas aparências orquestrados em uma encenação da vida mediada pelo dispositivo cinematográfico.

Dentre as tantas digressões operadas no interior do desenvolvimento do filme, temos uma cena memorável em meio a tantos outros momentos fascinantes: sentadas no chão da casa que começam a arrumar e limpar, Margarida faz uma análise da relação que tem dentro de uma sala de cinema. Teoriza sobre o papel do espectador e sobre as qualidades, atrativos e projeções que valoriza nos filmes. Logo após concluir sua fala, Violeta pergunta se cinema é tudo isso e então ela também faz um breve comentário sobre a relação filme-espectador, ao lembrar que quando era criança se perguntava se os personagens dos filmes eram apenas vistos por ela ou se também a viam em meio à plateia. Nesse momento Violeta lança um breve olhar ao ante-campo e nos encara, fazendo com que nos desloquemos da passividade de voyeurs e nos percebamos como agentes de um olhar direcionado do filme para nós.

'Café com Canela'

É o colocar-se em contato com o outro, permitir-se ser tocado e transformado pela relação que se estabelece com esse outro – aqui a relação construída entre Violeta e Margarida, bem como entre elas e todos os personagens que surgem e desaparecem e ainda de todos eles com nós (os espectadores) – que está no centro da dramaturgia aberta de ‘Café com Canela’. Aberta às apropriações significantes do mundo, às surpresas de cada novo encontro, ao devir presente nos pequenos gestos, nos pequenos rituais como sentar-se à mesa para tomar um café (com canela) e conversar sobre o passado e o presente ou simplesmente escolher entre tomar cerveja ou andar de bicicleta. É ressignificar perdas, reafirmar conquistas, fazer nascer esperanças e se adaptar ao inevitável que faz das personagens o centro de uma narrativa que se projeta além da relação bilateral entre as duas e se insinua no convívio de cada uma com os demais personagens, bem como na relação delas com seus próprios cotidianos –  e como tudo isso se lança sobre quem assiste ao filme, constantemente deslocando o espectador em sua passividade e tornando-o cúmplice do que da tela se projeta nele.

É nessa narrativa concentrada no Recôncavo da Bahia que surge uma das mais poderosas representações do Brasil contemporâneo. Personagens apaixonantes – Violeta e Margarida e aqueles que as cercam – que operam um momento de transição mais do  que necessário do nosso olhar a respeito de representatividade –  sendo os personagens e a região onde estão inseridos em seu dia a dia uma representação orgânica do lugar e do protagonismo da identidade brasileira – múltipla, sem heroísmos idealistas, sem arquétipos totalizantes, incompleta e imperfeita, mas de uma autenticidade que vem da dignidade (no sentido da ética das imagens) com que Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem em ‘Café com Canela’ um universo diegético em que o real imanente das aparências – reorganizado de maneira fragmentária e revelando-se em sua materialidade – faz brotar a prosa e também a poesia de um mundo como potência de criação e liberdade –  e nesse mundo a vida, as pessoas, a matéria, as cores, a luz e os sons como presença pura dadas ao nosso olhar e ao nosso sentir.

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‘O Animal Cordial’, de Gabriela Amaral Almeida

Por Fernando Oriente

Os dois primeiros planos de ‘O Animal Cordial’ servem como uma aproximação a um espaço restrito em que todo o filme irá se desenrolar, lugar esse que não será jamais abandonado em sua crescente e sufocante claustrofobia. Quando vemos através da janela o interior do restaurante já quase vazio, prestes a fechar, é como se câmera de Gabriela Amaral Almeida desse a última espiada num ambiente antes de penetrá-lo e, nessa intromissão, carregar o espectador para a clausura isolada de um espaço em que nem personagens nem público terão como escapar. Aprisionados, nós e os personagens seremos testemunhas, agentes e cúmplices de uma explosão de violência. Violência bruta e da qual a diretora extrai o máximo de potência plástica sem se preocupar com justificativas narratológicas. O que passa a tomar conta da imagem é a materialização da brutalidade, o confronto físico e psicológico, o prazer e o impulso de aniquilar e subjugar o outro; reações que surgem a cada novo fato dado e que trazem uma amálgama de recalque exteriorizado, conflitos de classe e gênero, aliados ao prazer erótico de se mutilar a carne e anular o outro. Violência é elemento de gozo e poder, um poder frágil que precisa de mais violência para se manter e continuar a gozar.

O Animal Cordial

As primeiras cenas de interior já estão carregadas de uma tensão que gradualmente sugerem fissuras dramáticas na imagem, transparecendo o desconforto e a animosidade com que as pessoas dentro desse restaurante se relacionam. Inácio, o dono do restaurante (Murilo Benício), despreza e é desprezado por todos seus funcionários, com exceção da garçonete Sara (Luciana Paes). Seu principal antagonista, fruto de enraizadas construções sociais baseadas nas hierarquias impostas entre opressores e oprimidos, é o cozinheiro homossexual Djair (Irandhir Santos).  Os únicos clientes que jantam poucos minutos antes da “cozinha fechar” são um casal típico de uma classe média arrogante e um solitário que está mais preocupado em beber doses de uísque do que em comer. É o descaso, a suspeita e a antipatia com o outro que fornecem o tecido dramático das relações entre todos. É interessante notar como Gabriela Amaral faz de um restaurante com pretensões “gourmet” – esse espaço vendido e consumido pelas classes médias como local de lazer e prazer “sofisticado” – um ambiente de desconforto e de tensão desde as primeiras sequências. Existe no quadro, nas modulações da dramaturgia, a iminente sensação de brutalidade que virá à tona quando dois assaltantes invadem o restaurante.

A posição de predador e vítima é logo invertida, quando Inácio anula os assaltantes e passa a dar as cartas. Mas não é só os ladrões que passam a ser dominados por ele. Todos dentro do restaurante passam a ser controlados e ameaçados por Inácio. Aqui as tensões entre patrão e empregados, clientes e funcionários, classe média e pobres e de todos entre si começam a fugir de controle e são direcionadas ou reprimidas exclusivamente por aquele que controla a situação por meio da força, do poder contido na arma que empunha. Desse ponto em diante, Gabriela Almeida Amaral faz do que seria um simples roubo malsucedido um verdadeiro acerto de contas entre os instintos reprimidos (de classe, gênero, bem como de deslocamentos subjetivos) daqueles tipos enclausurados. A centelha provoca pela invasão dos assaltantes libera toda carga de violência que Inácio carrega, violência essa que irá se transferir gradualmente aos demais agentes desse jogo brutal.

'O Animal Cordial'

Sem se preocupar em explicações psico-sociologizantes, ‘O Animal Cordial’ irá promover uma verdadeira explosão de brutalidade em que pulsões recalcadas se materializam em mortes, torturas psicológicas, sexo e expiações. Inácio torna-se um vingador de causa nenhuma, passa a eliminar e subjugar todos, sem distinção. É o típico homem  branco e heterossexual brasileiro dos dias de hoje (cordial e “de bem”) que, perdido na banalização dos discursos de ódio que tomam conta de todas as esferas das interrelações, transforma em ação a violência e a vulgarização pela vida que carrega dentro de si – um opressor legitimado a oprimir.

O ponto forte que liga as ações, a tensão e o suspense do que está por se materializar na imagem está na personagem de Sara. Se de todos os tipos em cena o filme nas dá dúbias pistas de identidade, ela é a única de quem não temos rastros, não sabemos quem é – se esse é seu verdadeiro nome, qual sua ligação com os outros personagens e se tem ou não alguma coisa a ver com o roubo fracassado. Sem esse vínculo com o que poderia ser sugerido pelo extracampo, Sara é apenas a imagem que vemos na tela. Sua existência se resume a suas ações, gestos, inquietações, flutuações pulsionais, sua presença e suas transformações dentro do quadro. Acuada em um primeiro momento, ela vai se soltando a cada morte, ao sangue dos outros que é constantemente derramado e a cada promessa de novas agressões. Se une a Inácio e passa a ser sua cúmplice na espiral de brutalidade que toma conta da narrativa. Dessa cumplicidade nasce sua força e a sensação de um poder crescente, que se potencializa na pulsão erótica que a violência faz emergir nela e que culmina em uma trepada catártica com Inácio, com seus corpos sujos de sangue se contorcendo em meio aos cadáveres e as marcas da brutalidade que desarranjam todo o espaço. É no corpo de Sara em meio a uma situação caótica que está seu poder, seu gozo e a força que irá fazer com que entre os destroços de uma carnificina seja a última a ficar em pé e dar sequência às mutilações. Sua carne ferida e saciada irá terminar o processo de aniquilação dos demais corpos que seu chefe deu início.

Gabriela Almeida Amaral faz desse seu primeiro longa uma extensão do que havia construído em seus curtas e ainda vai além. Se no seu cinema anterior, em curtas como ‘O Terno’ ‘A Mão Que Afaga’ ou ‘Estátua’, já tínhamos a predileção por narrativas enclausuradas em espaços fechados e cheias tensão e horror psicológicos sugeridos, em ‘O Animal Cordial’ a diretora utiliza esses elementos de ponto de partida e insere, sem se esquivar, a violência gráfica que imprime na superfície das imagens. A cada tensão psicológica posta é seguida uma ação de brutalidade explícita. Aqui o sangue dá o tom; o vermelho passa a manchar o quadro e se incrustar no espaço dramático, os corpos têm suas carnes perfuradas, rasgadas e esmagadas. O sexo que era contido em pulsões reprimidas se materializa e o corpo que antes era resguardado pelas vestes agora aparece nu, na força e na beleza de Lucina Paes reafirmando o poder adquirido por sua personagem perfurando e cortando carne humana.

'O Aniamal Cordial

A câmera de Gabriela Almeida filma em ângulos fechados, se move na claustrofobia de um cenário restrito, fixa personagens, espaços e objetos em closes para depois abrir as distâncias focais jogando com o que é revelado de maneira nítida no centro do quadro ou nas variações de foco dos planos de fundo e nas bordas da tela. Todo o espaço interno dos enquadramentos é trabalhado em função das modulações dramáticas e das ações encenadas com vigor, bem como esses limites do que nos é dado a ver são orquestrados em função do que projetamos num extracampo que limita e se projeta para além das bordas da tela. Ao mesmo tempo em que não foge de materializar a violência na imagem, a diretora também trabalha com explosões de brutalidade que são percebidas vindas do fora de campo, por meio de sons e ruídos. A montagem trabalha com ações que são apresentadas na lógica linear de seu desenrolar ou por meio de pequenas elipses, pelas quais algumas situações não são mostradas e nos são reveladas apenas depois de ocorridas, em planos que materializam no quadro o resultado ou o desfecho daquilo que ocorreu entre um corte e outro. Toda a construção formal é articulada e cadenciada em função da tensão asfixiante que contamina os espaços, os personagens e a dramaturgia desde o início.

Sem panfletismo, por trás de tudo o que está em jogo nessa dramaturgia brutal restrita entre alguns poucos tipos (representantes de diversos gêneros, classes sociais e posições na estrutura social) e principalmente por meio dos intertextos contidos na violência das ações, ‘O Animal Cordial’ constrói um discurso político forte, um painel do Brasil nos dias de hoje, em que o outro não significa nada e os signos da alteridade são impossíveis de serem assimilados por indivíduos alienados e recalcados entre discursos de ódio, sentimentos de deslocamento, medos, arrogância de classe ou pelo simples fato de que o desprezo e a aniquilação do outro são formas de se auto afirmar numa sociedade à deriva e totalmente desigual – seja para se tentar manter a posição ou para se inverter a lógica de poder.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2018

Por Fernando Oriente

ZamaAqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2018, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2018

  1. ‘Zama’, de Lucrecia Martel. (Argentina/Brasil) (leia crítica)
  2. ‘Amante Por Um Dia’, de Philippe Garrel. (França) (leia crítica)
  3. ‘O Dia Depois’ de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  4. ‘O Caminho dos Sonhos’, de Angela Schanelec. (Alemanha)
  5. ‘Arábia’, de Affonso Uchoa e João Dumans. (Brasil)
  6. ‘A Câmera de Claire’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  7. ‘As Boas Maneiras’, de Juliana Rojas e Marco Dutra. (Brasil) (leia crítica)
  8. ‘Baronesa’, de Juliana Antunes. (Brasil)
  9. ‘Western’ de Valeska Grisebach. (Alemanha)
  10. ‘O Processo’, de Maria Augusta Ramos. (Brasil) (leia crítica)

‘As Boas Maneiras’, de Juliana Rojas e Marco Dutra

Por Fernando Oriente

Existe em ‘As Boas Maneiras’ um determinante que faz com que o longa seja, além de um belo e corajoso filme de gênero (horror/fantasia), um registro contundente de um estado de coisas que domina o tecido social e imaginário da nossa sociedade nos dias de hoje. Em primeiro lugar, a maior grandeza do filme está exatamente na questão de o gênero ser seu núcleo, sem disfarces e de onde vem toda a força dramática e narrativa; todos os intertextos e leituras só existem porque os diretores assumem seu filme sem disfarces como um filme de terror e desse princípio constroem as potências do entorno. Posto isso, novas camadas são construídas. Vivemos em um opressor arremedo de normalidade em que deslocamentos emocionais, vontades e desejos autônomos e as impossibilidades de se autodeterminar de maneiras que fujam de um padrão comportamental exigido pelos códigos e regras impostos por uma estrutura social moralista levam a todas e todos que tentem seguir fora da curva lobotomizante da normalidade a serem classificados como párias, loucos; em suma, monstros de uma sociedade incapaz de absorver o diferente. O que ‘As Boas Maneiras’ nos faz ver é que o desviante, o horror e a aberração não passam de subcamadas reprimidas que, em meio a vida anódina,  rompem os limites impostos e surgem como ameaças ao bom gosto e ao comportamento padronizado e castrador da sociedade dos bons costumes e da moral, repleta de boas maneiras e cidadãos de bem. Esse resíduo monstruoso da sociedade é gestado pelos mecanismos indiretos e estruturantes dessa própria sociedade. O terror e a violência que atacam a normalidade – e ao mesmo tempo são catalizadores de novas formas de  afirmação de afetos  em deslocamento –  são respostas inevitáveis a um mundo opressor, em que do ser oprimido emerge uma besta, uma animalidade ancestral ao humano “pacificado”, mutação dessa mesma humanidade agora transgredida. O horror vem tentar reorganizar o jogo de forças pelo signo da destruição e da fúria violenta.

'As Boas Maneiras'

Nesse segundo longa em que assinam a direção juntos, Juliana Rojas e Marco Dutra conseguem se manter fiel ao estilo já presente na primeira parceria, ‘Trabalhar Cansa’ (2011), ao mesmo tempo em que acrescentam novos elementos ao seu cinema. Temos o mesmo esmero na construção dos quadros, a intensa capacidade de criar climas e tensões a cada plano, a constante sugestão de desconforto presente nas relações dramáticas entre os personagens, bem como comentários críticos agudos sobre a realidade do país. Mas em ‘As Boas Maneiras’ a dupla de cineastas é ainda mais corajosa nas soluções e situações que inserem na diegese, bem como aderem ao filme de gênero de forma mais direta e frontal. Temos elementos fantásticos bem mais explícitos como a presença do lobisomem, mais sangue, mais violência gráfica, além de uma maior tensão erótica. E a liberdade criativa atinge momentos altos em que o lado fantástico dos dramas não está só nos elementos de cinema de gênero, mas nas sequências em que personagens cantam em meio às situações dramáticas que se desenrolam, no uso de animação em passagens de flashback e num utilização extremamente criativa dos efeitos digitais na direção de arte e na cenografia, o que faz com que tenhamos impressionantes sequências em que a cidade de São Paulo é vista como que dentro de um filme expressionista gótico.

Para além da fantasia e do terror físico e psicológico que perpassam as camadas mais superficiais da narrativa construída por Juliana Rojas e Marco Dutra em ‘As Boas Maneiras’, o espectador é confrontado por uma sensação de pertencimento e identificação com aquele universo fantástico que advém de um realismo dualista que está incrustado nas texturas discursivas do filme. É justamente por trás e ao lado dessa normalidade que convivem forças fantásticas que não negam o real, apenas o transcendem em formas de percepção que nos levam a ver que além do padronizado o mundo é cheio de surpresas, imprevistos e situações fantasmáticas. O cinema não existiria jamais se sua complexidade concreta não fosse subvertida dentro da totalidade das relações que mantém com o meio social do qual é fruto.  Sem perder a originalidade, os diretores aproximam seu filme de um diálogo com o cinema de autores como Jacques Tourneur e David Cronenberg.

As Boas Maneiras

Como já foi afirmado, um dos grandes méritos de Juliana Rojas e Marco Dutra é o fato de serem fiéis aos códigos do cinema de gênero – sem fugir deles em estilizações e devaneios de “cinema de arte” e não terem medo de explorar graficamente o horror e a fantasia de maneira frontal – ao mesmo tempo em que vão gradativamente introduzindo elementos dramáticos que fazem com que ‘As Boas Maneiras’ transcenda o gênero (sem nunca abandoná-lo) e passe a permitir leituras políticas e sociológicas da narrativa em construção. Divido em duas partes distintas, o filme trabalha numa mudança de registro aparente entre suas duas partes, mas que mantem ambas interligadas tanto formalmente quanto em questões  discursivas. Por mais distintas que possam parecer essas duas metades do longa, não existe uma que supere a outra. A força de cada uma delas e, principalmente do filme como um todo, vem da relação intransponível que é conferida a analogia entre esses dois momentos distintos. A divisão em duas metades é que dá potência e razão de ser a cada uma delas, uma não existe sem a outra. Essa radical estruturação operada por meio de dois blocos dá a unidade exata que garante a coesão das texturas de ‘As Boas Maneiras’ dentro de um processo discursivo centrípeto.

Se na primeira metade estamos diante de situações lentas, com uma construção de atmosferas densas e deslocadoras na qual a crescente tensão e o medo são introduzidos gradativamente, fazendo com que ameaças, conflitos e promessas de confronto surjam a cada plano, ao mesmo tempo temos a consolidação de uma relação dramática sólida e improvável entre as duas protagonistas em termos de cumplicidade; uma se projeta e se completa na outra. Ao contrário do que as primeiras cenas nos levam a pensar, Ana (Marjorie Estiano, em mais uma ótima  atuação), a jovem grávida e rica que contrata Clara (Isabél Zuaa) para ser babá de seu filho prestes nascer irão superar (em termos) o inevitável conflito de classe e desenvolverão um misto de amizade e amor, em que o afeto deslocado e o desejo sexual farão com que se entreguem a uma relação de cumplicidade e companheirismo em que a solidão e o não-pertencimento que cada uma carrega irão encontrar conforto nessa identificação e entrega mútua que surgem entre elas. Mas a relação afetiva entre as duas será incapaz de evitar o desfecho da primeira parte do filme, em que a violência e o horror irão romper na tela provocando uma situação trágica que irá liberar a força monstruosa, a mutação animal que vinha sendo gestada.

É na transição para a segunda parte do filme, em uma acentuada elipse temporal, que Juliana Rojas e Marco Dutra quebram, aparentemente, as expectativas do filme e levam o longa para outro registro, em que diversas novas questões passam a conviver. Toda a parte final do longa se passa longe do apartamento de luxo de Ana que vínhamos acompanhando no início do filme. O cenário agora é a periferia de São Paulo em que Clara mora, trabalha e onde cria o filho de Ana, o ser sobrenatural agenciador de todo o conflito e as tensões que marcam o filme desde seu começo. Trabalhando como enfermeira e atendente em uma farmácia, Clara tenta levar uma vida normal, mesmo sendo mãe de um menino lobisomem. Por anos ela consegue conter a violência e o furor da criança. Cria mecanismos para prendê-lo em noites de lua cheia, evita que ele coma carne e o proíbe de ir a locais em que seu lado bestial possa aflorar. Embora tenhamos inúmeras sequências serenas, em que o horror esteja contido parcialmente, a tensão continua presente a cada cena. Rojas e Dutra sabem que tamanha fúria e o horror são impossíveis de serem contidos e a promessa de uma explosão de violência acompanha cada fotograma do filme, sendo sempre adiada. Isso nos é apresentado pelos diretores por meio de uma encenação em que por mais corriqueiras que sejam as situações, o desconforto, o medo e a presença da ameaça sejam sentidos constantemente em gestos, falas, olhares e pequenas ações.

As-Boas-Maneiras-2017

Em nenhum momento o filme de desprende do gênero, ele é apenas transpassado por outros elementos dramáticos que vão contendo sua fúria iminente na tela e a projetando para um fora de quadro que ameaça tomar conta da imagem a cada segundo. Esse recurso, além de permitir que o filme passe a se ocupar do registro da vida cotidiana em um bairro pobre da cidade mais rica do país, com seus personagens comuns e as pequenas relações surgidas entre eles, faz com que a tensão seja cada vez deslocada e acabe por transformar a realidade cotidiana em uma promessa de um horror maior porvir. É essa estrutura original de trabalhar o filme de gênero que faz com que ‘As Boas Maneiras’ se torne um filme em que o horror se desdobre e passe a existir não só no fantástico, mas também no registro do Brasil nos dias de hoje – em que o medo e a ameaça de um terror em constante gestação, a insegurança diante de uma realidade fraturada, as opressões e rearranjos dos vínculos afetivos e os elementos extraordinários são inseridos na banalidade de um real caótico. Posto isso, o longa vai gradativamente tornando sua força diegética mais complexa em termos de comentários político-sociais sobre um mundo inexplicável em que todos vivemos, mas que muitos se negam a enxergar e cuja violência bruta é impossível de ser contida.

Sem receio de encarar as explosões dramáticas (algo raro no cinema jovem brasileiro nos dias de hoje), ‘A Boas Maneiras’ finalmente, em seus momentos finais, deixa todo o terror e a violência que vinham sendo construídos de diferentes maneiras tomarem conta da tela. O inevitável é traduzido em imagens brutas que ocupam a superfície narrativa. Sangue, o lobisomem materializado, mortes, conflitos extremos e caos passam a conduzir o longa até o seu desfecho, que culmina em uma cena  interrompida pelo corte final, deixando em aberto uma fúria muito maior que é claramente sugerida, mas que o espectador não vê. Porque tudo o que tinha que ser mostrado já foi, assim como tudo que é sugerido se torna ainda mais forte.

‘Zama’ e o cinema de Lucrecia Martel

Por Fernando Oriente

Um ponto central para se aproximar do cinema de Lucrecia Martel é o estilo e o que ele pode significar em termos de autoralidade de um artista em relação a uma obra ou ao conjunto de seus trabalhos. A cineasta impregna seus filmes com uma estética (no sentido mais amplo do termo), uma forma e uma linguagem visual e sonora que saltam aos olhos. Martel é uma realizadora que consegue aliar as estruturas formais de suas composições ao discurso cheio de texturas que confere aos seus trabalhos. Usa complexas estruturas formais que contém, sinalizam e apontam aquilo que costumamos chamar de conteúdo (dramático e narrativo). É a partir desse processo que a diretora argentina é capaz de realizar filmes que estão entre o que de mais relevante o cinema mundial produziu nessas duas últimas décadas.

'Zama', de Lucrecia Martel

Após nove anos sem um longa-metragem, Lucrecia Martel chega com seu ‘Zama’. Um filme que aparentemente se desloca em relação aos seus três primeiros, mas que se olharmos atentamente, guarda muitas semelhanças em relação a eles, tanto na forma quanto no conteúdo discursivo. Ao mudar seu tempo de ação para o século 18 na Argentina ainda colônia espanhola, Martel compõe ‘Zama’ com planos mais longos, enquadramentos mais abertos e um andamento narrativo mais lento, em que as tensões presentes na dramaturgia se tornam mais depuradas e, mesmo sem perder nada em intensidade, se oferecem de maneira mais contemplativa do que nos trabalhos anteriores da diretora. Mas para abordar e analisar melhor o novo filme, é necessário jogar luz sobre o que Lucrecia Martel realizou antes.

Em seus três primeiros longas, ‘O Pântano’ (2001), ‘A Menina Santa’ (2004) e ‘A Mulher Sem Cabeça’ (2008), encontram-se características comuns que são trabalhadas e depuradas de diferentes maneiras, ao mesmo tempo em que se replicam e dialogam entre si de um filme ao outro. Temos o universo de uma classe média argentina contemporânea que vive em cidades pequenas. Uma classe em decadência, que perde poder e contém, de um lado, adultos angustiados, incapazes de se comunicar, frustrados, e que veem seus anseios serem invariavelmente abafados e realojados por uma sensação de incapacidade, paralisia, suspensão emocional e física. De outro lado, existem adolescentes que transbordam desejos, erotismo e pulsões em estado bruto constantemente reprimidas e cujo futuro é a condenação de serem iguais aos adultos que os cercam. Entre a prostração e esse desejo constante, mas que não consegue jamais satisfação, as personagens se inserem em situações paradoxais em que a frustração, o erotismo e a apatia convivem em um permanente processo de deslocamento pulsional. Desses conflitos dramáticos surgem relações incestuosas, jogos eróticos entre adolescentes e adultos, aversão, frieza nas relações conjugais, incapacidade de perceber a presença do outro e um alienamento da própria forma com que essas personagens de autodeterminam. Como parte estruturante desse universo social, cada um dos filmes de Martel coloca em destaque o conflito de classes. Essa classe-média moribunda e cheia de frustrações se choca com qualquer representante das camadas mais pobres (bem como de todo aquele que aparente ser diferente), por meio de humilhações, violência, medo ou desprezo.

Todo esse contexto discursivo se potencializa e ganha dimensões pelas estruturas formais presentes no estilo de Martel. A partir de um domínio rigoroso da composição de quadro, a mise-en-scéne trabalha sempre em provocar perturbações e tensão no interior dos planos. Algo constantemente desestabiliza a imagem e tenciona aquilo que é representado. Os enquadramentos são em sua maioria fechados, o que promove, aliado as escolhas de posicionamento da câmera, o recorte e a fragmentação dos espaços, fragmentando assim as percepções do espectador e conferindo à dramaturgia uma crescente sensação de desconforto e deslocamento. A construção meticulosa e significante da banda sonora dialoga em conflito com uma organização que desestrutura o que está dentro de campo – com personagens nas bordas do quadro, desfocadas em plano de fundo ou em primeiro plano bem como no achatamento da profundidade de campo.

A força dramática do extracampo e os planos curtos, ligados por cortes secos, elevam ainda mais o desconforto e o mal-estar que são onipresentes no discurso dramático-narrativo de Martel. A materialidade dos espaços onde se dão as ações bem como os corpos das personagens e a presença física de objetos de cena são elementos cruciais para que a diretora proporcione ao espectador uma imersão sensorial nos ambientes da diegese.

‘Zama’, em suas mudanças na construção formal e evolução narrativa (uma maior presença de planos abertos e estáticos e uma duração maior das imagens entre os cortes), retoma e atualiza os mecanismos estético-discursivos presentes nos longas anteriores da diretora.  O filme acompanha a trajetória do agente da coroa espanhola Diego de Zama em um processo de desmoronamento emocional e corporal. Como as personagens da classe média argentina nos dias de hoje, Zama é representante de um estrato social desimportante que se vê tolhido de poder, incapaz de se relacionar com o outro, deslocado entre seus desejos e atirado a uma existência cada vez mais frágil. A ambição de Zama em ser transferido para outra localidade – última chance de tentar se autodeterminar em sua subjetividade – vai desmoronando em meio a sua rotina anódina em que é apenas um medíocre servidor burocrático e às ações e responsabilidades irrelevantes que executa. Fragmentado em suas potências, isolado daquilo que almeja, Diego de Zama segue sua jornada em direção à radical aniquilação física e existencial. Típico personagem de Lucrecia Martel, ele é um ser desprovido de domínio sobre tudo a sua volta, condenado a vagar destroçado por um espaço que não é capaz de lhe satisfazer as pulsões já difusas e no qual ele sobra apenas como um representante fantasmático do mal-estar que assola toda uma ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano.

'Zama'

O tratamento do tempo – que se arrasta lenta e ociosamente na cadência dos planos refletindo a forma como a vida de Diego de Zama se arrasta – é questão crucial para a força desconcertante que brota na tela de maneira paradoxal, se considerarmos a construção de imagens cuja indiferença do que é representado é a tônica. Para além do que vemos em cena, está o percurso da desimportância das ações que é reafirmado em cada novo plano. O que implica os tempos mortos, o sentir de uma temporalidade lenta e suspensa que insiste em durar mesmo não querendo significar nada além do que que o esfacelamento das potências de Zama em uma existência sem sentido.

No primeiro plano de ‘Zama’, Martel oferece os elementos centrais do enunciado que serão transformados em discurso ao longo do filme. Com um enquadramento aberto e estático vemos o protagonista inserido no quadro à distância, parado em frente ao mar com um olhar e uma postura corporal que traduzem suas sensações de melancolia e fracasso. Ao fundo passam indígenas indiferentes àquela figura decadente e ridícula em suas roupas e adereços puídos de representante do poder colonizador europeu. A solidão e a prostração de Diego de Zama dentro do quadro, seu total deslocamento daquele ambiente e daquelas pessoas expõem na imagem todo o comentário central de Lucrecia Martel a respeito de seu personagem e sua significação simbólica. O desalento e a impotência diante do espaço e da realidade dada e o aprisionamento numa temporalidade suspensa que faz do seu existir um imenso vazio de inutilidade e esperanças frustradas.

Zama

Não é só Diego de Zama que representa essa ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano. Os personagens com quem ele busca uma relação, seja por afeto ou interesse, são compostos como significantes da mesma noção de classe parasitária e vazia, por mais que se apeguem a um poder frágil como Luciana, mulher do Ministro do Trabalho, o Governador ou o contrabandista de bebidas moribundo. O se relacionar de Zama com essas figuras também é signo de fracasso e prostração. É um conviver estático, marcado por uma completa impossibilidade de se fazer entender, por uma incomunicabilidade angustiante assim como uma negação dos desejos e vontades que nunca são consumados, sendo continuamente reprimidos. É na construção dessas relações que Martel amplia ainda mais a impotência desses europeus que nada passam de exilados numa terra que não lhes pertence e na qual não conseguem existir plenamente. Todos fazem parte do que deu origem a atual classe média argentina que povoa os longas anteriores da diretora. Mortos vivos que contrastam nitidamente com aqueles que oprimem, sejam os indígenas ou os escravos negros, que mesmo na precariedade surgem como altivos e cheios de energia e vida. Por mais que estejam condenados a serem cada vez mais esmagados por um poder externo que tem nos medíocres brancos como Zama seus agentes de opressão. É a origem de um choque de classes sedimentado pelas estruturas do capitalismo colonialista.

Essa força material e corpórea da presença física de Zama e dos demais personagens é uma das tônicas do filme. A composição dos tipos – figurino, os gestos, os olhares e até mesmo a maquiagem – são elementos dramáticos fundamentais. Tão importantes quanto a direção de arte e a cenografia, que permitem criar o espaço vivo e sensível (a ambientação) para que Martel projete a temporalidade angustiante com que desenvolve a dramaturgia plano após plano. O trabalho de montagem, a união das cenas e sequências por meio de elipses que abortam a continuidade dramática linear de uma trama a ser desenvolvida e fazem surgir blocos sensoriais de tensões e dramas que se arrastam na ociosidade daquilo que as imagens fazem questão de propor como um discurso fragmentado, uma fragmentação que se refrata em Zama e se projeta no  desintegramento do personagem, que lentamente vai sucumbindo a um espaço que o absorve, a uma realidade suspensa que expõe o nada como a única essência de um medíocre representante de uma classe desimportante e patética, que segue até os dias de hoje se proliferando como vidas sem finalidade presas a um fiapo de existência.

 

*Crítica escrita a partir de texto originalmente feito para a revista de março de 2018 e para o site do Instituto Moreira Salles (IMS)

‘Quebranto’, de Jose Sette

Por Fernando Oriente

O fato de ‘Quebranto’, terceiro longa do diretor Jose Sette em quatro décadas, chegar agora às telas com sessões na Mostra do Filme Livre (MFL) de 2018 revela muito do descaso do cinema e da cultura brasileira com artistas de uma geração que, após o Cinema Novo e o Cinema Marginal/de Invenção, foram impedidos de filmar. Autores radicais (que sem dúvida são parte e extensão desse cinema de invenção que surgiu como potência desestabilizadora da arte brasileira em meados dos anos 1960) que foram relegados a um ostracismo imposto, mas jamais deixaram de pensar o cinema e o Brasil de maneira muito particular. Questionador de obviedades, inimigo da banalidade da imagem e do texto, alheio a tendências de mercado e sempre com um vigor pulsante em tentar traduzir e questionar nossa realidade por meio de suas imperfeições e fracassos, Sette escreveu de forma indelével seu nome na história com o seminal ‘Bandalheira Infernal’, filme de 1976 que segue até hoje como uma das preciosidades da nossa filmografia. Assistir a ‘Quebranto’ é ver na tela como um veterano autor consegue instigar o espectador com um frescor e uma originalidade incapazes de serem atingidos pela maioria de jovens diretores e, principalmente, por alguns nomes já estabelecidos dentro de certo “cinema médio respeitável pós retomada”.

Quebranto

‘Quebranto’ não segue nenhuma convergência ou cacoete do cinema contemporâneo brasileiro. É um filme de um diretor que pensa e representa em imagens e texto sua visão subjetiva sem nenhuma concessão. Imperfeito, fragmentado, o novo longa de Sette se fortalece na precariedade e ganha potência pela inventividade e o radicalismo como trabalha os ruídos provocados por uma dialética entre imagens incapazes de dar todo seu sentido e por uma presença constante do texto – seja em off ou falado de maneira anti-naturalista por seus personagens. Fiapos de narrativa, situações dramáticas que apenas se esboçam e se fazem ecoar nos planos seguintes, tipos que habitam um mundo onde o realismo foi mandado às favas e a constante sobreposições de tempos em que personagens se ressignificam, se desdobram em múltiplas representações e trazem à tona o conflito entre o universo idealizado da vontade de fazer e ser com as impossibilidades de traduzir esses impulsos. É esse o registro que Sette almeja, provocando constantemente o espectador a sair da zona de conforto da absorção alienada de discursos ocos e publicitários. É expondo seus próprios mecanismos imperfeitos que o filme se oferece como uma obra aberta e em constante construção.

Existem eixos pelos quais Jose Sette nos conduz ao longo de ‘Quebranto’. Em primeiro lugar a paralisia que aprisiona seus tipos, presente na vontade de João em escrever, no desejo de Maria em amar e se auto constituir como sujeito, nas memórias difusas de personagens que surgem como espectros e tentam interpretar a vida e a existência dos outros e ainda naquele que é o elemento mais materialista do filme: a impossibilidade da história de amor entre João e Maria. Como consequência dessa paralisia (do existir, do interpretar e do criar) está a morte. Morte dos sonhos do escritor, morte das pulsões artísticas, eróticas e metafísicas. É a anulação do sujeito, o retorno como imagem-simulacro de figuras do passado com seus discursos fragmentados entre empáfia, dogmas, moralismos familiares e religiosos – espectros transfigurados como impotência do devir.  A ironia de Sette ao introduzir esses fantasmas como comentaristas da vida material e existencial de João e Maria é dos pontos fortes da construção dramática, elemento que projeta ainda mais as presenças de paralisia e da morte.

Mas se o lado materialista está em situações isoladas vividas por Maria e João, essa materialidade desvanece nas constantes ressignificações e forclusão desses personagens. Vivendo entre um real idealizado e um limbo pós-morte, João está preso em meio àquilo que é, o que deseja ser e o que os outros vêm nele. Nos resta apenas Maria. Mesmo incapaz de evitar a morte, é ela que se materializa na tela com mais potência, tanto pelo simbolismo que carrega como vetor de amor, inspiração, criação e desejo, como pela presença física. É a beleza do rosto e do corpo da atriz Karine Barros (e a forma como Sette a filma) e o que essa beleza carrega de possibilidade de ressignificação dramática-discursiva que faz Maria se descolar da imagem idealizada e tornar-se energia de vida criativa e subjetivante impressa na carne.

'Quebranto'Jose Sette compõe tudo com uma encenação aberta aos acasos que exprime as contradições desencantadas, a ironia, a tensão e os anseios utópicos que dominam o tecido da dramaturgia. Sequências com câmera na mão são montadas ao lado de tableaux compostos por planos estáticos que evocam a teatralidade da mise-en-scéne. A variação de luz dentro das construções de quadro, os cortes secos, as entradas e saídas de cena dos personagens, a temporalidade cíclica e a recusa da linearidade narrativa reforçam ainda mais a condução auto reflexiva e fragmentária do discurso. A sobreposição do texto às imagens conduz o filme nesse sentido, fazendo das imperfeições e incapacidades do significado pleno ser atingido (ele sequer é almejado) possibilidades de leitura e questionamento que levam à inquietação de um mundo incodificável que Sette recria dentro de uma representação que se dobra sobre si mesma para escoar pelas bordas daquilo que a imagem apreende dentro da tela. Sobra desejo – desejo de imagem, desejo de escritura, desejo de expressão – ao mesmo tempo em que a banalidade racional do mundo é dinamitada na poética de um cinema que assume sua impotência como força propositora de significantes.

‘Amante Por Um Dia’, de Philippe Garrel

Por Fernando Oriente

A fugacidade e a brevidade de um gesto, de um olhar, de um afeto. A duração efêmera de relacionamentos que ressoa a fragilidade e a instabilidade do estar com o outro. ‘Amante Por Um Dia’, novo longa de Philippe Garrel, se funda nesses elementos para que o diretor possa novamente desenvolver um discurso sobre os deslocamentos do amor e do desejo em um mundo em que a desilusão e a fragmentação das relações surgem como horizonte comum a todos. Um pouco menos cético, mas não menos melancólico, do que não grande maioria de seus filmes, Garrel aqui vislumbra breves possibilidades de esperança e de trocas afetivas que podem ser renovadas ou surgirem onde antes só havia desalento e fracasso.

Amante Por Um Dia

‘Amante Por Dia’ é um recorte temporal na vida de três personagens. Jeanne, após um rompimento amoroso deixa o apartamento do namorado e vai morar com o pai, o professor universitário Gilles. Ele, por sua vez, divide a casa com sua nova amante, Ariane, uma jovem aluna da mesma idade que sua filha. Os três passam a conviver e a compartilhar descobertas, medos, segredos, desejos e sentimentos, o que permite encontrarem novas características em cada um que, ao mesmo tempo, refletem e possibilitam novas formas de se verem. As trocas, a cumplicidade, o carinho e o estranhamento que um provoca no outro fazem dessas relações um tecido de novas experiências que alimentam renovadas e antigas expectativas em relação ao viver em companhia de alguém.

Embora seja Gilles que aproxime Jeanne de Ariane, são as ações, reações e anseios das garotas que movem todo o discurso e a evolução dramática, tanto naquilo que fazem de suas vidas como na maneira como reagem às situações provocadas pelo professor. A relação das duas jovens é construída em um espelhamento em que semelhanças e diferenças convivem lado a lado. O afeto, a cumplicidade assim como as desconfianças que ligam as duas, ao mesmo tempo jogam luz sobre aquilo que têm em comum – a juventude, o desejo de viver as emoções com intensidade, as incertezas sobre o amor, as possibilidades de se auto definirem subjetivamente – bem como sobre o que as afastam – Ariane se entrega às pulsões e quer viver intensamente seus desejos enquanto Jeanne associa o estar com alguém à autenticidade de seus sentimentos. Duas visões do amor e do sexo, mas que por mais que possam parecer antagônicas, se completam e se interligam.

Como é comum no cinema de Garrel, fidelidade, possessividade, insegurança e traição são temas centrais em ‘Amante Por Um Dia’. Em um mundo onde relações são sempre efêmeras e frágeis, estando sempre na iminência de serem desfeitas, se entregar apenas a uma pessoa e abrir mão de pulsões eróticas e fantasias amorosas é uma forma precária de sustentar, mesmo que na ilusão, a ideia de que um relacionamento pode ser algo que ele nunca será: completo e duradouro. Como se já cientes da proximidade do fim, esse estar com o outro na vivência real de um amor é uma interrupção temporária da condenação à viverem sós. Essa entrega intensa e fugaz ao outro, de corpo e de alma, nada mais é do que um adiamento da solidão inevitável. Mas é exatamente nesses breves períodos de entrega, que o amor e o desejo encontram possibilidades materialistas de concretude.  E para Garrel, “viver sem ter amor não é viver”.

Construído em elipses e recheado de situações dramáticas breves, ‘Amante Por Um Dia’ recorta a diegese em uma sucessão de instantes no dia-a-dia de seus três personagens centrais. Um filme que manipula a temporalidade como se promovesse a suspensão e o alargamento das sensações, emoções e conflitos de Jeanne, Ariane e Gilles no espaço-tempo discursivo do filme. Mediadas sempre pela palavra – pela força significante dos diálogos e frases, além da lacônica narração em off – e pela potência significante das imagens, as relações entre os personagens e desses com o universo que os cercam ganham dimensões, texturas e nuances que fazem seu estar no mundo uma aguda reflexão sobre as incertezas, possibilidades e impossibilidades de viver em meio a uma existência em que o amor é mais idealização do que concretude e o abrir mão de si para se doar a outro (ou ao menos a uma ideia desse outro) nada mais é do que um idílio poético em meio à prosa do viver cotidiano.

'Amante Por Um Dia'Novamente Philippe Garrel nos introduz em seu universo cinematográfico em que as representações de uma realidade recriada na encenação são apenas simulacros de vida totalmente mediados pela poética das imagens e da evolução dramática. O mundo retratado por Garrel só existe dentro do seu cinema ímpar, no seu preto e branco transcendente de luzes, reflexos e sombras, na cadência reflexiva dos planos, nos espaços potencializados pela mediação da câmera, nos travellings que acompanham personagens em deslocamento – caminhando sozinhos ou lado a lado em meio à conversas –  e nos closes que revelam rostos através dos quais podemos penetrar nas profundidades existenciais que eles abrigam – uma profundeza de incertezas, afetos, dores, desejos, frustrações, esperanças e alegrias. Um cinema em que o interior das personagens é um tecido dramático vivo que determina as sensações, ações e projeções dos tipos, da mesma forma como se lançam ao exterior e refratam o mundo que os cerca.

Em ‘Amante Por Um Dia’, a melancolia, a incapacidade de sustentar uma relação com o outro, a frustração de tentar em vão domar os conflitos do desejo e a fugacidade do amor em um mundo de pulsões em constante movimento dividem espaço com uma ternura do olhar que permite que seus personagens vislumbrem sutis possibilidades de uma maior autodeterminação subjetiva, recortes temporais em que suas paixões se materializam.  Sem abdicar da crença na efemeridade das relações dadas pelo desejo, Garrel sinaliza novas probabilidades de uma vivência materialista dos afetos.

Seguir vivendo, experimentar prazeres efêmeros, desejar, amar, gozar, se doar, frustrar-se, iludir-se e tentar se preservar são processos inevitáveis, mecanismos existências aos quais é impossível escapar. No mundo desencantado de Garrel, o seguir em frente só é interrompido pela morte – daí a presença tão marcante do suicídio em seu cinema. Como seres desejantes e incompletos, as personagens de ‘Amante Por Um Dia’ (bem como de todos seus filmes) são incapazes de não estarem constantemente sujeitos à necessidade do outro, ao mesmo tempo em que esse processo traz sempre a possibilidade real da dor. Uma vida sem dor é uma existência alienada, incompleta, irreal. O que fazer e o que pensar para tentar se adequar à inevitável angústia do ser envolve um turbilhão de possibilidades conflitantes e a ausência absoluta de certezas. É por meio desse discurso que a vida no cinema de Philippe Garrel transborda uma radiante beleza amarga impressa a cada fotograma.

Buñuel: os dogmas e a religião em três filmes – ‘Viridiana’, ‘Simão do Deserto’ e ‘A Via Láctea’

Por Fernando Oriente

Em seu livro de memórias ‘Meu Último Suspiro’ Buñuel escreve o quanto, para ele, o mundo é guiado pelo acaso e pelo mistério e que entre os dois existe sempre a imaginação. O cineasta não acredita em dogmas, em explicações baseadas em preceitos religiosos e mesmo a ciência para ele não lhe diz nada. É pelo mistério, pelo imponderável do acaso e na imaginação sem limites e sem explicações que surgem a força e as pulsões do homem, da vida, da existência, da arte – e do cinema. Luis Buñuel transpôs todos esses seus sentimentos e visões de mundo para seus filmes. Sempre foi fiel à liberdade do acaso, aos mistérios e deu uma dimensão absoluta à imaginação e as criações que deles surgem.

Luis Buñuel

Luis Buñuel

A religião, as explicações dogmáticas para a imposição de poder de uma ordem metafísica presente na vida de homens e mulheres sempre causaram horror ao diretor, que teve uma criação rigorosa dentro de preceitos religiosos em um colégio católico na Espanha. Buñuel se dizia “ateu, graças a Deus”. Esse sarcasmo presente no comentário, bem como o paroxismo da afirmação são chaves para penetramos em sua obra, toda ela calcada no repúdio ao religioso, ao capitalismo, à burguesia e às instituições reacionárias da família, do Estado e da burguesia. Os temas do religioso, da Igreja, dos dogmas e mitos católicos e do cristianismo aparecem em toda a obra de Buñuel, desde seus curtas surrealistas como ‘O Cão Andaluz’ e a ‘A Idade de Ouro’, passam por suas fases seguintes, incluindo o período em que filmou no México e estão presentes de maneira frontal em seus últimos filmes realizados na França. Essas questões são abordadas sempre de maneira intensa, subversiva, por meio do sarcasmo, do uso de signos e significantes icônicos da religião e da Igreja – e que são sempre subvertidos (e muitas vezes avacalhados) por Buñuel – bem como por situações dramáticas, por elementos centrais e paralelos na evolução narrativa e pela inserção de situações absurdas e momentos de surrealismo.

Vamos nos debruçar sobre três filmes distintos e seminais dentro da obra de Luis Buñuel para tentar penetramos nessa relação do diretor com o religioso, o sagrado, a igreja (sua simbologia, signos e dogmas) e o caráter metafísico da vida e ressaltar a forma como ele desconstrói tudo isso de maneira intensa.

Em ‘Viridiana’, obra-prima de 1961 realizada no México, Buñuel constrói um filme a partir da jornada de sua protagonista e das diversas reviravoltas e desilusões que conduzem seu caminho. Viridiana é uma jovem devota que vive num convento e está prestes a ordenar-se freira quando é enviada pelas madres para visitar seu tio, Dom Jaime, que se encontra doente e é único parente que a jovem possui. Na bela casa de Dom Jaime, Viridiana terá contato direto com os descaminhos e conflitos de sua fé. O tio é um homem cheio de vícios e ao ver a beleza de Viridiana e perceber o quanto ela se parece com sua mulher morta decide dopá-la e estuprá-la para mantê-la ao seu lado. O tio não chega a consumar a violação e sentindo-se impotente e fraco, se mata enforcado. Aqui temos o primeiro abalo moral/religioso de Viridiana; mesmo tendo sido vítima de um golpe e de uma violência sórdida, a jovem se acha pecadora por ter apenas provocado o desejo carnal em seu tio e, ao sentir-se impura e indigna, desiste da vida no convento.

Viridiana

‘Viridiana’

A partir desse momento, Buñuel irá construir uma sequência de choques e confrontos entre as intenções e aspirações metafísicas da fé dogmática de Viridiana com a realidade do mundo e do ser humano comum. Após a morte do tio, a jovem decide abrigar mendigos e moradores de rua na casa que herdou. Ela pretende salvar, recuperar e colocar as vítimas da sociedade no caminho da fé dando abrigo, comida, fazendo com que trabalhem e rezem diariamente. Ao mesmo tempo, o filho bastardo de Dom Jaime, também herdeiro da mansão, se muda para a casa com uma mulher. Outro conflito posto por Buñuel é entre a jovem beata e o filho bastardo, um pequeno burguês materialista.

Buñuel subverte o que poderia ser um filme de ascese metafísico, uma obra de conciliação entre o humano e o divino e faz de ‘Viridiana’ uma jornada de desilusão e desconstrução da fé por meio do choque entre as aspirações religiosas com os elementos incontornáveis da materialidade abjeta do mundo, do homem decaído e do mundo desencantado. Por meio de um total domínio da encenação, pela força dramática da evolução narrativa e por um onipresente sarcasmo crítico, Buñuel vai transformando a jornada de Viridiana em um processo de queda. Os mendigos mostram-se seres humanos comuns, movidos por desejos imediatos, carnais, por ataques de cólera e ações violentas. Não gostam de trabalhar, querem levar vantagem um sobre o outro, segregam aqueles que são mais fracos ou doentes, querem os prazeres da carne: o sexo, a comida, a bebida e o conforto. Aqui a idéia cristã propagada pela igreja, do ser humano como almas boas em busca de salvação divina cai por terra. Os mendigos de ‘Viridiana’ são seres humanos comuns, vítimas da sociedade capitalista, da pobreza material. Quando tem sua chance de possuírem aquilo que o mundo lhes nega, fazem de tudo para levar vantagem e buscarem a consumação de suas pulsões em prazeres.

‘Viridiana’ é repleto de cenas icônicas, em que Buñuel coloca de maneira frontal a desconstrução de signos, significantes, símbolos e dogmas do cristianismo e da religião institucional. Ao chegar à casa de Dom Jaime, a aspirante a freira traz na pequena bagagem um crucifixo, uma coroa de espinhos e vestimentas rudes. Ao longo filme a vemos rezar constantemente, ajoelhada em frente a ícones sagrados. Enquanto isso, seu mundo idealizado de fé desmorona ao seu redor.  Cenas antológicas se sucedem. Em um determinado momento, o filho bastardo de Dom Jaime sente pena de um cachorro que anda amarrado a uma carroça e resolve comprar o bichinho para salvá-lo. Na mesma sequência, logo após ele ter libertado o animal vemos na mesma estrada outra carroça passando com um cão idêntico amarrado a ela. É um comentário explícito de Buñuel de que por mais que as boas intenções possam levar um ser humano a salvar um animal, um homem, uma mulher, nunca poderá salvar a todos os milhares de condenados que estão por todos os lados; as boas intenções não passam de ações assistencialistas movidas por impulsos de comiseração que servem apenas para ajudar um entre milhões de vítimas das mazelas do mundo.

Buñuel é irônico, explícito e direto na sua encenação, depura seu filme de sentimentalismos e reforça o caráter do cinema de crueldade, de não-conciliação que é uma de suas principais características. Não é maniqueísta, não julga seus personagens nem cai em moralismos. Tudo o que registra é para comentar com sarcasmo e muita acidez as idiossincrasias e a hipocrisia das boas intenções. A fé, a igreja, os dogmas são invenções do homem para controlar, anular e alienar o ser humano em meio aos processos históricos que determinam a vida real, desencantada. E é o choque de Viridiana com essa realidade que irá conduzir sua jornada dentro de um processo de desencantamento, de falência de suas esperanças e certezas dogmáticas; ela constantemente confrontada pelo acaso, pelo imponderável. A realidade da vida esgota suas crenças, suas ilusões metafísicas e vão transformando a jovem apática, ela passa a ser conduzida e manipulada por forças materiais imponderáveis, forças muito maiores que ela e que seus valores religiosos herméticos.

E Buñuel vai mais fundo na desconstrução, usa elementos e significantes clássicos da mitologia cristã para destilar seu discurso sarcástico. Na cena mais emblemática de ‘Viridiana’ vemos os mendigos, após fazerem um banquete na ausência dos donos da casa, em que comem e bebem na grande mesa da sala de jantar, posar para uma foto. Essa foto é uma reconstrução visual idêntica ao quadro ‘Santa Ceia’, de Da Vinci. No quadro vemos Cristo e seus apóstolos em torno da mesa após a última ceia antes da crucificação. No filme, a foto reproduz de maneira idêntica a disposição dos personagens, só que ao invés de Jesus e seus seguidores, temos mendigos sujos e bêbados nas exatas mesmas posições. É esse uso direto de ícones clássicos do cristianismo que Buñuel subverte de maneira gráfica e frontal, para potencializar seu discurso crítico e confrontar os signos sagrados.

Ao final do filme, após ser contaminada, agredida por uma realidade que nega todas as suas crenças vemos Viridiana em roupas comuns, com um olhar e uma postura derrotada, apática diante da desilusão, sentada na mesa ao lado do filho de Dom Jaime e da criada da casa jogando baralho. A postura física de Viridiana em cena é a de um fantasma, uma presença esgotada, derrotada. Ao mesmo tempo, do lado de fora, a câmera de Buñuel fecha em close na coroa de espinhos que a jovem havia levado sendo queimada pelos mendigos. O fogo arde e destrói a coroa da mesma forma que a fé e os dogmas de Viridiana foram destruídos pela materialidade do mundo.

‘Simão do Deserto’, também realizado no México, em 1965, é um média-metragem em que Buñuel, de maneira coesa, revisita um dos clássicos mitos do cristianismo: o profeta, o santo, aquele que abdica da vida para se isolar e por meio de penitências, sacrifícios e devoção irrestrita à oração e à meditação tenta se afastar dos valores terrenos para se aproximar de Deus. Tudo no filme tem um ar farsesco, por mais natural que seja a construção de cena, os ambientes e a caracterização dos personagens. Simão é um homem que abandona a vida entre seus pares em uma vila da Idade Média e se retira para um monte onde passa anos no alto de uma coluna, comendo e bebendo o mínimo para seu sustento e orando freneticamente para se purgar dos pecados do mundo e se aproximar do divino, do mundo metafísico do cristianismo, de Deus e de seus ensinamentos. A relação de Simão com os moradores da vila, os padres da região e com sua mãe é pautada no distanciamento arrogante de alguém que se acha superior em sua fé. Ele os recebe na base de sua coluna, prega a eles os ensinamentos sagrados e constantemente faz julgamentos morais e comportamentais sobre todos.

Simão do Deserto

‘Simão do Deserto’

Desde o início Buñuel faz de Simão um misto de fanatismo religioso e moralismo tacanho, sempre em meio às incertezas e fraquezas de sua personalidade. O diretor desconstrói o caráter heroico do mártir para fazer de Simão um homem perdido em devaneios de divindade, arrogante em seus discursos moralistas com que julga a todos, confuso – ele esquece as orações, entra em surtos em que afirma que benzer pessoas, animais e objetos é algo “divertido e que faz o tempo passar sem cometer nenhuma afronta em relação aos desígnios de Deus” -, fraco e inseguro. Um típico beato irracional em delírios de fé e grandeza de espírito.

A encenação de Buñuel é ágil, a câmera se move o tempo todo em travellings, recuos e aproximações, contextualiza tanto os primeiros planos quanto os planos médios e os de fundo, usa a profundidade de campo (onde quase sempre vemos Simão no fundo do plano em pé sobre sua coluna enquanto as ações se desenrolam no chão, próximas à câmera, nos primeiros planos – a presença de Simão no alto da coluna é quase onipresente e mesmo quando não está no quadro é sentida no extra-campo). Essa mise-en-scéne passa uma inquietude que domina o quadro e traduz as tensões das situações narrativas. Simão é quase sempre filmado em contra-plongê, vendo todos de cima, numa posição de superioridade. Os outros olham de baixo pra cima, e são registrados em plongês que mantém os personagens hierarquicamente inferiores a Simão dentro da construção do campo. A caracterização física de Simão é outra alusão direta de Buñuel a signos clássicos do cristianismo. Vestido em uma túnica puída, com longas barbas a cabelo comprido, ele nos aprece como um profeta, um santo e até mesmo como o Cristo dentro da iconografia da igreja.

O grande conflito do filme é entre Simão e o diabo, que constantemente vem tentá-lo. Aqui uma alusão direta as tentações do demônio à Cristo enquanto ele se retirou para o deserto para orar. Só que o diabo no filme é vivido pela belíssima Silvia Pinal, a mesma atriz que havia interpretado Viridiana no filme de 1961. Ela surge num misto de erotismo e humor, seu diabo é impaciente, irritadiço, se incomoda com o fanatismo de Simão e tenta trazê-lo de volta ao mundo, destituí-lo de sua fé cega. A personagem vivida por Pinal é moderna (uma típica mulher dos anos 1960) e materialista, destoa da iconografia clássica do catolicismo e esbanja carismática. Tem humor, se veste de Deus, com barba e tudo para tentar Simão, mostra as pernas, os seios e leva Simão a sentir desejos carnais que ele tanto se esforça em negar. O Simão de Buñuel é um fraco, confuso e meio abobalhado; é uma desconstrução irônica dos santos, dos mártires e profetas.

‘A Via Láctea’, longa de 1969, está inserido dentro do que podemos considerar a fase final do diretor. Filmes realizados na França a partir do final dos anos 1960 até o início da década de 80, com uma enorme liberdade criativa, construções dramático-narrativas radicais em que todos os temas trabalhados por Buñuel ao longo de sua carreira voltam de maneira visceral e intensa. São dessa fase filmes primorosos como o próprio ‘A Via Láctea’, ‘O Fantasma da Liberdade’, ‘O Discreto Charme da Burguesia’ e ‘Esse Obscuro Objeto do Desejo’. Buñuel assume um discurso mais coeso, em filmes que trabalham isoladamente os significantes de cada plano, sem seguir uma evolução narrativa e sem contar uma história com início, meio e fim. O que valem são as sequências e os planos em si.

A Via Láctea

‘A Via Láctea’

Em ‘A Via Láctea’ Buñuel volta a colocar a religião, seus dogmas, ícones e símbolos em primeiro plano. Mas aqui o diretor parte de uma análise corrosiva da relação entre religião e heresia. O filme acompanha a viagem de dois peregrinos a pé da França até a cidade de São Tiago de Compostela, seguindo a famosa rota que fiéis percorrem há séculos para chegarem a Igreja onde ficam os restos mortais de Tiago, apóstolo de Cristo. O longa é um grande filme de episódios e situações isoladas, em que a jornada dos dois vagabundos é entrecortada por personagens e ações que surgem em seus caminhos bem como por flashbacks de tempos passados, em que vemos desde Cristo, a Virgem Maria, cavaleiros medievais, nobres da Idade Moderna, religiosos de diversos períodos históricos, membros e vítimas da Inquisição e até o Marquês de Sade (um dos mais famosos inimigos da Igreja e de seus dogmas).

O humor se faz presente ao longo de todo o filme, um humor ácido, sarcástico e crítico, mas que não busca o riso fácil e sim a cumplicidade do espectador mediante aquilo que o filme critica e debocha. É um Buñuel ácido, que abusa das referências histórico-religiosas para despossuí-las de seu caráter sacro, de suas certezas dogmáticas. ‘A Via Láctea’ é um filme de imaginação, em que as ideias de Buñuel são transpostas para a tela em diversas sequências fantásticas e muitas vezes surrealistas. O diretor não busca explicações, ele quer questionar, criticar e expor os aspectos patéticos da fé institucionalizada, não só a católica ou cristã, mas qualquer fé cega que se deixa guiar por estatutos e códigos impostos.

As heresias clássicas e os hereges que fazem parte da história do cristianismo são revisitados por Buñuel. Desde a os questionamentos sobre a real existência da Santíssima Trindade, a afirmação de que o homem é capaz de escolher entre o bem e o mal sem a influência divina, a reivindicação de não se seguir aos mandamentos e ordens morais impostas pelas autoridades eclesiásticas até as dúvidas acerca da transubstanciação do Cristo na hóstia. O filme trata de cada uma dessas questões em sequências isoladas, ora no tempo presente em que vivem a dupla de peregrinos que amarram as narrativas, ora em flashbacks acionados por algo que a dupla vê ou ouve. É por meio dos diálogos constantes do filme que essas questões são abordadas. A todo momento surgem personagens que discutem religião, dogmas, heresias, o sagrado e o metafísico. Mas Buñuel subverte toda a dramaturgia ao introduzir constantemente o fantástico, o inverossímil, o surreal e o grotesco do mundo. A materialidade da vida e o caráter mundano do homem sempre surgem a se sobrepor aos preceitos do sagrado e da fé. O diretor retira qualquer possibilidade de ascesse metafísica dos dramas e situações e faz do acaso novamente o agente motor das ações.

Sequências antológicas se sucedem: um diálogo de um padre com um policial que é interrompido quando o religioso se exalta e atira uma xícara de café no policial até ser levado para o hospício de onde havia fugido por dois enfermeiros em uma ambulância, a sequência onde Jesus se prepara para se barbear e é convencido pela Virgem Maria a deixar a barba, no duelo de sabre entre dois nobres, um jansenista e outro jesuíta subitamente interrompido quando ambos decidem fazer as pazes sem nenhum motivo aparente, numa aula de catecismo que se transforma em um tribunal da Inquisição, ou na sequência em que Jesus, durante um almoço com seus apóstolos, a Virgem Maria e outros de seus seguidores, conta uma parábola sem pé nem cabeça e que não faz o menor sentido. Tudo no filme é composto para descontrair os dogmas e ridicularizar com alto grau crítico as normas e significantes da religião e da fé institucionalizada.

 

Texto escrito originalmente para o catálogo da mostra Luís Buñuel – Vida e Obra, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2016.

Editado para essa publicação no Tudo Vai Bem.

Cinema do maravilhamento: ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck)

Por Fernando Oriente

É curioso como dois longas lançados em 2017 e que entraram em cartaz no Brasil no início de 2018 sejam representantes tão evidentes de um tipo de cinema que está entre o que de melhor temos na produção atual, mas que muitas vezes é relegado ao segundo plano ou tachado de infantil e maniqueísta por grande parte da crítica e da cinefilia. ‘A Forma da Água’, de Guillermo Del Toro e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck), de Todd Haynes, são filmes que existem em função de seu caráter espetacular, na sua forma depurada e carregada de tinturas e virtuosismos e na intensidade da reação que provocam no espectador: o maravilhamento. São duas obras que só podem existir como e pelo meio cinematográfico. É do universo exclusivo da linguagem, gramática ou elementos estruturantes do cinema que esses dois filmes conseguem ser tão potentes, encantar e carregarem um discurso cheio de intertextualidade e possibilidades de apreensão. Tanto Del Toro quanto Haynes se dirigem ao emocional, ao reativo do público. Filmes de sensações, vibrações e emoção, que enaltecem a força das tensões e conflitos na diegese, que carregam em sua estrutura a importância fundamental que a mise-en-scène tem para o devir cinema. ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ existem unicamente dentro daquilo que a encenação cria e impulsiona.

A Forma da Água

A Forma da Água

A honestidade com que Haynes e Del Toro trabalham a matéria de seus filmes, respeitando e ao mesmo tempo sendo ousados ao manipularem os códigos do cinema de fantasia, fazem ‘Sem Fôlego’ e ‘A Forma da Água’ atingirem todos os níveis de eficiência que deles se podia esperar. Os realizadores não têm medo de mergulhar na fábula, no artifício, no âmbito moral que a própria evolução narrativa de seus filmes engendra. São longas que operam dentro de códigos de valores: o bem contra o mal, a jornada de seus protagonistas para se autodenominarem, a luta pela liberdade de existir em meio a um mundo opressor, a pureza e nobreza de valores éticos, sacrifícios e heroísmos. Uma ética da moral que pede que os diretores assumam um lado, defendam valores que acreditam e não tenham medo de retratar a dualidade de conflitos posta na sociedade. Não se trata aqui de impor um mundo binário, maniqueísta. Tanto Del Toro quanto Haynes sabem que não podemos reduzir a existência a apenas dois lados, que nem todo mal é mau e nem todo bem é bom. O que eles fazem por meio desses dois longas é recortar a realidade, implodi-la de suas aspirações de realismo ou naturalismo e operarem dentro do mundo do simulacro, dos arquétipos e da simbologia. Como o próprio título original em inglês de ‘Sem Fôlego’ já indica, o “maravilhar-se” está na gênese de tudo aqui envolvido – e dessa definição ampla, podemos trabalhar como toda uma noção de maravilhamento também é um dos pilares estruturantes do dispositivo cinematográfico desde o surgimento das imagens em movimento.

‘Sem Fôlego’, por mais que seja a adaptação do livro de enorme sucesso, consegue fazer com que a enunciação proposta pela literatura seja totalmente recriada pela gramática do cinema e torne-se um discurso de cinema puro. Um filme que dialoga com a história do cinema americano, particularmente o cinema mudo dos anos 1920 e o universo fílmico riquíssimo da década de 1970 nos Estados Unidos. A divisão da narrativa em dois momentos distintos de evolução e ambientação, interligados pela energia pulsante da mise-en-scène de Haynes, faz com que o diretor use características estruturais de um fazer cinematográfico de períodos passados (anos 20 e 70) e os redimensione com o que de mais atual as tecnologias digitais permitem hoje. Ele não copia um fazer antigo, ele atualiza esses códigos e entrega um longa com o frescor daquilo que de melhor o bom uso das técnicas e construções atuais podem oferecer. Toda a obra de Haynes tem esse diálogo com outros cinemas, seja na revisão e atualização dos melodramas clássicos em ‘Longe do Paraíso’ (2002) e ‘Carol’ (2015), na releitura do cinema underground em ‘Veneno’ (1991) ou na apropriação do universo glam dos anos 1970 em ‘Velvet Goldmine’ (1998), sem contar o desbunde estético-discursivo do delicioso ‘Não Estou Lá’ (2007).

Wonderstruck

Sem Fôlego

‘Sem Fôlego’ é um tour de force de encenação, com uma câmera inquieta que, em constante movimento, aprisiona os dois protagonistas na claustrofobia de ângulos fechados que são sempre intercalados por planos abertos furiosos de multidão, de espaços superlotados de gente, ambientes amplos em que a tensão da cidade grande primeiramente oprime seus personagens, mas sempre se abrindo e se oferecendo como local de possibilidades de libertação e acolhimento de suas individualidades. A tudo isso junta-se uma direção de arte impressionante e uma fotografia primorosa, cada elemento soma-se a outro para dar forma a esse caldeirão de potência visual e arrebatamento.

No filme de Haynes tudo é construído em função dos deslocamentos, do movimento vertical, da busca incessante da menina e do garoto por aquilo que seus desejos pedem. Mas, antes de tudo, é um longa que trabalha o encontro desses protagonistas – marginalizados, órfãos e solitários – que somente quanto estiverem frente a frente entenderão suas histórias de vida e desse encontro não descobrirão soluções, mas sim novas possibilidades de existir de maneira mais plena, no afeto, na cumplicidade e no entendimento mútuo de seus vínculos. ‘Sem Fôlego’ se realiza e se torna grande pelo universo cinematográfico posto e materializado, que só existe em função daquilo que a mise-en-scène cria. Todd Haynes é o autor de um mundo ficcional vibrante, que se materializa nas imagens e naquilo que as imagens propõem existir em torno delas mesmas e para além delas. O tom fabular, os aspectos que sugerem a existência do fantástico em meio a vida ordinária são a matéria propulsora dos dramas, da intensidade narrativa e do discurso que desses processos surgem. Cinema potente, que reverbera, que joga o espectador no interior de seu universo frenético e o conduz lado a lado com seus protagonistas e com eles se depara com o maravilhamento do viver dentro de um mundo expandido, que só pode existir dentro do núcleo daquilo que a encenação de Haynes cria de maneira tão especial, com paixão e entrega.

‘A Forma da Água’ é mais um belíssimo mergulho de Guillermo Del Toro na fábula. Uma jornada de libertação metafísica da protagonista que só se torna possível pelo fantástico, por destruir qualquer tentativa de se pensar o mundo por meio de uma mentalidade racionalista ou do naturalismo, pela crença do diretor (a mesma crença que move suas heroínas e heróis) em que existe um lado mágico em meio a dor e a tristeza do mundo oficial que não só nos encanta, mas opera como espaço de possibilidade, de libertação e materialização dos desejos mais intensos. Del Toro não esconde o lado sórdido do mundo, não tranca seus filmes na fabulação estreita, ele mostra e carrega nas tintas do lado abjeto da vida, para a partir daí potencializar a fantasia no interior da dramaturgia. Tudo o que vemos na tela em ‘A Forma da Água’ – dentro de um primor do décor, do virtuosismo da direção de fotografia, dos criativos planos que Del Toro compõem usando os mais diferentes enquadramentos de uma câmera que não se furta a mudanças de eixo radicais – é a afirmação material daquilo que os valores morais intrínsecos aos conflitos propostos pelos códigos da fantasia promovem na dramaturgia e principalmente na forma como o espectador é arrebatado pelo maravilhamento desse mundo fantástico confeccionado pelo cineasta mexicano. Assim como em seus dois melhores trabalhos – ‘A Espinha do Diabo’ (2001) e ‘O Labirinto do Fauno’ (2006), aos quais ‘A Forma da Água’ agora se junta, o novo filme de Del Toro engrandece os elementos fabulares e oníricos por meio de uma constante variação entre o esplendor poético do fantástico com sequências em que a ferocidade do mundo “real” desencantado irrompe na tela com  aspereza e brutalidade, aqui representadas pelo agente do governo americano vivido por Michael Shannon, todos aqueles que o cercam, bem como pelo espiões soviéticos e por qualquer personagem que não divida com a protagonista a crença e o desejo de se ir além, de se acreditar no impossível, um impossível tornado realidade por aquilo que a mise-en-scène de Del Toro cria com tanta precisão e beleza visual.

Como Todd Haynes, Del Toro faz uso primoroso das possibilidades do digital, que, com criatividade e elegância, confeccionam esse refúgio fantástico em que personagens podem sempre superar suas limitações e encontrar as autodeterminações que libertem seus desejos e sonhos e materializem suas fantasias. ‘A Forma da Água’, bem como toda a obra de Guillermo Del Toro, transcende o aspecto pueril das fábulas infantilizadas. Temos cenas de violência gráfica intensa, crueldade e um erotismo que conferem texturas muito mais intensas aos personagens e dramas. O romance impossível entre a faxineira Elisa Esposito (Sally Hawkins) e a criatura aquática torna-se muito mais forte pelo fato de não se restringir à idealização, ao metafórico ou a um platonismo romântico. O casal consuma sua paixão em sexo, no gozo erótico e aí Del Toro insere elementos que energizam e solidificam essa união impossível entre o humano e o ser fantástico. “A Forma da Água’ é mais um filme em que Del Toro, ao criar um universo dramático-narrativo de encantamento e estilização formal, promove o enfrentamento da dureza fria do viver na banalidade cotidiana com as possibilidades que se abrem pelo maravilhamento do fantástico. Uma negação da resignação e um ato moral de fé nos valores mais nobres que a fábula clássica enaltece. Se seus personagens maus podem ser vistos como representações maniqueístas dessa maldade, esse maniqueísmo é dado como apenas mais um elemento estruturante do desencanto de um mundo sem fé na transcendência, uma transcendência que só o cinema pode oferecer. É ao vencer esse arquétipo do mal, que os personagens de Del Toro são elevados pelo maravilhamento (compartilhado passionalmente pelo espectador) a um exercício de tornar-se aquilo que desejam, a viver o impossível tornado real pela fantasia, uma fantasia política de resistência que os levam a agir e vencer suas pequenas grandes batalhas.

The Shape of Water

A Forma da Água

Em meio a um impasse que toma conta dos filmes que se pretendem sérios, de obras que evitam as intensidades dramáticas e os conflitos, ao universo fílmico “arthouse” engessado em discursos ocos de boas intenções realistas, é esse cinema do maravilhamento de ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ que apresenta um verdadeiro frescor, cheio de vida e originalidade, que encanta e levanta questões, que reverbera na intensidade das tensões dramáticas e situações narrativas, que discute política e socialmente a vida contemporânea. Que faz sonhar com algo a mais, um cinema de resistência e fé no que de mais humano a fantasia pode significar com suas simbologias e possibilidades de leitura. É também, como sempre foi, pelo encantamento que os filmes nos tocam, ao nos arrebatar no e pelo espetáculo, que traz reflexão em meio ao maravilhoso recriado e tornado matéria em imagens, sombras e sons. É o que nos permite mergulhar nessas histórias fantásticas que nos arrebatam pela força de seus discursos cheios de camadas e intertextos e pelo acreditar no esplendor do impossível tornado possível exclusivamente pelo cinema.

‘Visages Villages’, de Agnès Varda e JR

Por Fernando Oriente

Existem pontos e elementos comuns aos excepcionais documentários que Agnès Varda criou ao longo de sua carreira. Um olhar inquietante da realizadora que vai além da aparência primeira das coisas, pessoas e espaços, o desejo pelos encontros, a capacidade de transcender a materialidade das imagens e nelas inserir um tempo reflexivo do olhar, tempo esse que promove aquilo que Roland Barthes definia como o instante em que a imagem se torna subversiva, já que o que vemos não é a simples e mecânica representação de algo (real ou fabricado), mas um conjunto de possibilidades subjetivas de se interpretar aquilo que está na imagem, além dela e ao seu redor. Embora ‘Visages Villages’ seja um filme de menor potência da diretora em comparação com algumas de suas obras-primas como ‘Daguerréotypes’ (1976), ‘Murs Murs’ (1981), ‘Ulysse’ (1983) e ‘Os Catadores e Eu’ (2000), ainda assim estamos diante de um documentário notável.

‘Visages Villages’ parte de outro elemento central na obra documental de Varda, a procura por lugares, pessoas, encontros e uma ilimitada gama de possibilidades que surgem ao longo desse processo. O deslocamento que promove o excepcional por meio do acaso, do inesperado. Ao se juntar ao fotógrafo e artista plástico JR –  que se mostra um parceiro ideal ao dividir com a cineasta a mesma paixão por pessoas e suas interações com os espaços – a octogenária Varda e o jovem fotógrafo partem em busca dos rostos e lugares que dão título ao filme, percorrendo a França de norte a sul. Entre visitas planejadas a lugares específicos, passando por paradas em antigos locais afetivos que marcaram suas carreiras até os encontros casuais com espaços desconhecidos, a dupla de realizadores busca constantemente promover, registras, refletir e captar tudo que os cerca e a partir desses registros construir imagens, leituras, levantar questões, tecer comentários, fazer pequenos recortes do mundo e da época em que estamos vivendo.

Trata-se aqui de um filme que por trás de sua singeleza esconde um profundo exercício de afeto ao outro. Com humor e empatia, Varda e JR se aproximam e interagem com pessoas das mais diversas, constroem relações de ternura e conseguem desse outro interpelado pela câmera e pela presença dos diretores pequenas frações de suas vidas, histórias, memórias, expectativas, frustrações e sonhos. Sem sentimentalismos, o que os tipos que vemos na tela promovem nada mais é do que suas próprias subjetividades e a suas relações cotidianas com aqueles que os cercam bem como com os locais aos quais estão inseridos em seus modos de vida.

Todo esse processo é captado e transformado de maneira orgânica em diferentes registros imagéticos. Seja pela filmagem direta em digital, seja pelas fotos que Varda e JR tiram das pessoas (e deles mesmos) e ainda pelas ampliações das fotos que são coladas nas mais diferentes fachadas dos mais distintos espaços. ‘Visages Villages’ é uma celebração do ser-humano comum por meio da imagem, dessa multiplicidade de formas que os diretores conferem a essas imagens e ao olhar que esses registros evocam. Mas antes de tudo, como uma imagem é ressiginificada pelo seu uso, pelo lugar em é colocada para se vista, pela forma como agencia diferentes olhares e o que se pode ver além da superfície de um registro estático. Uma relação temporal e espacial se estabelece e estende-se ante às imagens coladas em murais e uma dialética se dá entre aqueles rostos nelas retratados, os locais em que estão afixadas para serem vistos e o que daquelas pessoas, suas vidas e os lugares em que vivem o filme nos revela antes e depois das fotos serem tiradas e coladas. As imagens estão postas para que delas se leiam histórias de pessoas, memórias de locais, as transformações do tempo. Tudo o que de orgânico se condensa na materialidade de imagens estáticas ou em movimento.

‘Visages Villages’ parte das imagens, sua fabricação, manipulação e exposição para compor um tecido repleto de textos e subtextos. A relação do ser humano com seu cotidiano, a memória que as paisagens guardam, as transformações no mundo do trabalho, a relação entre homens e mulheres, o surgimento de novas tecnologias, a permanência de antigos modos de vida, como as pessoas olham e registram o mundo a sua volta, as ruínas de um tempo que já se foi e a indefinição de um presente incapaz de ser compreendido. Tudo é potencializado no filme pelo texto, por aquilo que Varda e JR falam em off, para a câmera ou conversam entre si e com aqueles que cruzam seus caminhos. A relação de amizade e cumplicidade entre a veterana cineasta, esse ícone do cinema chamada Agnès Varda, e o jovem e talentoso JR é elemento fundamental para a fruição do filme, o afeto com que eles se relacionam com os outros é o mesmo que compartilham entre si. É na sinceridade e no carinho da dupla de cineastas que se dá um dos vértices da solidez na evolução do filme, bem como da força discursiva do que vemos na tela.

Como é comum em seus documentários, Varda se coloca como personagem do filme. Suas memórias, histórias de vida, ideias, dúvidas, impressões, toda sua subjetividade se projeta e mistura-se com o tecido dramático daquilo que sua câmera investiga e registra. Longe de se colocar acima de seus objetos discursivos, ela se põe no mesmo nível, em equidade com todos aqueles que surgem em seu caminho. Sua inquietação, sua curiosidade e a imensa energia com que vive sua relação com o mundo fazem com que potencialize seus registros dentro de uma visão pessoal que ela gentilmente compartilha com todas e todos em seus encontros, bem como com o espectador.

Entre sequências planejadas e cenas improvisadas em meio ao acaso das filmagens, Varda e Jr nos conduzem por um universo de imagens, falas, sons, luzes e cenários que buscam registrar um mundo que se abre diante de nossos olhos de maneira direta, mas que por trás da aparente simplicidade, comporta um universo de pequenas epifanias, êxtases, frustrações, alegrias e toda a complexidade do viver. A imagem subversiva simplesmente nos provoca a ver tudo isso além de aparências planas e com essas enormes doses de dúvidas e incertezas que fazem do mundo um lugar indecifrável aos olhares imediatistas.

Os 10 melhores filmes de 2017

Por Fernando Oriente

‘Twin Peaks’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais e cidades do Brasil) em 2017, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

O grande evento cinematográfico do ano foi ‘Twin Peaks – Temporada 3’, de David Lynch, que entra na lista como hors concours Os 18 episódios dirigidos por Lynch formam um todo notável. Por mais que a qualidade de filmes e séries feitos e veiculados por canais de televisão e streaming seja algo cada vez mais presente, pelo menos por enquanto, vou manter essas obras separadas dos filmes que são exibidos em salas de cinema.

Os 10 melhores filmes de 2017

Hors Concours: ‘Twin Peaks – Temporada 3’, de David Lynch (EUA) (leia a crítica)

  1. ‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil) (leia a crítica)
  2. ‘Beduíno’, de Julio Bressane. (Brasil) (leia a crítica)
  3. ‘O Ornitólogo’, de João Pedro Rodrigues. (Portugal) (leia a crítica)
  4. ‘Corra!’, de Jordan Peele. (EUA) (leia crítica)
  5. ‘Na Praia à Noite Sozinha’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul) (leia a crítica)
  6. ‘Colo’, de Teresa Villaverde. (Portugal) (leia a crítica)
  7. ‘Toni Erdmann’, de Maren Ade. (Alemanha)
  8. ‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie. (França) (leia a crítica)
  9. ‘Martírio’, de Vincent Carelli. (Brasil)
  10. ‘O Filho de Joseph’, de Eugène Green. (França)

 

‘Câmara de Espelhos’, de Dea Ferraz

Por Fernando Oriente

Em meio a um considerável número de ficções e documentários que abordam temas urgentes em seus enunciados e discursos, o longa ‘Câmara de Espelhos’, de Dea Ferraz, é um dos mais notáveis e bem-sucedidos. Trabalho de registro documental sofisticado, o filme trabalha as possibilidades múltiplas de tencionamento do dispositivo, tanto na realização como na montagem e no processo de recepção que é oferecido aos espectadores. O machismo atávico, endêmico e estruturante da sociedade brasileira é exposto de maneira complexa, ao mesmo tempo que direta e objetivamente. Um filme político em que o campo da cultura e dos costumes formam o campo de batalha.

Grupos de homens (todos voluntários para participarem do projeto) de diferentes idades, classes sociais e raça reúnem-se num cenário construído que se configura como um dispositivo cênico – uma “caixa” em que, sentados em sofá e poltronas são cercados por sugestivos objetos de decoração, espelhos e uma televisão que projeta vídeos sobre os quais eles devem comentar. Os vídeos têm sempre a mulher e o feminino como tema; a relação do feminino com o imaginário social, seja em esquetes de humor, telenovelas, vídeos do Youtube, reportagens jornalísticas, videoclipes, trechos de shows musicais, filmes e programas evangélicos, entre outros. A violência misógina explícita de algumas das imagens se articulam com trechos de falas de mulheres de destaque na sociedade – presidentas, chefes de estado ou intelectuais como Simone de Beauvoir -, além de fragmentos de passeatas de grupos feministas como a Marcha das Vadias.

O principal mérito do filme é fazer com que, ao comentarem as imagens e temas propostos pelos vídeos que assistem, esses homens se desloquem progressivamente entre a performance calculada de si que fazem por saberem que estão sendo filmados (e as micro-ficções que procuram encenar) para um constante desligamento da presença da câmera, o que os permite falarem e darem vazão sem freios  a suas reais ideias e impressões sobre as mulheres; a espontaneidade e a banalidade com que encaram e reafirmam suas posturas passa dominar o tecido narrativo das conversas. É nesse ponto que o machismo vem à tona. Por mais que tentem se policiar, a misoginia, a posição de superioridade em relação à mulher que está presente na própria construção subjetiva de suas identidades passa a tomar conta dos discursos. Alguns pisam em ovos, desconfortáveis, outros se entregam abertamente à posição de opressor e dominador que define o homem na sociedade patriarcal que estamos mergulhados. Mas todos, sem exceção, revelam-se em seus diferentes graus de machismo.

As discussões, frases isoladas ou conversas descambam para um desnudamento que naturaliza as relações de poder estruturantes em que o homem sempre se acha superior à mulher. Moralismo, preconceito, desprezo, cinismo, violência, arrogância e intolerância são os pontos comuns da falação, bem como da performance de todos os personagens do longa. A montagem potencializa as relações de fala desses homens – ao deixar as discussões correrem soltas pela duração das cenas e pela total não interferência nos debates, ao mesmo tempo em que cortes pontuais nos levam a novas situações, discussões e temas.

Como não poderia deixar de fazer, aqui eu me coloco como homem em relação à matéria e ao discurso do filme. Por mais que tente (e tentar não é nunca o suficiente) a desconstrução de meu machismo, muito da misoginia desses homens também me acompanha e fazem parte de mim. Minhas boas intenções não são nada. O que me cabe, bem como aos homens que assistirem a ‘Câmara de Espelhos’ é nos questionarmos constantemente, nos projetando e sendo refletidos pelo que vemos na tela. Para as mulheres o longa é mais um explicitamento das relações de violência e dominação cultural, social e política que vivenciam e a que estão expostas diariamente. É esse processo, tanto de desnudamento da misoginia atávica quanto do confronto com a posição de superioridade do macho, que é o centro e a força do filme de Dea Ferraz. Um longa desconcertante, que escancara o óbvio que a grande maioria da sociedade finge não ver ou prefere jogar para baixo do tapete. ‘Câmara de Espelhos’ é um murro na hipocrisia de todos nós.

‘A Filosofia na Alcova’, de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Por Fernando Oriente

O conceito de “libertinos libertários”, busca nos atos, na ação e no fazer eróticos um processo de enfrentamento dos limites impostos ao gozo e aos prazeres humanos, um confronto contra a moral das instituições estabelecidas como Família, Religião e Estado. Erótico como algo que abrange não só a sexualidade, mas evoca relações e modos se ser, existir e sentir. É no sexo puro, na busca pelo prazer sem limites, na violência da carne, na dominação e na entrega ao outro, no gozo ligado a dor, que existe toda uma teia de possibilidades de autoafirmação, uma existência materialista que rompe com dogmas e leis e, por fim, uma real hipótese de se atingir a liberdade de ser. São esses aspectos da libertinagem, centrais na obra de seu mais famoso representante, o Marquês de Sade, que encontramos o enunciado central do segundo longa da trupe teatral Os Satyros.

‘A Filosofia na Alcova’, co-dirigido por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, chega como um manifesto contra o moralismo, uma ode à liberdade, mas em momento algum estamos diante de um filme que não problematiza as relações de poder, a opressão e as hierarquias estruturais envolvidas e mantidas nesse processo. É nesse paradoxo, apresentado (felizmente) de maneira celebratória e sem julgamentos morais, que o filme destaca e exalta primeiro as possibilidades de libertação e negação da moral e dos poderes estabelecidos. Mas, ao mesmo tempo, estão impressos no discurso do filme as relações de poder na sociedade que, mesmo na libertinagem, são sempre mantidas. São os mais poderosos que dominam, aniquilam, convertem e subjugam os mais fracos. Por mais que mulheres poderosas e libertinas sigam seus desejos, e se autodeterminem no gozo, existe sempre um homem (um macho, um falo) acima delas, mais poderoso, que as domina direta e indiretamente. Aqueles de classes dominantes vão atuar, usar e trazer para seu lado todos aqueles que estão abaixo na relação de classes. Mesmo na liberdade proposta, as relações de poder não se alteram, e opressores e oprimidos têm sempre seus papéis dados e estruturados. Sexo é poder.

‘A Filosofia na Alcova’ dos Satyros enxuga o romance homônimo de Sade, reduz os espaços de ação e centra-se basicamente nas relações e conflitos de três personagens: Dolmancé (poderoso aristocrata libertino), Juliette (a Madame de Saint´Ange, uma libertina famosa e convicta) e Eugénie (a jovem virgem filha de um burguês libertino e de uma mãe religiosa e moralista). A encenação segue entre a frontalidade das ações, dos corpos, da carne e do sexo, a erupção do gozo e da violência e um constante tom de ritual celebratório que condiciona a mise-en-scéne (algo notável na impressionante sequência da orgia narrada por Juliette durante as “aulas” de Eugénie, que entra como um flashback que desloca a ação para um campo ainda mais ritualístico e anti-naturalista). Apesar de irregular – muitas vezes presa a uma necessidade excessiva em negar a teatralidade na composição de imagens cinematográficas – a encenação de Cabral e Vázquez atinge a intensidade necessária para consolidar as exigências da dramaturgia postas na enunciação.

O desenrolar narrativo parte da chegada de Eugénie à casa de Juliette, onde ela será “educada” por Juliette, seu irmão e com a supervisão, o comando e o controle de Dolmancé.  A educação é consiste em uma jornada de sedução e entrega da jovem ingênua (mas repleta de energia erótica reprimida) ao sexo, aos gozos da carne, à liberação de suas pulsões, à violência e a sua crescente negação de qualquer moralidade que havia sido imposta ao longo de sua criação pela mãe religiosa, bem como pela sociedade. A entrada em cena da mãe de Eugénie é o clímax narrativo e o momento em que a jornada interna da jovem se consolida. Da frágil virgem, surge uma altiva libertina que se entrega de carne e mente aos prazeres libertários, à vingança e à violência. Um amadurecimento pelo gozo.

Os ambientes das ações são reduzidos aos espaços internos da casa de Juliette, com breve inserções de cenas externas filmadas na São Paulo de hoje, no interior de limusines e de um helicóptero e ainda cenas que se passam na casa do pai de Eugénie (em que esse é sempre visto cercado por amantes em meio a orgias). As soluções cênicas são bem resolvidas por uma criativa direção de arte, que cria num galpão o cenário das ações principais, tudo em meio a ferros, correntes e entulhos, passando uma impressão de claustrofobia e enclausuramento dos tipos. A fotografia trabalha bem ao usar as modulações da luz para criar climas e envolver os espaços com um jogo de sombras e claridade difusa e artificial.

A construção dos três personagens centrais atinge diferentes dimensões dramáticas. Dolmancé aparece desde o início como uma força bruta, um predador dominador e cínico, que por trás de seu poder e cinismo não esconde certo decadentismo de sua posição aristocrática, de sua classe, numa sociedade em transformação – algo muito bem-posto na sequência em que sobrevoa a cidade de São Paulo nos dias de hoje a bordo de um helicóptero e vemos as relações e tensões entre sua figura, a identidade/personalidade que carrega com uma paisagem diametralmente oposta àquela do mundo em que foi gerado). Mas, essas camadas (uma dialética colocada no interior de seu tipo) que seu personagem carrega em momento algum interferem em suas ações. Henrique Mello impressiona em sua interpretação de Dolmancé ao conferir força, sarcasmo, fúria e poder ao personagem. Juliette é potência pura pela impressionante presença física de Stephane Sousa, a beleza agressiva de seu rosto e de seu corpo conferem à personagem um poder cênico irrestrito. E, como não podia deixar de ser, é Eugénie que tem suas camadas e texturas desenvolvidas ao longo do filme. As transformações e o processo de empoderamento e força que a jovem vai adquirindo no desenvolvimento narrativo é modulado pela própria atuação de Bel Friósi, que consegue transmitir todas as etapas emocionais e físicas pelas quais Eugénie passa. Do deslocamento inicial da jovem em cena até o término de sua iniciação/libertação, vemos Bel Friósi sair da posição de desconforto e fragilidade até passar a dominar todo o espaço; e aqui a beleza e a energia de seu rosto, de seu corpo e de seus gestos seduzem não só aos demais personagens, mas também o espectador e vêm à tona num processo contínuo de desnudamento físico e emocional. Bel Friósi faz não só com que Dolmancé e Juliette se encantem por Eugénie, como também seduz a câmera e o olhar do espectador com uma presença em cena radiante.

Os problemas e acertos de encenação são, principalmente, de ordem da imagem. É na imagem que estão, ao mesmo tempo, os melhores e o piores momentos do filme. Se Cabral e Vázquez nos trazem potência ao colocarem os corpos e a nudez em cena de maneira frontal, ao filmarem o sexo e a as ações sem pudores e com isso construírem tensões e intensidades dramáticas, por outro lado, existe um excesso de cortes, um abuso de ângulos fechados e uma câmera tremida que se perde ao não conseguir transmitir a totalidade das ações ou aquilo que determinada situação de cena pede –  a narrativa no cinema pede sempre a imagem capaz de traduzi-la visual e sensorialmente. O filme se ressente de uma maior composição de quadro, que permita com que as ações sejam representadas num contínuo espaço temporal sem a fragmentação da imagem. Em alguns momentos, quando cenas em planos de conjunto, com maior afastamento e fixação da câmera surgem na tela, temos uma força dramática muito maior e o quadro composto com diversos personagens a ocupar o centro e as bordas da imagem, sem abdicar de uma frontalidade que achata a profundidade de campo para potencializar a superfície da imagem, elevam a intensidade do discurso. Os diretores conseguem, quando abandonam os enquadramentos fechados e a fragmentação do espaço, soluções de dramaturgia muito mais fortes que são resolvidas na própria maneira como a imagem nos chega. Um bom exemplo desses momentos de força do filme são os planos mais abertos, em que no mesmo quadro vemos a fúria, o prazer e a dor de diferentes personagens ao mesmo tempo, dentro de uma continuidade espaço-temporal. Uma cena ilustra bem o acerto desse tipo de composição: Dolmancé penetra a mãe de Eugénie com o auxílio de Juliette e, no mesmo plano temos Eugénie na lateral do quadro se masturbando em êxtase. Aqui a própria imagem, sem rupturas e numa distância focal justa, oferece toda a potência dramática e as texturas e desenvolvimentos da ação, assim como a narrativa se consolida e se resolve dentro do próprio quadro.

Uma outra passagem, em que se abandona o abuso do corte e um pequeno plano-sequência é posto, mostra como Cabral e Vázquez sabem usar bem a continuidade da ação dentro do espaço: nessa cena acompanhamos Eugénie se deslocando de um primeiríssimo plano até o fundo do quadro (em que sua mãe está amarrada e entregue aos jogos dos libertinos) e depois retornando a seu ponto de origem no início do plano. Nessa cena, que se desenvolve num continuum, temos de maneira objetiva a extensão em atos da transformação interna da persona de Eugénie. Sua fúria, seu erotismo transbordante, as vibrações de seu corpo em ressonância com seus desejos que vêm à tona já desprovidos de amarras são a consolidação de seu processo de entrega ao gozo, a materialização de suas pulsões em prazer e dor (dor imposta). É carne que fala mais alto, é gozo libertário que lhe confere poder e controle sobre suas vontades e subjuga aqueles que se punham como castradores de sua liberdade, ao mesmo tempo em que liberam a violência reprimida em uma forma de orgasmo.

E assim, o gesto libertário que se oferece nos princípios de ruptura possíveis dentro dos códigos da libertinagem torna-se um devir em que a jornada de entrega ao corpo e suas possibilidades são uma acesse em direção a uma tomada de poder materialista; violência, prazer e sofrimento se fundem. É poder para quem o exerce, mas um poder que vai além do próprio gozo, transborda e sublima-se na dominação e aniquilação do outro. Como escreve Simone de Beauvoir em seu ensaio ‘Deve-se Queimar Sade?’: “…a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como consciência através da carne (…) é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria carne”. E Beauvoir completa “é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da maneira mais dramática”.

‘Colo’, de Teresa Villaverde

Por Fernando Oriente

Quando se está diante de uma situação limite, algo que está a prestes a desmoronar, se desfazer, o ato de narrar se torna uma questão ética. Como determinada condição humana é transformada em imagens, sons e dramaturgia passa a ser o centro do processo de criação e tradução do mundo. Em seu último longa ‘Colo’, Teresa Villaverde aborda um enunciado temático que há muito ocupa uma centralidade no cinema e já foi abordado diversas vezes (e das mais distintas maneiras) por cineastas de todos os cantos: o desfacelamento de uma família e a crise que leva a um colapso das relações e afetos entre os membros desse núcleo familiar. Um universo que se banalizou nas mãos de realizadores medíocres ganha no filme da diretora portuguesa uma força pujante. Villaverde comprova que a forma (e a estrutura formal) como se aborda um tema, por mais corriqueiro que esse tenha se tornado, pode resultar em uma obra sólida e potente. Ao manter a distância justa de seus personagens e ações, sem em momento algum abdicar das intensidades e tensões em que estão inseridos, ‘Colo’ nos chega como um registro em que a materialidade do meio se funde nas possibilidades transcendentes que a imagem lhe confere.

Tudo no filme gira em torno de uma família assolada pela crise econômica que atingiu Portugal de maneira violenta até poucos anos atrás. Pai desempregado, mãe trabalhando em dois empregos e tornando-se a única fonte de renda da família (e cujos ganhos não são suficientes para manter o padrão de vida a que estavam acostumados) e a filha adolescente deslocada em meio aos tormentos dos pais e seus próprios questionamentos numa fase de auto definição de sua subjetividade. Com exceção da mãe, que está sempre sobrecarregada de trabalho (e a única que procura enxergar a situação crítica em que a família vive e projetar alternativas em meio às limitações), os outros dois membros dessa família encontram-se à deriva. O pai passa seus dias em estado de frustração por ser incapaz de arrumar um emprego, algo que o leva a um processo de aniquilamento, no qual vai a cada dia tornando-se mais fraco, esvaziado, prostrado diante da perda de seu papel de macho provedor; ele não ocupa mais a função que a sociedade patriarcal lhe havia assegurado. Marta, a filha de 17 anos, cada vez mais isolada dos pais, vive movida pela energia característica da adolescência, que a faz se atirar cada vez mais ao mundo sem os freios impostos pelo pais, já incapazes de controlar, muito menos saber como ela conduz sua vida. São tipos que não mais se entendem, incapazes de notar o outro em meio aos seus esfacelamentos individuais.

Pai e filha, já desconectados um do outro, são impelidos a uma existência às bordas da sociedade. Esse processo é pontuado de maneira central na evolução narrativa. O filme começa e termina com cenas que se passam nos limites de Lisboa (com a cidade vista ao longe, em plano de fundo), como se essas bordas periféricas da cidade fossem o destino de Marta e de seu pai. A cidade já não é capaz de a briga-los, são expelidos para fora de seu centro. Isso fica claro nas passagens em que Marta vira noites em claro, sozinha ou na companhia de sua melhor amiga, e termina suas jornadas em locais afastados. Ou na sequência em que o pai, após invadir o carro de um ex-colega de escola que não lhe dá um emprego, vai parar numa praia nos arredores de Lisboa e passa lá dias e noites perambulando sem rumo até voltar para casa. Esses escapes, esses sumiços tanto da menina quanto do pai não são explicados muito menos debatidos em família, a deterioração da relação entre eles já não exige respostas e nem levanta perguntas. O silêncio melancólico é mais um sintoma da fratura das relações afetivas entre eles.

Da mesma forma como os personagens não são capazes de darem respostas ou sequer de expressarem seus sentimentos uns aos outros, Teresa Villaverde registra tudo com um distanciamento rigoroso, capta toda a intensidade dramática, as tensões e os conflitos postos, mas em momento algum procura dar respostas ou banalizar os dramas encenados com arroubos cênicos apelativos ou sentimentalismos. A diretora compõe o quadro evitando a centralidade dos tipos na tela, eles são registrados nas laterais do quadro, captados em ângulos perpendiculares, em plongées ou contra-plongées, em planos de fundo ou entrando e saindo de quadro, bem como em planos abertos em que aparecem distantes em meio aos espaços e em ângulos fechados em que as expressões de seus rostos traduzem o colapso interior e a ausência total de certezas. Os planos são em sua grande maioria estáticos, com suaves movimentos de câmera, aproximações ou recuos. Muito da força da imagens de Villaverde no filme vem da extensão e da duração das cenas. Ela trabalha com as ações e as inações estendidas no tempo, uma lentidão que contextualiza as tensões internas dos personagens bem como prolonga as ações no tempo por meio da duração dos planos.

As sequências se sucedem na montagem em blocos de intensidade ou de inércia dos tipos. Elipses nos jogam de um momento dramático ao outro sem a necessidade de raccords simples ou de amarras narrativas. Essa autonomia das cenas confere a cada passagem um valor significante próprio; os dramas isolados, ligados pelo todo narrativo, são a medida justa da diretora contextualizar esse colapso dos personagens de maneira a ressaltar as situações dramáticas e suas texturas em relação aos tipos sem se preocupar em explicar nada. É na independência diegética e nos distanciamento crítico que o drama se torna ainda mais forte. A vida de seus personagens, os tormentos e suas relações e conflitos interpessoais e internos são intensos o suficiente para Teresa Villaverde se concentrar na tradução desse contexto nas camadas sensoriais que confere às imagens. Imagens postas, que não necessitam de muletas interpretativas. Tudo está no discurso interno das imagens e na capacidade transcendente dessas mesmas imagens.

A questão ética da construção da imagem, o distanciamento e tudo aquilo que a câmera pode ou não captar desse colapso dos personagens – sem em momento algum se esquivar das tensões e conflitos – é sintetizado no belíssimo plano final. Com Marta sozinha, deitada numa cama dentro de uma casinha às margens do Rio Tejo onde se abriga, na periferia de Lisboa, após uma longa jornada que se dá em decorrência da ruptura total da família, Teresa Villaverde corta a cena interior e filma a casinha à uma distância média, em enquadramento diagonal, com a presença da garota dentro do casebre compondo um forte fora de campo. Então inicia-se um lento travelling em que a câmera se aproxima suavemente da casa até chegar a uma distância próxima, a câmera para e se fixa por alguns instantes para depois iniciar um recuo lento em travelling de ré até voltar a sua posição de origem no início do plano. O comentário de Teresa Villaverde aqui é até que ponto, até que distância sua câmera pode chegar em relação aos personagens e a seus dramas. Ela se aproxima, chega a uma distância próxima para depois recuar, não invadir mais aquele espaço em que se dá a existência fraturada de seus personagens. Tudo o que vimos antes já é mais do que suficiente, o drama foi posto, registrado e desenvolvido. Chega o momento de se retirar, se afastar e deixar aqueles tipos por conta própria em suas possibilidades mantidas em aberto e sem respostas.

‘Na Praia à Noite Sozinha’, de Hong Sang-soo

Por Fernando Oriente

Existe um ponto, um centro a partir do qual todo o discurso e a enunciação do novo longa de Hong Sang-soo são construídos: a luz. A luminosidade, suas intensidades, texturas e nuances, a maneira como ela condiciona toda a composição do quadro, evolui em harmonia ou oposição a dramaturgia e a narrativa, a forma como essa luz reflete as emoções e conflitos do interior dos personagens são a base formal e poética com que Hong constrói um de seus filmes mais pessoais e amargos. Se como diz Julio Bressane, “o devir do quadro é o devir da luz”, em ‘Na Praia à Noite Sozinha’ todo o tornar-se e o vir a ser, bem como as transformações dos personagens e ações, são condicionadas e reconfigurados pelas modulações da luz. É por meio de um elemento formal e estrutural de linguagem cinematográfica, que aqui assume o papel de dominante da composição discursiva, que o diretor conduz o espectador dentro de seu estilo característico de encenação. A luz de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ é a luz de inverno, seja filtrada pelas nuvens do céu nublado de Hamburgo ou iluminando os espaços com a beleza melancólica em seu tom dourado a partir do céu azul na Coréia. Uma luz que suavemente emoldura os detalhes de um vaso de flor, penetra por janelas em ambientes internos ou acompanha os personagens em seus deslocamentos pelos espaços abertos, ao mesmo tempo em que, ausente nas cruciais cenas noturnas, é transposta em funcionalidade estética ao uso que Hong Sang-soo faz da luz artificial que invade a noite.

‘Na Praia à Noite Sozinha’ é dividido em três atos, cada um num espaço-tempo distinto e separado por elipses potentes. Acompanhamos a atriz Younghee logo após o término de seu romance com um diretor de cinema casado. Frágil, num misto e esperança e desilusão, ela vive o conflito de ainda acreditar na retomada de sua relação com esse homem e os indícios de que esse amor não será nunca consolidado. Em sua jornada por esses três diferentes lugares, primeiro a cidade de Hamburgo na Alemanha – em que passa os dias se deslocando pela cidade ao lado de uma amiga coreana moradora de Hamburgo que conheceu na viagem –  e depois em sua volta a Coréia do Sul, onde reencontra conhecidos e amigos do passado em uma cidade no litoral até a última parte do filme, em que se hospeda em um hotel de frente para a praia, Younghee está sempre à deriva, tanto geográfica quanto existencialmente.

Sua interação com os demais personagens reflete seu estado de espírito, trata cada um que cruza seu caminho com um misto de afeto e ressentimento. Projeta neles suas próprias frustrações e vê em cada um aquilo que ela própria se tornou, foi incapaz de se tornar (mas que não aceita) e o conformismo com que o ser-humano é obrigado a lidar para sobreviver em um mundo que paixões, desejos e ambições têm que ser reprimidos por forças que fogem do controle e oprimem as pulsões e ilusões de autorrealização, bem como as ideias utópicas de que poderemos um dia vir a ser ou viver aquilo que sonhamos para nós mesmos e nossas vidas. A força de Younghee está em ir na contracorrente e não aceitar o que o destino apresenta a ela, num misto de fúria inconformada e dor resignada e que a faz se distanciar/discordar do modo como os personagens com quem interage aceitam a submissão e anulação existencial de seus desejos. Mesmo sabendo de sua condenação, ela revida com sua agressividade não conformista.

Novamente Hong Sang-soo trabalha os deslocamentos físicos de seus personagens como reflexo das instabilidades e da volatilidade dos tipos em processos de crise e questionamentos existenciais, que, ao se afastarem de seus habitats cotidianos, procuram se redefinir, refletir e buscar respostas em lugares distintos, bem como dentro de si mesmos. O confronto com novos ambientes, promove a liberação de sensações, pensamentos e ações até então recalcados. A inscrição do tempo vivido em novos espaços desloca os movimentos internos dos personagens, notadamente de Younghee, em direção a uma liberdade espaço-temporal que se oferece como possibilidade de novas auto definições de subjetividades fraturadas.

Como em toda sua obra, Hong constrói a evolução dramático-narrativa de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ sobrepondo momentos de contemplação – em que a câmera acompanha os personagens em ações corriqueiras, observações e reflexões silenciosas e movimentação por espaços internos e externos – com cenas em que a palavra toma conta da diegese por meio de longos diálogos que vão de simples conversas afetuosas a conflitos verbais violentos; que em ‘Na Praia à Noite Sozinha’ atingem uma virulência extrema por meio de rompantes discursivos carregados de fúria, frustração e raiva – Younghee é uma das personagens mais agressivas já vistas no cinema de Hong Sang-soo, uma mulher forte que extravasa suas dores e conflitos internos por meio de uma agressividade verbal que mistura sinceridade sem freios e uma urgência em encontrar soluções para seus dilemas morais e desejos conflituosos frustrados que dilaceram seu estar no mundo.

Mais uma vez, é notável o trabalho de câmera de Hong Sang-soo, que abusa de planos longos, movimentos de aproximação e recuo e constantes variações de distâncias focais dentro do mesmo take, compondo as tensões dos diálogos e dos dramas sem usar o corte e a relação campo/contra-campo. Hong resolve todos os conflitos dentro do mesmo plano, na maneira como compõe e reconfigura o quadro. Ao mesmo tempo, ele faz da câmera um elemento presente, quebra a ilusão do dispositivo por acentuar e deixar explícita a presença física da câmera e seus deslocamentos e movimentos, coloca na superfície da encenação a mecânica das aproximações e recuos, os deslizamentos laterais da imagem e, no caso de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ o diretor acompanha a violência dos diálogos com uma movimentação brusca dessa câmera personagem, que vai de um personagem a outro de maneira rápida, em travellings curtos e secos que desestabilizam o quadro e acentuam tanto a presença do tipo que fala em enquadramento como as reações daquele que responde no extracampo.

A força da mise-en-scéne que Hong Sang-soo imprime nas cenas de diálogo – dos mais serenos e banais aos mais intensos -, com todo esse complexo trabalho e câmera e reorganizações de quadro, permite com que o discurso do filme seja ampliado profundamente em suas texturas. Organicamente, Hong faz de seus diálogos momentos cruciais para a evolução narrativa e para as soluções dramatúrgicas, ao mesmo tempo que que discute questões existenciais, comportamentais, políticas, afetivas e próprio cinema e fazer cinema. Intercalados com as sequências contemplativas – igualmente encenadas de maneira preciosa -, os longos diálogos, as conversas corriqueiras, as discussões acaloradas formam camadas de observação do mundo, de desnudamento emocional de personagens e de construção dramática de conflitos e relações. A força da palavra é sempre propulsora dos tecidos de discurso fílmico, sempre aliada à solidez e à significância das imagens registradas com primor e detalhamento – imagens que, da mesma forma, são promotoras de materialização de todas as discussões e temas presentes na enunciação do filme. Tudo emoldurado, proposto e configurado a partir da luz e suas modulações.

‘Na Praia à Noite Sozinha’, assim como cinema de Hong Sang-soo, é resultado da força da dialética presente entre a palavra, o texto falado e a estilística das composições de imagens, tudo aliado a uma primorosa construção espaço-temporal que promove as ações, as texturas dos personagens e o estar no mundo dentro de temporalidades e durações que se redefinem na materialidade sensorial das presenças, dos movimentos e gestos que ocupam os espaços captados e configurados pela câmera. Um cinema de potência altíssima de um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo.

‘Twin Peaks’ – temporada 3, de David Lynch (2017)

Por Fernando Oriente

O olhar que vai além do que supostamente se coloca como visível. Um olhar que conduz, incerto e por meio de fragmentos, a contemplação subjetiva das coisas ocultas, do que é irrepresentável pelo texto e pela palavra. O magnífico e o abjeto, o bem e o mal e todas as camadas e nuances entre esses polos. Ver por meio de imagens fabricadas, pelo olho de uma câmera que tudo pode, que tem acesso ao inimaginável. Essas são algumas das premissas centrais da obra de David Lynch e que nos 18 episódios da terceira temporada de ‘Twin Peaks’ atingem um grau de excelência que beira o sublime. Mais do que uma série de televisão, os novos episódios de ‘Twin Peaks’ são o cinema em suas potências máximas. Lynch revisita e atualiza toda sua obra e ainda vai além. Propõe e rearranja todos seus temas, discursos, inquietações e enunciados. Com completo domínio de uma assombrosa liberdade formal e narrativa, o diretor extrapola as convenções, os gêneros, as expectativas e cria um universo visual e discursivo com infinitas camadas de leitura e sem a menor preocupação em seguir a lógica limitadora da representação tradicional engessada do cinema padrão, seja esse o cinema convencional ou o pseudo-cinema de arte legitimado pelo bom gosto publicitário que tomou conta dos grandes festivais.

Muitas leituras da obra de Lynch chamam atenção para o caráter fantástico de seus trabalhos, mas é muito mais no campo do onírico, do sonho, que ele constrói sua matéria. O diretor trabalha dentro de uma liberação poética de um espaço-tempo em que a distinção entre realidade e sonho é abolida. A composição de suas imagens e a maneira como as organiza pela montagem seguem um processo análogo ao do pensamento e do sonho, abolindo as noções de ordem cronológica, verossimilhança e duração temporal. São sonhos ou pesadelos que nos dizem muito mais das impossibilidades de compreensão e de captura do mundo em que vivemos do que a esmagadora maioria dos documentários ou ficções realistas. O novo ‘Twin Peaks’ surge como um complexo mosaico que traduz com uma eficiência ímpar o estado de coisas em que estamos mergulhados. Lynch apresenta uma visão polifônica do atual espírito do tempo, consciente a cada fotograma do período histórico em que foi realizado, mas em constante diálogo com as construções do passado e as incertezas extremas em relação ao futuro. O caos, as multiplicidades das subjetividades do ser-humano, a precariedade da existência, a exclusão, a insegurança, a solidão, a desorientação em meio à alienação capitalista que direciona cada indivíduo a ser um trabalhador/consumidor 24 horas por dia, o colapso das relações com o outro, as promessas de gozo vendidas constantemente, mas que nunca são capazes de saciar os cada vez mais difusos desejos humanos; tudo o que vivemos se reflete no discurso e nas imagens que Lynch cria nesses 18 episódios.

A construção narrativa da terceira temporada de ‘Twin Peaks’ dialoga de maneira intensa e livre tanto com as duas primeiras temporadas da série (realizadas em 1990) quanto com o longa ‘Fire Walk With Me’, de 1992 – bem como com diversos filmes do diretor, mais especificamente ‘Estrada Perdida’ (1997), ‘Cidade dos Sonhos/Mulholland Drive’ (2001) e ‘Império dos Sonhos/Inland Empire (2006). Mas como se trata de David Lynch, nesse novo ‘Twin Peaks, personagens, acontecimentos, relações e dramas são reconfigurados, assumem novos tons e tomam um rumo abstrato, cada vez mais ligados ao onírico, ao fantástico, aquilo de que nem nós como espectadores e muito menos os personagens têm controle ou mesmo noção. Novos tipos nos são apresentados, velhos conhecidos ressurgem alterados pela passagem de 25 anos em suas vidas. Novas relações se constroem entre aqueles que já se conheciam e entre esses e os personagens que aparecem pela primeira vez. Diversas dessas relações seguem um padrão que já estava indicado há duas décadas, mas se reconfiguram. Personagens mudam, outros continuam próximos do que eram. A cronologia mais convencional presente nas duas primeiras temporadas dão lugar a uma evolução totalmente fragmentada. Inúmeros personagens surgem e desaparecem (bem como tensões e situações dramático-narrativas), deixam impressões que são postas em aberto. Para representar o caos e não linearidade do mundo, Lynch não se furta em abandonar personagens e situações dramáticas que põe em cena, deixar a narrativa em aberto e o tecido dramático cheio de potentes pontas soltas, o que confere algumas das forças sensoriais e discursivas de maior impacto do novo ‘Twin Peaks’. O que interessa é o todo fragmentado, a força das partes, dos climas, do que é sugerido, das presenças de tipos que mesmo vistos de maneira difusa e incerta impregnam o discurso com possibilidades, ampliam as tensões e a constante sensação de incerteza e deslocamento que são o fator dominante na dramaturgia e na matéria dos episódios da terceira temporada.

David Lynch faz questão de pegar situações ocorridas no passado e fazer com que se choquem com a(s) nova(s) realidade(s) que nos apresenta. Detalhes, signos, imagens, pistas dadas nas duas primeiras temporadas e no longa de 1992 voltam, condicionam novas ações ou simplesmente surgem para desparecer da mesma maneira como tudo o que pensamos acreditar se desvanece perante nosso olhar, um olhar que Lynch conduz com maestria, nos deslocando constantemente entre os diversos universos e realidades paralelas que cria. A cada episódio dessa nova temporada surgem novos tipos ou retornam antigos personagens. Lynch monta um quebra-cabeças narrativo fragmentado com a presença, a sugestão de presença ou a ausência de personagens do passado. O que conduz a grande maioria dos personagens são muito mais suas ações (por mais breves ou aparentemente insignificantes que sejam) do que seus motivos – motivos esses que são sempre sugestões, nunca certezas.

Algo notável nesses 18 novos episódios é ampliação dos cenários e espaços onde se desenrolam as ações. Vamos de Twin Peaks a Nova York, de Dakota do Sul a Las Vegas. Saímos do ambiente fixo da cidadezinha de Twin Peaks e as florestas em seus arredores para cidades grandes, paisagens distintas, mas cada local é impregnado pela mesma sensação de estranhamento e os diferentes pontos espalhados pelos Estados Unidos se relacionam entre si e sugerem, a cada novo episódio, um direcionamento para o núcleo espacial e dramático que é Twin Peaks. Além dos espaços “reais” que representam essas cidades, são fundamentais as zonas representativas de universos paralelos, seja o já conhecido Black Lodge ou os novos cenários onde se encontram tipos espectrais, novas entidades representativas do mal – os impressionantes “mendigos”, com suas caracterizações sombrias que exercem influência nos destinos de todos e se deslocam de um universo paralelo a outro. Tanto as diferentes cidades e espaços abertos quanto os lugares simbólicos e fantásticos, bem como as zonas (pontos cardinais) de acesso a esses universos espectrais são representações de algo chave para ‘Twin Peaks’: não existe uma realidade e sim diversos universos paralelos, diferentes realidades que constantemente se reconfiguram e se refletem umas nas outras. Mas, novamente, em qualquer dessas realidades, tanto no passado quanto no presente e em como um pode ou não alterar o outro, não existe redenção nem salvação diante do horror.

O tempo como noção cronológica e o real como entidade fixa não existem. São diferentes tempos, diferentes mundos, diferentes realidades, sempre em choque, que existem simultaneamente, que constantemente se reconfiguram e interferem umas nas outras – passado e presente convivem simultaneamente (“is it future or is it past?”). Da mesma forma não existem personagens sólidos e definidos, toda subjetividade pode ser reconfigurada a qualquer momento. É aí que a presença da força simbólica e dramática da figura do Duplo (algo clássico ao romantismo do século 19) irrompe em cena, como materialização das muitas possibilidades de ser de um personagem, dos múltiplos lados, características e ambivalências do ser como sendo os códigos fundadores de um mundo desprovido de unidade ou de sentido único.

É inegável que o personagem que centraliza e conduz toda a construção da terceira temporada de ‘Twin Peaks’ é o agente Cooper, tanto o seu original quanto o seu duplo – o “evil Cooper”. As relações que se estabelecem entre os dois Coopers e todos os que cruzam seus caminhos são condicionantes do tecido narrativo e da dramaturgia propostos por Lynch. A divisão do mesmo personagem em dois não o faz dois tipos distintos, mas duas representações e subjetividades de um mesmo homem, com suas múltiplas texturas existências e motivações, em que convivem o bem e o mal, diferentes pulsões e desejos, morte e vida, abjeção e redenção. Como todas as situações e possibilidades dramáticas, bem como todos os destinos (inseridos nas muitas realidades paralelas), os duplos representam a não-unidade do indivíduo e as distintas possibilidade de devir que cada um carrega dentro de si.

É importante ressaltar como Lynch se adapta aos novos dispositivos. Na terceira temporada de ‘Twin Peaks’, o uso do digital na captação das imagens, ao não permitir as granulações e texturas da película, reforça uma limpidez visual em que cores, formas e nitidez criam uma sensação espectorial de clareza e pureza que se deslocam em direção ao artificial. O que pode parecer um simples detalhe técnico assume uma dimensão de potência que aproxima a matéria fílmica desse campo onírico da representação de mundo que Lynch busca em todas as cenas. Cada possibilidade oferecida pela linguagem única do cinema é utilizada pelo diretor, nada em seu fazer cinema é desprovido de intenção. O mesmo efeito potencializador e liberdade criativa podem ser percebidos no antológico episódio 8 dessa nova temporada, em que David Lynch abandona o esqueleto narrativo que vinha desenvolvendo (para retomá-la no capitulo 9) e faz o que podemos definir como um filme a parte (um notável filme de horror que trabalha as origens, representações, significações e a presença do mal de maneira arrebatadora). Esse interlúdio inserido no meio da evolução dramática de quase dezoito horas de duração, eleva a dramaturgia, a narrativa e o discurso significante a um patamar mais alto, criando possibilidades dialéticas e ampliando ainda mais as texturas e camadas da obra em seu todo.

Lynch filma como poucos o horror, transcende os códigos do gênero e faz desse horror a força motora das situações dramáticas, tanto daquilo que traduz em imagens, quando do que deixa sugerido, no extracampo – mas um dos maiores méritos do diretor é fundir esse horror com a ironia, o humor e a autocrítica. O horror, o terror em David Lynch está presente na matéria de cada imagem, na constante sensação de deslocamento, de não-pertencimento, na sugestão da onipresença do mal, do desconhecido, daquilo se esconde por trás da aparente normalidade das situações e dos espaços, bem como o mal-estar, o medo e a estranheza; não existe estar seguro no mundo, nada é o que aparenta ser. Esse mal, esse horror está dentro de cada um, em todas as partes, é inevitável, um destino condenatório aguarda cada personagem. A última cena da terceira temporada, a que fecha o 18º episódio, é um dos momentos de horror mais intensos que já se viu.

Cineasta das sensações, da sugestão, dos climas e da sensorialidade da imagem, David Lynch é um mestre da encenação. Sua mise-en-scéne é notável, seu filmar é carregado de elegância, funcionalidade e beleza. Da composição do quadro, passando pelo uso da luz e dos posicionamentos de câmera, as distâncias focais, a precisão dos cortes, a relação como decupa cada segmento – usando como poucos as possibilidades dramáticas do campo e contra-campo – das variações entre closes, planos médios e planos abertos até os suaves e potentes movimentos de câmera e a movimentação interna do plano, tudo na construção cinematográfica de Lynch foge do banal e é fator crucial para como a forma é trabalhada em perfeita sintonia com o discurso, o que permite que seu cinema atinja a intensidade e um grau de excelência poucas vezes visto. Trabalhando no limite da gramática cinematográfica, a obra de David Lynch vai do clássico ao experimental, do cinema moderno às reconfigurações linguísticas, de gêneros e narrativas do pós-moderno. Assim como quase tudo o que já fez na carreira, a terceira temporada de ‘Twin Peaks’ é o vir a ser do maravilhamento pelo uso potente das imagens bem como do notável uso da banda sonora, com seus ruídos, sons não diegéticos e músicas. Esses 18 episódios formam um verdadeiro monumento do cinema.

‘Moscou’, de Eduardo Coutinho (2009)

Por Fernando Oriente

É notável como Eduardo Coutinho busca, de maneira orgânica, a dissolução das linhas de separação entre o documentário e a ficção, como trabalha sua mise-en-scène em função da ética daquilo que procura registrar. São elementos de linguagem típicas do diretor que se tornam mais explícitos em dois de seus últimos longas: ‘Jogo de Cena’ (2007) e ‘Moscou’; este último uma bela incursão pelo registro documental do processo construtivo da encenação ficcional, do quão potente é o homem e sua relação com a palavra, com o dizer, com o interpretar e pensar o mundo pelo texto e suas muitas arestas. Coutinho acompanha o grupo Galpão durante os ensaios e a montagem de “Três Irmãs”, de Anton Tchekhov, e com sua habilidade para captar as múltiplas camadas de tudo aquilo que filma, enfoca a densa relação entre o ser humano e o poder da palavra; a força que se pode extrair de um texto pela construção dramática calcada na faculdade da palavra (essa tensão é mesma do processo de encenação usado por Coutinho em ‘Moscou’, uma encenação que busca o incerto, o tornar-se, que se abre a tudo que se oferece diante de sua câmera) . É o registro sensível desse texto, da construção e reconfiguração desse texto que vem à tona em meio ao gesto e aos corpos daqueles que o articulam. Coutinho busca registrar o processo, esse caminho que leva da ideia, do texto impresso a uma propulsão de energia, a criação de algo indefinido, mas que toma forma no fazer, no fazer do grupo Galpão, no fazer do filme e na mediação proposta entre filme, texto, atores, espaços, tempo e o espectador.

Em ‘Moscou’, Coutinho usa uma montagem teatral (e as potências da linguagem da teatralidade reconfiguradas para a encenação cinematográfica) que nunca irá ser encenada, e com apenas as três semanas dadas ao grupo de Belo Horizonte para trabalhar o texto, retira desse processo criativo fragmentado elementos da obra de Tchekhov em que as sensações de angústia do homem comum e o peso do tempo de espera chegam de forma plena ao espectador. São da ordem moral que esse processo constitutivo evoca que vem a força e a autenticidade das imagens de Coutinho. As angústias do texto se fundem as pulsões tensas de um processo criativo em que atrizes e atores buscam dar forma ao texto, ao universo complexo de uma das mais fundamentais peças do autor russo. Da sofisticação dramática de Tchekhov, o cineasta extrai o vazio intransponível que condena os personagens da peça. É um diálogo constante entre as limitações e possibilidades de homens e mulheres e as representações ficcionais dessas condições humanas tratadas no texto original e como isso se relaciona com as capacidades e entraves do cinema em registrar algo fugidio, incerto. ‘Moscou’ é um estudo do processo criativo e construtivo por meio de seus movimentos internos.

Coutinho alterna planos do ensaio com workshops e cenas de bastidores do Galpão. Ele trabalha dentro de condições de precariedade que estão no próprio enunciado de seu filme. Do precário se constrói a autenticidade do cinema, um cinema ético, que sabe de seus limites e dele traz o que de maravilhoso reside nas limitações impostas.  Novamente o cineasta adentra a construção fílmica do conflito entre realidade e ficção e, ao pôr os fragmentos do drama ficcional em primeiro plano pela intensidade da palavra, correlaciona no real as conseqüências e a penetração da ficção. Antes de tudo, ‘Moscou’ é um tributo ao ato da criação, ao poder da palavra e do texto de Tchekhov e como esse texto é universal ao representar a fragilidade do ser humano. Ao mesmo tempo, o longa é a tentativa de traduzir a força material daquele que fala, do emissário de um texto, de uma ficção, de uma realidade em processo de recriação. A opção em abordar “Três Irmãs” por meio da construção da encenação amplia ainda mais o aspecto sensorial, e ao mesmo tempo físico, da obra. Ao depurar e enxugar os elementos dramáticos e os recursos de encenação e deixar o texto apenas no discurso dos atores, na presença material destes, a força desse texto é sentida de maneira mais crua e objetiva. Os atores são identificados logo como portares, transmissores da palavra e, como a força da palavra vem de seus discursos, a identificação do público com o drama se torna mais complexa e difusa, abrindo possibilidades de interpretação e leituras sempre em construção e num jogo posto entre imagem, texto e a mediação do dispositivo que se constitui pela encenação de Coutinho.

As opções formais de Coutinho são destaque a parte. Planos médios intercalados a ângulos fechados nos atores, com seus rostos em primeiro plano, aumentam as texturas da relação do humano com a palavra (o devir dessa palavra num constante vir a ser da ficção) e com a significação das emoções contidas nos nuances do texto original. A câmera do diretor busca o ser-humano em estado natural, sua inserção nos espaços e as relações espaciais e temporais que surgem desse processo. É notável a preocupação do cineasta em buscar o gesto natural, a expressividade autêntica, as incertezas e a espontaneidade dos tipos que filma. O trabalho de luz, usando a iluminação artificial do teatro, forma uma moldura discreta para o registro das ações e dos discursos. A simplicidade desses recursos esconde um conceito estético radical que caracteriza a obra do diretor. A câmera não se preocupa apenas com a captação dos atores e atrizes e seus movimentos. O cenário, o ambiente onde o processo de construção de “Três Irmãs” está em andamento, também é destaque e a relação entre espaço físico e atuação ganha tratamento primoroso pelos posicionamentos de câmera.

Outra característica presente em ‘Moscou’, e que também pode ser comprovada por meio dos últimos trabalhos de Eduardo Coutinho, é a preocupação do diretor com a memória. Uma memória que surge da palavra, das imagens e sensações que são resgatadas e materializadas por essas palavras, pelo ato de falar, por tudo que evocam. Um exercício de afirmação da memória em um mundo que força o homem a um eterno presente impessoal e congelado, em que a memória e as imagens não têm mais espaço e se perdem (em valor, em afeto e em subjetividades esmagas) em meio a aceleração brusca de uma sociedade imediatista que destrói o Eu em detrimento da alienação do consumo e da promessa de satisfação imediata dos desejos mais rasos. Esse enfoque é nítido dentro da obra de Coutinho, bem como nos textos de Anton Tchekhov e a releitura extremamente atual desse conceito elaborada por Coutinho eleva seu filme a um patamar ainda mais complexo. É na abordagem feita na convergência de múltiplos elementos que o cineasta ergue as estruturas de seu cinema ímpar.

‘O Anjo Nasceu’, de Julio Bressane (1969)

Por Fernando Oriente

Em “O Anjo Nasceu’ estamos diante de uma grande desconstrução. Tanto do cinema – de seus códigos formais e narrativos – bem como de noções e conceitos acerca da sociedade brasileira, seus ideários, sua moral e suas representações. Bressane realiza, nesse que é o seu terceiro longa-metragem, um dos mais bem sucedidos discursos sobre o que pode ser o cinema moderno e de como ele pode traduzir sensorialmente por meio da forma toda uma visão/reflexão da realidade daquilo em que o país está mergulhado. Aqui temos um realizador que acredita e constrói sua obra dentro de um conceito básico de vem desde o Modernismo (Semana de 22, Oswald de Andrade), passando por Brecht, Maiakovski, Artaud e Godard até ideias centrais e fundadoras do concretismo paulistano dos irmãos Campos e Décio Pignatari: é na forma, na descontração e reinvenção (realocação) da forma que se consolida a força de um novo discurso, de uma arte que visa novas fronteiras; a força que nasce da ruptura e da desconstrução para se pensar e interpretar a realidade a partir da potencia da criação; uma criação sem amarras, sem limites.

‘O Anjo Nasceu’ é filme atualíssimo e urgente, não só em 1969 quando foi realizado, mas também (e muito) nos dias de hoje. Ao acompanhar fragmentos de um curto período na vida de dois marginais em fuga, Urtiga (Milton Gonçalves) e Santa Maria (Hugo Carvana), Bressane constrói um painel do desespero, da angústia, da ausência de valores, da anulação subjetiva dos tipos e da violência como fatores endêmicos à sociedade – bem como o único caminho possível a ser percorrido. Marginais aqui não é um simples termo, um mero adjetivo classificatório que ajuda a separar pessoas entre bons e maus. Marginais no filme, e no cinema de Bressane, seguem a classificação antropológica de seres que vivem à margem da sociedade. Forçados ou não, eles foram moldados pelo meio para seguirem em caminhos sem esperanças concretas, de negação, de confronto e de ruptura com a normais tidas como aceitáveis.

Não existe em ‘O Anjo Nasceu’ a preocupação com a reconciliação, seja com os personagens, com o espectador ou com o país. Diferente do Cinema Novo, Bressane não trabalha com as possíveis possibilidades redentoras de uma luta de classes, nem com a perspectiva de ações revolucionárias, muito menos com lampejos de transformação. O diretor registra de maneira distanciada (ao mesmo tempo em que direta e passional) uma realidade já contaminada pelos efeitos dessa luta de classe, recheada de tipos que carregam em si, de maneira atávica, a violência, a crueldade, a rejeição e a disposição para o conflito. Não vemos uma glorificação revolucionária na violência dos tipos marginalizados, nem uma negação consciente do sistema. Eles agem por impulsos predeterminados, seguem num estado de eterna tensão, sempre à espera do confronto e diante de uma ameaça onipresente da morte.

Não temos em ‘O Anjo Nasceu’ a utopia presente nos filmes cinemanovistas; é a descrença, a condenação e a impossibilidade de mudança do status quo que marcam o filme. Não existe espaço para mártires, heróis do povo, intelectuais que abraçam causas revolucionárias. É o cinema do fim das utopias, como escreveu Ismail Xavier em suas análises sobre os primeiros filmes de Bressane e Rogério Sganzerla. É uma atualização e uma negação evolutiva do Cinema Novo (com quem o filme mantém um diálogo tenso) que marca a forma e o tecido dramático de ‘O Anjo Nasceu’. Não há no filme nenhum discurso sociologizante, nenhum maniqueísmo, o filme é político ao extremo por meio daquilo que expõe de forma seca e pela maneira como é construído em seu todo. Uma forma tão bem elaborada e funcional que é a partir dela que esse discurso político-social é condicionado e potencializado.

Bressane registra tudo de maneira analítica, com a câmera quase sempre distante, em planos abertos e estáticos em que personagens e cenários são vistos por completo no interior da cena e onde suas ações se desenrolam dentro de uma noção espaço-tempo determinada, que definem o todo do quadro. Sua câmera evita se tornar personagem ou adotar pontos de vista subjetivos. Interessam a ação, os gestos, as falas, os tipos e suas relações entre si e com os ambientes. O não-pertencimento que Urtiga e Santa Maria sentem se manifesta em todos os seus gestos, nas grandes e pequenas ações. O filme traz para o centro da sua construção dramático-narrativa e imagética a presença significante do corpo. A corporalidade como fator determinante das possibilidades do indivíduo. É na presença do corpo na superfície da encenação que se determina as potências dos personagens. Corpos que carregam o ser, o tornar-se e o existir desses personagens.

Os momentos de espera, de descanso, quando os personagens almoçam, deitam ou assistem televisão na casa que invadem (ao lado de suas reféns: a patroa e a empregada) são situações exploradas com densidade calculada por Bressane para retratar o mal estar da presença de seus marginais não só naquela ambiente em que se encontram, bem como na vida que levam. A banalidade de suas ações está em todos os atos que cometem, desde sentar à mesa e comer, dançar, conversar e cantar até quando agridem ou matam as vítimas que passam pelo seu caminho. Não existem remorsos ou culpa. Essa banalidade, essa naturalização da crueldade é reflexo de um mundo, de um país, de uma realidade que Bressane recria de forma primorosa, pela forma depurada, distante, complexa e desconcertante com que constrói as cenas e as projeta nas sequências seguintes com vigor e força por meio da montagem, calcada nos cortes secos e nas elipses.

‘O Anjo Nasceu’ é composto de momentos isolados de um recorte do cotidiano de Urtiga e Santa Maria. Esses momentos são amarrados por pequenos saltos narrativos em que ações independentes dialogam entre si, no conjunto; já que tudo é parte do mesmo caminho sem volta que os personagens percorrem. Desde as primeiras cenas (em que se encontram na favela, escondidos e com receio de descer por medo da perseguição da polícia), passando pela sequência em que os vemos após um conflito em que Santa Maria sai machucado com um tiro na perna, até as passagens seguintes, quando descobrem uma casa isolada, à beira do mar (que invadem e fazem das moradoras suas reféns e as usam para servi-los enquanto relaxam e se escondem em meio à tensão da perseguição de que são vítimas), chegando às passagens finais, em que dentro de um carro vagam sem rumo por ruas e estradas, tudo são fragmentos da realidade dos protagonistas que Bressane enfatiza, sempre de maneira analítica e visceral, conduzindo seus tipos para um destino incerto, mas trágico. Cada cena é carregada de sentidos, são significantes isolados dentro do todo narrativo – uma das características mais marcantes do cinema moderno surgido no final da década de 1950, em filmes que passam a se comunicar de maneira mais intensa por meio de suas sequências e planos do que pelo conjunto da narrativa.

Embora Urtiga e Santa Maria ajam dentro dos impulsos em que as situações e suas realidades de vida os reduzem e conduzem, sem tempo para reflexões profundas ou grandes planejamentos, ambos não deixam de ter suas crenças e suas ideias do que poderiam fazer para viver uma realidade distinta, com remotas possibilidades de sossego e tranquilidade. Após abandonarem a casa que invadiram, tendo assassinado as moradoras, a dupla assalta e mata um grupo de pessoas dentro de um carro estacionado num acostamento. Ao contarem o dinheiro ganho no assalto, pensam em comprar um sítio para descansarem e viverem em paz, como diz Santa Maria. Esse diálogo é logo interrompido por Urtiga, que diz que não sabe se teria condições de viver uma vida no campo, ‘Sou um homem da cidade’, afirma ele em meio uma risada debochada. O filme é repleto de ironia e de um humor amargo, o que torna as situações mais tensas. Em meio à desordem em que vivem, ambos têm suas próprias manifestações de fé e espiritualidade, que são tratadas por Bressane da mesma maneira distante e que foge de um tratamento metafísico direto ou tradicional. Urtiga afirma que vai para céu, fala em Deus. Santa Maria insiste sempre que vê um anjo e em momentos de desespero fala sobre o anjo e grita a respeito da presença desse anjo que o acompanha. Esse detalhe traz uma dose de humanidade aos tipos duros, além de revelar a carência existencial de personagens tão secos e descrentes.

Bressane opta quase sempre pelos já citados planos abertos e estáticos, mas os intercala com pequenos closes – como no sangue que escorre da perna de Santa Maria manchando o chão após esse ter sido baleado -, breves panorâmicas ou quando a câmera segue o mesmo Santa Maria em um belíssimo travelling lateral enquanto ele manca e se arrasta em dor encostado ao longo de um muro até Urtiga entrar no quadro e abraçar o amigo. Também são notáveis as cenas em que os protagonistas são filmados de costas dentro do carro em movimento, momentos em que sentimos o deslocamento sem destino e veloz. Essa variação entre distâncias focais e movimentos de câmera ajudam a desconstrução formal do filme e a consolidação urgente da dramaturgia, aumentando a sensação de tensão e a composição caótica de espaço e tempo, uma desorientação das possibilidades da própria imagem. Outro fator fundamental e desestabilizador em ‘O Anjo Nasceu’ é o uso da banda sonora. Constantemente as cenas são invadidas por canções, trechos de música e ruídos que irrompem alto em meio às ações e falas na tela.

A força do discurso que Bressane constrói em ‘O Anjo Nasceu’ é potencializada ao extremo pelo desfecho do filme. Santa Maria grita de dor e desespero no banco do passageiro de um carro enquanto Urtiga dirige em alta velocidade por uma estradinha no interior do Rio de Janeiro. Temos um corte e vemos o carro se deslocar em linha reta seguindo o trajeto. Bressane fixa a câmera e o espectador acompanha o carro sumir no horizonte, saindo do quadro enquanto as imagens registram a estrada vazia, com a câmera estática. Ao não acompanhar o veículo e os personagens naquilo que os aguarda pelo caminho, Bressane nega um possível road movie que o filme poderia se tornar, tira os personagens de cena e interrompe a narrativa. A cena, com a estrada vazia preenchida apenas por um ou dois carros que seguem caminho contrário aquele em que estavam Urtiga e Santa Maria surgem e desaparecem do plano para manter o quadro estático. Fora isso só vê a estrada e a luz do sol refletida no asfalto. Um filme interrompido que aponta as incertezas e sugere a condenação dos protagonistas. Condenação e incertezas essas que Bressane projeta no espectador e no Brasil. Um filme seminal, um verdadeiro monumento do cinema mundial, realizado por esse que é um dos maiores cineastas que já existiu.

 

Crítica ampliada e revisada. O texto original foi escrito para o livro ‘Os 100 Melhores Filmes Brasileiros’ da Abraccine.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2017

Por Fernando Oriente

‘Guerra do Paraguay’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2017, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2017

  1.  ‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil) (leia crítica)
  2. ‘Beduíno’, de Julio Bressane. (Brasil) (leia crítica)
  3. ‘O Ornitólogo’, de João Pedro Rodrigues. (Portugal) (leia crítica)
  4. ‘Corra!’, de Jordan Peele. (EUA) (leia crítica)
  5. ‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie. (França) (leia crítica)
  6. ‘Toni Erdmann’, de Maren Ade. (Alemanha)
  7. ‘Martírio’, de Vincent Carelli. (Brasil)
  8. ‘O Filho de Joseph’, de Eugène Green. (França)
  9. ‘Fragmentado’ de M. Night Shyamalan. (EUA) (leia crítica)
  10. ‘Um Limite Entre Nós’, de Denzel Washington. (EUA)

 

‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie

Por Fernando Oriente

Após utilizar diversos gêneros como matéria na composição dramática de seus filmes, variando da comédia ao thriller, passando pelo drama social (muitas vezes os fundindo dentro da mesma obra), Alain Guiraudie chega a seu último longa, ‘Na Vertical’ com uma liberdade formal e narrativa em que essa opção do gênero (ou de gêneros) como recurso impulsionador do discurso se dilui e dá lugar a uma composição (discursiva e formal) em que a desorientação e os deslocamentos existenciais, físicos e temporais de seus personagens conduzem todo o processo para a potencialização plena das sensações, dos sentimentos e das incertezas. O resultado é um filme que não se encaixa em classificações e o que fica, tanto nas imagens e personagens, bem como no espectador, é uma forte sensação de melancolia, dúvida e vazio.

O cinema de Alain Guiraudie tem no desejo e nas pulsões seu núcleo, de onde surgem narrativas, discursos, dramas e suas respectivas soluções dramáticas, bem como a estética e as opções formais de cada um de seus filmes. O desejo humano pode assumir as mais distintas formas de manifestação, sendo reprimido, extrapolado, deslocado, idealizado ou coibido. Nada mais forte do que uma pulsão como o desejo, suas raízes e seu papel central nas definições das personalidades de homens e mulheres e na forma como definem as relações consigo mesmo e com o outro. Em ‘Na Vertical’, Guiraudie trabalha o vazio do desejo. A estagnação da pulsão na prostração esmagadora do eu desejante, na frustração da impossibilidade de existir em plenitude de seus personagens.

O personagem central, Léo, é um tipo em constante deslocamento, não para por muito tempo em nenhum lugar. Mas por mais que vá do campo à cidade, da estrada para um bosque, saia de uma casa para outra, acaba sempre retornando para os mesmos lugares, encontrando e reencontrando os mesmos tipos e paisagens, para logo depois se por novamente em movimento. Ao mesmo tempo, sua pouca estabilidade e segurança vão ruindo numa espiral de acontecimentos ao qual ele não tem controle e tão pouco consegue perceber. Cada pessoa que aparece em seu caminho acaba por formar um laço com ele, e por mais que se desloquem, sempre retornam a se encontrar, a estar frente a frente. É um filme de encontros (e redefinição desses encontros), em que as situações, os personagens, suas sensações e ações mudam, mas o estar com o outro, o (re)encontro permanecem sempre, encerrando a todos em uma espécie de prisão espacial e temporal da qual ninguém consegue se libertar – libertação essa que só se torna viável na morte, morte essa que só é possível com a participação do outro.

‘Na Vertical’ é um filme todo construído na força dos cortes. Cada corte promove radicais mudanças espaciais e temporais. Encerram bruscamente ações e situações dramáticas para abrir caminho a novas tensões. A montagem por correspondências adotada por Guiraudie faz constantemente que os planos e sequências que vemos na tela ecoem nas cenas e imagens que se seguem. Cada nova sequência e cada nova imagem estão impregnadas por aquilo que já vimos passar na tela. O tempo é reconfigurado, expandido, relativizado, retorcido. O que fica é a materialidade de corpos incertos de suas potências, cansados, exauridos nas impossibilidades de completude. Corpos cansados já incapazes de fixar uma pulsão, uma estabilidade.

A encenação de Guiraudie em ‘Na Vertical’ abre mão dos planos estáticos de ‘Ce Vieux Rêve que Bouge’ (2001) e dos planos analíticos e subjetivos – com cadenciados movimentos de câmera – de ‘O Estranho no Lago’ (2013) – embora essas composições também estejam presentes no filme – e se aproxima mais da usada por ele em ‘O Rei da Fuga’ (2009), em que movimentos constantes de câmera, travellings, planos subjetivos, variações sucessivas de distâncias focais e cortes secos aumentam a força da desorientação e das incertezas dos personagens e dramas. Mas essa composição é aliada a um notável conjunto planos de abertos e estáticos (ou com suaves deslocamentos de câmera) em que o diretor faz com que os movimentos internos do quadro, dos personagens dentro da amplitude da paisagem, reforcem as sensações de pequenez e fragilidade do ser humano diante da imensidão dos espaços. A frieza analítica e o distanciamento no tom da mise-en-scéne promovem um deslocamento questionador do olhar, ao mesmo tempo em que conferem imagens e cenas e cenas de grande beleza.

Embora no cinema de Guiraudie a grande maioria de seus personagens sejam homens – o que é emblemático em filmes como ‘Ce Vieux Rêve Que Bouge’ e ‘O Estranho no Lago’, em só vemos personagens masculinos e sempre num mesmo cenário (a fábrica no primeiro e o lago e o bosque no segundo), Guiraudie também se utiliza de forma notável da presença da mulher em alguns de seus trabalhos, como em ‘O Rei da Fuga’. Em ‘Na Vertical’, a mulher tem papel central, tanto na personagem de Marie com quem Léo inicia uma relação afetiva e sexual e com quem acaba tendo um filho, como na personagem misteriosa da mulher que vive no bosque e que o protagonista vai ao encontro para buscar ajuda e alguma sensação de conforto e estabilidade, alguma rusga de certeza em meio a sua angustiante incompletude existencial. Marie, como mulher e na maneira como Léo se entrega a ela, com intensidade erótica e afetiva, são uma forma de Guiraudie reforçar a desorientação e o vazio no desejo, nas pulsões que movem Léo. O filme nos sugere que ele seja homossexual, mas sua sensação de deslocamento e incompletude o faz se envolver de maneira intensa com a jovem Marie, dedicando (mecanicamente) a ela seu afeto e sua libido. O personagem se entrega à relação como se entrega (de distintas maneiras e com expectativas diversas) a cada novo tipo que surge em seu caminho.

O se entregar ao outro de Léo é sempre uma ação, um movimento incompleto, em que as dúvidas em relação a esse outro, a ele mesmo e a esses laços que se estabelecem entre eles são sempre mais fortes – e fazem dessas relações agenciamentos já condenados a não realização plena – e nunca proporcionam, nem para o protagonista nem para aqueles que cruzam seu caminho, uma possibilidade real de comprometimento, de empatia, de completude. Não existe jamais um autêntico estar junto. Estar junto é uma impossibilidade já anunciada. De diferentes formas, Léo vê em cada corpo, em cada indivíduo um lampejo frágil de possível afirmação e concretização do desejo, para uma breve e parcial realização afetiva e existencial. É uma constante maneira de procurar no outro o destino de suas pulsões, mas esse outro, seja que for, nunca irá ser o que ele espera, nunca será o ponto de chegada de sua jornada passional-existencial. O mesmo movimento de encontros e reencontros ocorrem com todos os personagens, em um filme em que cada tipo que surge na tela tem papel crucial no discurso fílmico de Guiraudie. Em ‘Na Vertical’ temos uma constante ressignificação dos núcleos de convivência e relacionamento, principalmente em relação as estruturas e a noção de família e de como e por quem elas são formadas e se mantém – mesmo que por pouquíssimo tempo – até esses vínculos e laços serem rompidos e reorganizados.

O desejo e seus desdobramentos e incertezas, tendo nos corpos seu local privilegiado de realização, tornam esses corpos focos de relações de saber e poder, além de colocarem o corpo como centro de construção de subjetividades. E o corpo sempre foi matéria central no cinema de Guiraudie. Corpos à deriva ou a procura de outros corpos. Personagens – na sua grande maioria homens cis homossexuais – movidos pelo desejo e que se encontram em cenas de sexo diretas, secas. O sexo é personagem nuclear e canalizador desse discurso do desejo. Guiraudie expõe sem pudores os corpos, cada uma de suas partes, fecha seus ângulos em órgãos genitais, em sequências de penetração, sexo oral, carícias, bem como em corpos nus antes ou após o gozo. A materialidade do corpo, o papel central das formas e texturas de cada parte dos corpos são imagens de enorme potência discursiva no cinema do diretor. E não se trata de uma obsessão por corpos jovens e perfeitos. Temos constantemente sexo e desejo entre (e com) homens gordos, velhos que nem de longe se encontram no padrão publicitário de beleza.

Mas o sexo e a nudez seguem sempre a necessidade discursiva e dramática de cada filme de Guiraudie. Nada é gratuito. Em ‘Ce Vieux Revê que Bouge’ não temos nenhuma cena de sexo e os corpos nus são retratados de forma distante e fria. Já em ‘O Estranho no Lago’ a nudez e o sexo são onipresentes e intensos. ‘Na Vertical’ tem pontuais cenas de nudez e de sexo, mas cada uma delas é de imensa força e significância. Desde os closes na vagina de Marie e no pau de alguns personagens, passando pela transa entre Marie e Léo até a cena de sexo gay que leva a um suicídio assistido/impulsionado –  esta última sendo um dos grandes momentos do cinema recente. Guiraudie tem domínio completo da materialidade e da função dramática que confere a suas imagens dos corpos, das texturas que imprime neles, tanto em prostração quando em movimento. Tanto no repouso quanto na intensidade das trepadas.

‘Na Vertical’ é um filme que amplia e confirma a força do cinema de Alan Guiraudie. Um trabalho ainda mais cético na visão de mundo melancólica e desencantada do diretor. Temos todos os seus principais temas presentes, assim como a utilização precisa de seus habituais mecanismos de construção formal e discursiva. No cinema de Guiraudie, os indivíduos solitários, frágeis, incompletos e em constantes conflitos internos de pulsões e desejos são o centro de uma contemplação contemporânea do mundo que o diretor faz. A partir de corpos e desejos individuais, discute a sociedade atual de maneira complexa e ampla. A crise e os confrontos do indivíduo sempre são construídos por Guiraudie dentro de um discurso que reforça a dissolução dos afetos, a falência do mundo do trabalho, a impossibilidade de consolidação de relações sólidas com o outro, o individualismo e a desorientação que movem todos. Por mais particular e não convencional que sejam o universo, os dramas, ações e personagens criados e presentes nas imagens e na gramática cinematográfica de Guiraudie, tudo reflete o todo. E é a cada um de nós que seus filmes contemplam e desorientam; tiram-nos da posição de conforto e faz com que a inquietude do que está na tela seja uma extensão e uma refração de nós mesmos.

‘Corra!’ (Get Out!), de Jordan Peele

Por Fernando Oriente

Uma das possibilidades mais fascinantes do cinema, dos códigos permitidos pela escrita cinematográfica, é se trabalhar dentro de registros que mimetizam a realidade, constroem universos ficcionais cuja transparência em relação ao real são o centro e o fio condutor de um filme e, no interior dessa aparente realidade recriada, inserir elementos absurdos, surpresas inesperadas, situações anti-naturalistas. Esse processo, muito presente no cinema narrativo clássico – das comédias de Howard Hawks e Ernst Lubitsch aos suspenses de Hitchcock e os longas de horror de Jacques Tourneur – funciona como chave para o realizador incorporar ao discurso de sua obra comentários, reflexões e críticas ao mundo e à sociedade em que estão inseridos. São procedimentos que desestabilizam o espectador, expõem os mecanismos internos de funcionamento dessa sociedade que insiste em vender sua aparente normalidade e racionalidade. ‘Corra!’, de Jordan Peele, se utiliza desse procedimento para se consolidar como um dos mais originais e vigorosos retratos de um mundo falacioso em que a abjeção se esconde por trás da aparente cordialidade e das boas intenções. Um filme que desconstrói não só seus personagens, mas principalmente a imagem que eles manufaturam para si mesmos.

‘Corra!’ opera dentro do cinema de gênero, do terror psicológico ao horror catártico, mas mantém sempre um pé na comédia – ou melhor, numa comédia que se anuncia, que aparece em personagens isolados e situações ligeiras, mas jamais se efetiva no centro da matéria dramática. O que Peele faz é iludir o espectador com uma promessa de comicidade para daí deslocar seus personagens e ações para a estranheza do horror, mais especificamente o horror do racismo, da eterna dominação e opressão dos brancos sobre os negros. O grande mérito desse primeiro longa de Jordan Peele é construir uma das mais potentes críticas ao racismo incrustado na sociedade sem nunca ser panfletário, sentimentalista ou óbvio. Trata-se de um filme que expõe as vísceras de um mundo racista de dentro dele mesmo, de dentro do próprio modus operandi das relações sociais e, de maneira enfática, do interior da própria indústria do cinema e do entretenimento. É uma dupla exposição que arranca as máscaras tanto da sociedade como do próprio fazer cinema nos Estados Unidos.

O cinema de gênero se anuncia desde cedo em ‘Corra!’. É pela composição de climas, pelas sugestões de tensões que vão além da aparente normalidade das ações em cena, que Peele começa a tecer a estranheza que irá dominar toda a primeira metade do filme. Numa encenação direta, com câmera discreta e evolução narrativa fluída acompanhamos a viagem do jovem fotógrafo negro Chris (Daniel Kaluuya) e de sua namorada branca Rose (Allison Williams) para um fim de semana na casa dos pais da moça; oportunidade em que a família da garota irá conhecer seu novo namorado. Chris se preocupa em saber qual será a reação de uma família branca ao saber que sua filha namora um negro. As promessas de Rose de que seus pais não são racistas se confirmam com a chegada deles a casa. Tanto o pai quanto a mãe da jovem são gentis, simpáticos e agem com total naturalidade diante de Chris. Mas Peele deixa claro, pela maneira como compõe a dramaturgia das sequências que algo está fora do lugar. Sejam os termos “descolados” que o pai dela usa ao conversar com Chris, a serenidade arrogante da mãe da garota e principalmente a apatia dos dois empregados negros da casa – que se portam como estranha cordialidade, se dizendo felizes e “parte da família”. Mas é nos olhares, nos gestos, no que os rostos escondem e o que algumas poucas falam deixam escapar que o espectador percebe que o universo daquela casa é artificial e algo muito maior se esconde por trás das aparências.

O momento que marca a primeira grande ruptura na evolução narrativa é a festa que acontece no dia seguinte a chegada de Chris e Rose a casa. Um grupo de casais brancos, quase todos velhos, alinhados e sorridentes, exalando bom gosto e simpatia toma conta do ambiente. Todos querem falar com Chris, sorrirem, serem agradáveis. Vemos um desfile de máscaras, de cinismos, da arrogância elitista dos brancos bem sucedidos da América. Uma mulher elogia o fisco de Chris, um velho diz que Tiger Woods (o multi-campeão golfista negro é o melhor jogador de todos os tempos), outro convidado diz que no mundo de hoje “o negro está na moda”. São novamente os olhares, os gestos e as expressões que, ao lado da crescente tensão que Peele vai inserindo na construção cênica, vão levando o filme cada vez mais para o terreno do suspense e do terror psicológico. O único convidado negro da festa, um jovem em roupas ridículas que nada tem a ver com sua aparência e casado com uma mulher bem mais velha, detona a virada do filme, ao ter uma atitude totalmente inesperada e violenta ao receber o flash da câmera de Chris em seus olhos.

A partir desse ponto, o horror e o absurdo tomam conta de ‘Corra!’ e todas as máscaras caem, toda a aparência de tranquilidade e tolerância racial derretem. Essa transição, já assinalada desde o início do filme, é muito bem conduzida por Peele, que domina a as evoluções e variações dramáticas de sua composição narrativa. O filme se transforma num misto de fantasia e terror, mas tudo dentro do mesmo ambiente de normatividade realista. O horror e o absurdo estão no centro da normalidade do mundo, no núcleo das aparências. É aí que está escondido o racismo, a opressão do branco sobre o negro. O normal é o racismo, a regra é a opressão de raça. A sociedade é racista e um país que teve séculos de escravidão não se livrou dela, apenas mudou as formas de escravizar. Corpos e mentes de negros continuam servindo para serem objetos de uso dos brancos, que se apropriam dos negros para tudo. As situações de ficção científica típica dos filmes dos anos 50 que Peele usa em ‘Corra!’ nada mais são do que formas do diretor inserir em seu discurso a capacidade ilimitada de opressão e aniquilação dos negros pelos brancos e o absurdo das ações, o anti-naturalismo das soluções, são potentíssimos elementos que escancaram a violência e as manifestações do racismo.

Jordan Peele opta por um final clássico de salvação do herói. Chris consegue fugir dos planos terríveis da família e sua fuga é marcada por explosões de brutalidade, em que ele mata seus algozes com fúria em cenas de forte violência gráfica muito bem construídas pelo diretor. A escolha pelo happy end – quando Rod, o amigo negro de Chris (personagem cômico fundamental no filme) surge para resgatá-lo – é um comentário preciso de Peele, que se utiliza do clássico final feliz (branco) hollywoodiano para desconstruir ainda mais os mecanismos da indústria cinematográfica, usando de seus próprios lugares comuns para fortalecer o discurso do filme que detona o racismo e suas múltiplas estruturas de funcionamento e manutenção.

‘Corra!’ é um filme recheado de subtextos, um universo de leituras está contido dentro de sua aparente simplicidade narrativa de gênero. Cada sequência indica muitas possibilidades de decodificação de estruturas de opressão racial, desde a falácia da cordialidade até a falsa ideia de que os negros nos EUA estão em condições muito melhores, seja por causa do sucesso de artistas e esportistas negros, seja pelo fato de um presidente negro ter sido eleito e reeleito para o cargo mais importante do mundo. Não a toa que por mais de uma vez se comenta no filme que o pai de Rose votou em Obama e votaria de novo, já que ele acha que esse foi o melhor presidente da história do país. Jordan Peele deixa claro que para os brancos o negro pode “estar na moda”, pode ter representantes em altos cargos, pode levar milhões de jovens brancos a os considerarem ídolos, mas a questão do racismo, da ideia atávica da superioridade racial está tão presente quanto sempre.

É interessante ressaltar que Jordan Peele, um comediante talentoso, influenciado por toda uma escola de humoristas negros brilhantes – de Richard Pryor a Eddie Murphy, de Cris Rock a Dave Chappelle – se utiliza em seu longa de estreia como diretor de enunciados clássicos de alguns dos principais esquetes desses comediantes (e dele mesmo) para desenvolver um filme em que o humor ácido serve de fio condutor ao terror psicológico, à ação e ao horror. Até na fusão e no contrabando de gêneros, Peele se sai bem demais. ‘Corra!’ é um filmaço.

‘Beduíno’, de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

“O mundo filmado terá sido uma utopia mais forte que o mundo sonhado pelas utopias políticas”, essa frase de Jean-Louis Comolli tem uma relação muito intensa com o cinema de Julio Bressane, principalmente nos filmes que o diretor realiza desde os anos 1990. Em ‘Beduíno’, seu último longa, essa afirmação de Comolli dialoga de maneira crucial com o núcleo do qual Bressane constrói o filme. ‘Beduíno’ é a encenação de um processo de reinvenção do mundo pela criação constante de novas ficções e narrativas no interior da banalidade da rotina imposta, o esforço de ficcionalizar, de transformar e materializar o sonho (a utopia) a partir da essência onírica da vida. Um filme que procura traduzir estados de espírito, inquietações e desejos em imagens; um longa que busca o cinema em sua potência máxima, em sua essência fundadora e naquilo que ele, o cinema e sua gramática, podem nos dar de novo: um mundo filmado em que as utopias serão sempre mais fortes pois sua matéria é a criação, a renovação, o movimento interno do quadro, a encenação. Um universo discursivo e sensorial redefinido na potência das imagens e em seu constante poder de transformação, de deslocamento e desprendimento do que é imposto e limitado pela ditadura do real.

Em ‘Beduíno’ temos um casal (Alessandra Negrini e Fernando Eiras) que passam seus dias e noites recriando e reinterpretando suas existências, seus papéis no mundo, sua relação; que se descolam do mundo para viver uma realidade inventada, uma libertação, um sonho, sonho este onde a vida existe, ou pelo menos outra vida, muito mais rica e complexa. O filme penetra a intimidade desse casal, o interior de uma relação de intimidade em que eles assumem, a cada cena, novas personas, dialogam sobre os mais distintos assuntos, contam seus sonhos e fantasias, fazem jogos e criam parábolas por meio de brincadeiras, de farsas. Usam o artifício, o simulacro para exprimirem desejos, reflexões, dúvidas, para se aproximarem e se redefinirem enquanto mulher e homem, enquanto casal, enquanto parceiros e amantes. Entre todo esse processo de negação da realidade e de ressignificação identitária, de escape do mundano, eles se dedicam a constantes narrações, contam histórias, exprimem pensamentos e saberes. Tudo no filme é encenação dentro da encenação. A grande maioria das cenas se passa no interior de uma casa, que pela construção e pelo uso impressionante dos ambientes, sempre nos aparece de maneira distinta. São diversos cenários que se apresentam dentro dos mesmos cômodos; cada nova reconfiguração do décor está implicada às diferentes narrativas e ficções que irão tomar conta do quadro.

Toda a mise-en-scéne de Bressane em ‘Beduíno’ busca uma total negação do naturalismo, um rompimento radical com o mimetismo do mundo real. As imagens são pensadas em seu caráter simbólico, plástico, na força estética de uma beleza desconcertante, uma estética que propõe um mundo reconfigurado pelo belo em que aquilo que é dado no interior dos planos eleva as ações, os gestos, as falas, bem como os corpos, os objetos e o décor a uma significação sensorial, a constantes reflexões e analogias pela força das imagens mediadas constantemente pela palavra, pelas pequenas ações, pelo movimento cadenciado. A câmera de Bressane busca registrar o tempo próprio (suspenso) das ações dentro de um ócio que nega a racionalização imposta pela sociedade contemporânea, uma intelectualização do estar no mundo, do vir a ser dentro do simples existir; um existir que se expande pela ficção, pela força da linguagem cinematográfica.

Cada plano é construído em função exata das modulações dramáticas encenadas, das construções em simulacro, em um artificialismo significante; a imagem sempre compreende em si aquilo que o discurso propõe, mas que só torna-se matéria ao expandir-se a partir e além dos limites da simples representação pictórica, ao extrapolar os espaços, os movimentos internos, os gestos, falas e expressões e elevar cada plano a um componente significante autônomo, que usando todos esses elementos, faz da mise-en-scéne o núcleo de um cinema que busca não só o discurso, mas o próprio processo de construção da imagem como seu sentido maior de existir.

‘Beduíno’ trabalha – dentro do jogo de ficcionalização do casal e do filme em si – com o valor dialético da memória e da imaginação, seja nos fatos vividos, inventados ou sonhados, nos desejos transpostos em gestos ou discursos, na lembrança reinterpretativa de mitos, de histórias fundadoras da civilização; na subjetivação do pensar, refletir, agir e do viver. Mas tudo composto dentro de uma concepção diegética em que essas camadas de memórias, pulsões e fantasias se sobrepõem com histórias corriqueiras, lendas, lembranças, anseios e ressignificação de fatos e ações; não do que foi propriamente vivido, mas de como isso é imaginado, traduzido e reinterpretado. Tanto o que é sonhado, desejado quanto o que é vivido ganham o mesmo peso dramático, compõem o mesmo tecido, num constante deslocamento do óbvio, do banal, da vida como repetição. Temos aqui uma aproximação ao conceito do ‘Eterno Retorno’, de Nietzsche, em que tudo regressa, sobrevive nos intervalos entre os retornos e volta com a possibilidade (ou não) de novos significados e significações.

O filme é uma ode à ficção, à tradução do mundo por imagens, pela imaginação, por falas, movimentos, olhares e gestos. Bressane faz de cada imagem, de cada plano um deslumbre. São enquadramentos primorosos que conduzem a constantes variações entre closes, primeiros planos e planos médios; nem um posicionamento de câmera é banal, cada fotograma é pensado como agente transformador do quadro, como uma abertura a uma forma de ver que vai além, que desloca percepção e reafirma a complexidade do discurso. Existe o uso notável do foco – em que constantemente fragmentos do quadro são desfocados para enaltecer a nitidez de um rosto, de um objeto, de uma parte do corpo, de um foco de luz, para dirigir o olhar do espectador, bem como para criar um efeito de esfumaçamento, uma atmosfera onírica toma conta da tela. ‘Beduíno’, dentro de sua complexidade estética e formal, apresenta um trabalho excepcional de modulação da luz. A luz atinge o status de condicionante central do quadro, das alterações, das transformações e significações dos planos. A luz forma um tecido visual de textura própria, que conduz não só o que é encenado, mas o que é sugerido, sentido. A luz em ‘Beduíno’ é personagem, tem vida própria, pulsa e condiciona a própria existência da mise-en-scéne.

‘Beduíno’ é um filme que exala erotismo. Um erotismo que vem da forma como Bressane conduz a encenação, pela maneira como filma os corpos, como evidencia a materialidade da carne na superfície da tela – seja nos closes, nas expressões dos rostos, nas inquietações de gestos reprimidos e cadenciados – bem como na maneira como as falas são ditas. Existe uma força erótica imensa nos discursos de Alessandra Negrini, na maneira como ela pronuncia cada palavra. Entre os jogos, narrativas e ficções criadas pelo casal, o desejo sexual é uma constante, mesmo quando sublimado, ele se faz presente, latente, intenso. E é a força, a presença erótica que a figura de Alessandra Negrini tem em cena que faz esse aspecto ainda mais determinante. Ela se revela para a câmera da mesma forma com que a câmera retira dela uma pulsão incontornável. Sua figura, seu corpo, sua voz, seu rosto; tudo é energia, é desejo. Muitas vezes Bressane associa esse erotismo à morte, uma pulsão de morte que levaria a um prazer intenso, uma negação da vida para a afirmação do gozo na finitude de uma existência reprimida.

É inevitável notarmos a teatralidade com que Bressane também constrói a mise-en-scéne, mas uma teatralidade que não tem absolutamente nada de teatro filmado e sim um recurso de encenação que visa à valorização física da presença dos personagens e objetos no quadro, dos gestos, da composição do plano, do uso do cenário. E um destaque central conferido à maneira como o texto é falado, como as palavras são pronunciadas e se fazem impor em consonância às imagens, dialogando com elas, criando brechas, processos dialéticos. E as falas, o discurso, a palavra são elementos constitutivos essenciais na composição de ‘Beduíno’. Bressane usa a língua para criar imagens próprias, imagens que se traduzem no uso de um português inatural, totalmente distante da linguagem coloquial ou dos diálogos naturalistas.

Em mais um filme captado em digital, Bressane volta a levantar questões sobre a textura e a materialidade da imagem. Em meio à grande maioria das cenas, filmadas em digital, Bressane insere enxertos de dois de seus filmes realizados nos anos 70. Esses enxertos, que provocam um choque entre as distintas texturas e os diferentes mecanismos de captação e apreensão da imagem, têm aqui uma função de ruptura discursiva e narrativa e operam dentro de um processo que permite se pensar os caminhos que o cinema segue. No sonho recorrente que a personagem de Alessandra Negrini tem – e que ela traduz em narrativa ao contar para o parceiro – vemos imagens de Rosa Dias em ‘A Fada do Oriente’, filmado por Bressane em 16 mm e preto e branco durante seu exílio no início dos anos 70 (filme considerado perdido). Já a última das histórias que a personagem de Negrini conta ‘Beduíno’ é composta exatamente pelos acontecimentos presentes no mítico ‘Memórias de Um Estrangulador de Loiras’, realizado por Bressane também em 16 mm (só que em cores) em 1971, em Londres. Bressane monta a narração da personagem intercalada por sequências do filme, em que vemos aquilo que ela descreve por palavras materializando-se em imagens. A função da inserção desses trechos de filmes não serve apenas como elementos dramático-narrativos, mas trabalham diferentes dispositivos: o digital é o hoje, enquanto a película é o sonho, o onírico, a história do passado que é recontada, revivida em palavras e imagens no presente. A película se projeta e rompe em meio ao digital para imprimir texturas, criar uma dialética na superfície e na matéria da imagem.

Bressane filma de maneira exuberante em digital, produz imagens estonteantes, mas ao mesmo tempo nos lembra da força perdida que há na percepção do grão na película, das texturas impressas que só podem existir num meio físico de captação. A memória do cinema também passa pelo aspecto material dos suportes. Essa discussão, que tanto persegue o cinema atual de Julio Bressane – o papel da imagem e de como ela é apreendida – é mais um elemento propulsor do discurso de ‘Beduíno’. Um filme que se debruça sobre a recriação do mundo pela ficção, a interpretação subjetiva da realidade, a fabulação, a construção de narrativas, a valorização da palavra; todo um universo construído e tornado possível pela potência da imagem; do cinema em sua essência.

Os 20 filmes favoritos de todos os tempos + 20

Por Fernando Oriente

‘Passion’, de Jean-Luc Godard

Segue abaixo a lista com meus 20 filmes favoritos de todos os tempos com o acréscimo de mais 20 filmes fundamentais (usei como parâmetros meu senso crítico, meus conhecimentos de cinema, meus valores subjetivos e um pouco de apego afetivo). Coloquei apenas um filme por diretor para deixar a lista mais plural. Essa lista surgiu de um pedido do crítico e amigo Chico Fireman (que irá utilizá-la em seu blog Filmes do Chico ao lado de outras várias listas individuais). Lógica e infelizmente, um grande número de obras-primas e cineastas excepcionais ficaram de fora.

1- ‘Passion’, de Jean-Luc Godard (1982. França)

2- ‘O Eclipse’, de Michelangelo Antonioni (1962. Itália)

3- ‘Police’, de Maurice Pialat (1985. França)

4- ‘Desejo Profano’, de Shohei Imamura (1964. Japão)

5- ‘Out 1’, de Jaques Rivette (1972. França)

6- ‘New Rose Hotel’, de Abel Ferrara (1998. EUA)

7- ‘Sem Essa, Aranha’, de Rogério Sganzerla (1970. Brasil)

8- ‘Stromboli’, de Roberto Rossellini (1950. Itália)

9- ‘A Paixão de Joana D’Arc’, de Carl T. Dreyer (1928. França)

10- ‘Muriel’, de Alain Resnais (1963. França)

11- ‘O Leopardo’, de Luchino Visconti (1963. Itália)

12- ‘Juventude em Marcha’, de Pedro Costa (2006. Portugal)

13- ‘A Idade da Terra’, de Glauber Rocha (1980. Brasil)

14- ‘Toda Uma Noite’, de Chantal Akerman (1982. Bélgica)

15- ‘Um Dia no Campo’, de Jean Renoir (1936. França)

16- ‘Os Pássaros’, de Alfred Hitchcock (1963. EUA)

17- ‘Deus Sabe o Quanto Amei’, de Vincente Minnelli (1958. EUA)

18- ‘Um Dia Quente de Verão’, de Edward Yang (1991. Taiwan)

19- ‘Moises e Aarão’, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1975. Alemanha)

20- ‘O Discreto Charme da Burguesia’, de Luis Buñuel (1972. França)

+ 20 filmes – em ordem cronológica

– ‘Aurora’, de F.W. Murnau (1927. EUA)

– ‘Outubro’, de Sergei Eisenstein (1928. URSS)

– ‘The Crowd’, de King Vidor (1928. EUA)

– ‘Outrage’, de Ida Lupino (1949. EUA)

– ‘O Intendente Sansho’, de Kenji Mizoguchi (1954. Japão)

– ‘Les Mauvaises Fréquentations’, de Jean Eustache (1963. França)

– ‘Crepúsculo de Uma Raça’, de John Ford (1964. EUA)

– ‘Cuidado, Madame’, de Julio Bressane (1970. Brasil)

– ‘Bang Bang’, de Andrea Tonacci (1971. Brasil)

– ´Saló – Os 120 Dias de Sodoma’, de Pier Paolo Pasolini (1975. Itália)

– ‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’, de Rainer Werner Fassbinder (1976. Alemanha)

– ‘A Última Mulher’, de Marco Ferreri (1976. França/Itália)

– ‘A Mulher Que Inventou o Amor’, de Jean Garret (1979. Brasil)

– ‘O Império do Desejo’, de Carlos Reichenbach (1980. Brasil)

– ‘Cão Branco’, de Samuel Fuller (1982. EUA)

– ‘O Ano do Dragão’, de Michael Cimino (1985. EUA)

– ‘Drácula, de Bram Stoker’, de Francis Ford Coppola (1992. EUA)

– ‘Vive L’Amour’, de Tsai Ming Liang (1994. Taiwan)

– ‘Crash’, de David Cronenberg (1996. Canadá)

– ‘Miami Vice’, de Michael Mann (2006. EUA)