Críticas

‘A Trapaça’ (Il Bidone), de Federico Fellini, 1955

Por Fernando Oriente

Quinto longa de Fellini, ‘A Trapaça’ é pontuado por três elementos centrais: a presença do neo-realismo (com seu “cinema social”), o discurso de culpa e tentativa de redenção católica e o melodrama. Revisto hoje, o filme se mostra um dos melhores trabalhos do diretor, em que características, estilos e temas de Fellini podem ser encontrados em abundância. A história dos golpistas, encabeçados por Augusto, um solitário homem de 48 anos que vive um momento de crise de identidade e sente o peso da idade se aproximar, é terreno fértil para Federico Fellini destilar sua visão do lado trágico poético do mundo, da miséria sócio-econômica de uma Itália envilecida pela guerra e os dilemas morais com que o homem é obrigado a lidar em uma sociedade em transição. Sociedade essa em que antigos valores se chocam com as urgências de um ambiente capitalista que começa a se espalhar em meio às exigências de bem estar social surgidas no período do pós guerra. “A Trapaça’ é, também, cinema político de alto nível.

Fellini cria com Augusto um de seus melhores personagens. Vivido de forma impecável pelo ator Broderick Crawford, Augusto carrega em sua presença na tela, em seus olhares cansados, em sua postura debilitada e em sua desesperança em relação ao que resta de sua existência, uma carga psicológica que o situa dentro do filme e dentro do cinema mundial daqueles anos 50, como um elemento chave para o discurso do estado de coisas a que o homem comum estava acorrentado. Desde o início de ‘A Trapaça’, vemos Augusto praticando seus golpes de maneira desconfortável. O passar dos anos, as décadas dedicadas por ele a “enganar qualquer um”, como diz em um momento filme, o colocam em um período de impasse. Aqui Fellini passa a introduzir os elementos católicos no filme. Augusto, disfarçado de padre para aplicar um golpe, começa a questionar moralmente o ato de enganar pessoas, principalmente porque as vítimas de seus golpes são pobres, infelizes tornados ignorantes pela aspereza da realidade e do ambiente em que vivem.

A complexidade dos dilemas morais de Augusto é ampliada pela relação que mantém com seus dois principais parceiros de trapaça. Aqui temos outro triunfo na dramaturgia do filme. O primeiro desses parceiros é o jovem Picasso. Casado com uma mulher de caráter nobre, ao mesmo tempo em que não consegue se libertar da resignação dos destinos em sua vida, ela representa uma possibilidade de redenção para Picasso, uma possibilidade de arrependimento de seus crimes e uma pessoa capaz de livrá-lo da vida errante em que se meteu. A fragilidade de Picasso e sua indisfarçável bondade geram conflitos internos aos dramas de ‘A Trapaça’. Augusto sente que o jovem Picasso deve abandonar os golpes e em um dos melhores diálogos do filme diz para que ele se salve enquanto ainda tem tempo, para que não envelheça para se tornar alguém como Augusto.

O outro parceiro de crime de Augusto é Roberto, um tipo com pretensões de sedutor mas que no fundo não consegue se livrar do papel de bufão, de um sínico medíocre que colhe muito mais humilhações por seus atos do que grandes conquistas. O aspecto patético de Roberto é um dos comentários mais ácidos de Fellini no filme.

A dor de Augusto, o conflito interno entre querer romper com os trambiques e a impossibilidade de exercer qualquer outro papel na sociedade capaz de sustentar sua já debilitada realidade introduzem no filme o caminho para sua possível redenção, sendo essa redenção uma busca pelo perdão, uma possibilidade de salvação da alma. É o catolicismo, de maneira alguma dogmático e encenado de forma complexa, de Fellini dando as caras mais uma vez.

E é em meio aos crescentes tormentos de Augusto que Fellini introduz no filme um elemento chave: a jovem filha do trapaceiro surge em cena para abalar ainda mais os conflitos do personagem. Ao tentar retomar a relação com a filha, Augusto sente ao mesmo tempo uma maior necessidade de se retirar do ambiente de seus golpes, mas sabe que mais uma trapaça pode permitir que o dinheiro arrecadado seja investido no futuro da menina. Praticar mais um crime, talvez o último de sua carreira, pode abrir caminho para uma tentativa final de redenção, pode levá-lo em direção ao perdão que sua alma deseja, ainda que maneira dúbia.

As características de melodrama que Fellini impõe a “A Trapaça’, sem nenhum puder em ir fundo nas desgraças e desfilando na tela tipos arrebentados como a filha paralítica de um velho camponês pobre vítima do último golpe do filme, ou mesmo quando recria a miséria e a ignorância de habitantes de uma favela facilmente ludibriados pela falsa promessa de moradia que os golpistas levam a eles, são pontos fortes no longa. Um diretor ímpar como Fellini sabe usar o melodrama para engrandecer seus filmes, sem cair em apelações sentimentalóides.

A construção de várias sequências chaves do filme por meio de travellings, frontais, laterais e de ré, e alguns posicionamentos primorosos de câmera dão uma sustentação intensa à encenação de “A Trapaça’.

Elementos caros ao neorealismo, como os ambientes estropiados em que tipos dilacerados pela pobreza caminham sem perspectivas e sofrem de forma intensa os efeitos do pós guerra, bem como a câmera na rua e nos espaços de ação, compõem o cenário sócio-político do filme. O neorealismo aqui não é aquele dos anos 40, é uma releitura e uma atualização desse gênero. Uma evolução de um estilo que mudou para sempre o cinema mundial, em especial na Itália.

O final de ‘A Trapaça’ remete, de maneira direta, ao final de ‘Stromboli’ que Roberto Rossellini realizou em 1950. Se no filme de Rossellini a personagem de Ingrid Bergman, em isolamento, encontra, em meio ao desespero, uma brecha para atingir uma reconciliação com Deus, Augusto em ‘A Trapaça’, em um momento também de isolamento e desespero, passa por um processo de purgação da culpa que abre para ele uma possibilidade de redenção, de arrependimento, também com um Deus incerto mas presente na simbologia católica composta por Fellini.

‘Eles Voltam’

Por Fernando Oriente

Dentre os bons filmes brasileiros que vem sendo produzidos por novos cineastas, ‘Eles Voltam’, de Marcelo Lordello, é um dos principais destaques. Um belo longa em que muito da força vem da maneira com que Lordello aborda as questões dos deslocamentos, internos e externos, de sua personagem central. Tema extremamente contemporâneo em nosso cinema, o deslocamento em ‘Eles Voltam’ ganha intensidade pelas escolhas que o diretor pernambucano imprime em sua construção de quadro, os desdobramentos emocionais implicados nesse deslocamento e no fato de desenvolver toda a dramaticidade a partir de uma bem calculada construção formal.

‘Eles Voltam’ começa quando Cris, uma menina de 12 anos, é deixada no acostamento de uma estrada junto com seu irmão. Logo em seguida, descobrimos que os jovens foram abandonados pelos pais como um castigo por estarem brigando, algo que serviria para ensiná-los uma lição. Cris irá se perder do irmão e terá que iniciar um complicado trajeto para voltar para casa. Bem, os motivos são o que menos interessam no filme. Os movimentos internos de Cris, seu deslocamento físico e emocional e os espaços em que esse deslocamento colocam a menina é o que interessa a Lordello.

A jornada da protagonista, os lugares, espaços e ambientes em que ela passa, refratam os movimentos internos da menina. São os reflexos das angústias, incertezas, promessas e conflitos existenciais de uma jovem adolescente. O caminho que ela segue, sempre com uma postura altiva, representa alguém ciente dos artifícios emocionais que envolvem uma jornada de amadurecimento e um processo de auto-afirmação. Ela sente (mesmo de maneira inconsciente) que está finalmente vivendo o que irá definir sua personalidade, o começo de sua transformação de menina em mulher. Tudo isso é traduzido no filme sem nenhum uso de psicologismos ou lugares comuns. É na estrutura evolutiva de ‘Eles Voltam’ que Lordello constrói o conteúdo do filme.

Cris se entrega, com os receios e as incertezas que isso pode provocar, para dar seus primeiros passos no mundo adulto. Seus deslocamentos são movidos pelo desejo (e a necessidade) de seguir em frente. Ao mesmo tempo, ela se permite relacionar de maneira confiante com cada nova situação, com todos os espaços e pessoas que atravessam sua jornada. Ela, apesar da situação de abandono e fragilidade em que se encontra, percorre seu trajeto como alguém que se dedica a absorver tudo que está a sua volta, a descobrir um mundo diferente, locais desconhecidos e pessoas completamente novas e diferentes em seu restrito círculo de relacionamentos. Ela sente o impulso e o poder das chaves de um auto-descobrimento.

Mesmo após sua volta à família, Cris sente-se deslocada. Algo dentro dela está diferente. Seu deslocamento existencial continua em meio aos seus familiares, na escola e em relação aos espaços em que está acostumada. Tudo em sua vida torna-se diferente. Seus movimentos internos alteram suas relações com os ambientes e as pessoas que a cercam.

É dentro desse processo que ela se dedica a conhecer uma nova colega de classe, decide passear pelo centro do Recife (local onde uma menina de classe média poucas, ou nenhuma, vez esteve) e passa questionar as opiniões do avô, em uma clara alusão a descoberta do poder de desafiar autoridades estabelecidas para imprimir sua própria visão de mundo.

Todos esses discursos são elaborados por Lordello por meio da construção incomum da geometria dos quadros. Pela valorização da relação bruta de Cris com os espaços que seus deslocamentos a levam, pelos silêncios da personagem em oposição aos ruídos e sons que a envolvem e pela sensação constante de movimento que o diretor imprime a sucessão das cenas e também na evolução da narrativa em acentuadas elipses.

A primeira cena do filme é um plano aberto, com a câmera em plongê, que mostra um trecho da estrada, com alguns carros que passam nos dois sentidos da pista dupla. O carro em que Cris e o irmão estão pára no acostamento, os dois descem, e o carro segue seu caminho. A partir do primeiro corte, quando vemos os irmãos à beira da estrada por meio de uma câmera mais próxima, o filme praticamente abandona os planos abertos e passa a ser preenchido por enquadramentos fechados, closes e um belo uso de primeiros e primeiríssimos planos. A proximidade da câmera remete diretamente a iminência com que o diretor pretende penetrar a alma de sua protagonista.

Lordello constrói sua encenação por meio do desconforto provocado no espectador pelas posições de câmera oblíquas, pela disposição descentralizada dos tipos no quadro e por uma relação de conflito entre os personagens e suas posições dentro de cada cena. A câmera nunca filma Cris ou os tipos com quem ela interage de maneira tradicional, não existe o uso de enquadramentos frontais “padrão”. Ou a câmera está muito próxima, ou ela está posicionada abaixo dos atores (em variações do contra-plongê) ou ela registra mais de um personagem em cena dispondo os tipos um na frente do outro ou nas extremidades do quadro. A encenação a partir desses recursos permite a própria forma do filme exercer os questionamentos e acentuar os deslocamentos internos da personagem.

As pessoas são filmadas de perfil, de costas, em detalhes de seus rostos e corpos, em movimento dentro do plano e em descompasso com os demais personagens e em relação aos cenários. Cris e os outros tipos são sempre enquadrados em closes, ângulos fechados, ocupando as bordas do quadro, em contra-plongês ou desfocadas.

O uso do foco também acentua esse desconforto. Dentro da primazia dos planos fechados, Lordello joga com o foco entre os personagens, ambientes e objetos, desfocando o que está em primeiro ou primeiríssimo plano para captar a nitidez de um segundo plano e, na sequência, altera a captação da câmera para que a nitidez fique em destaque na frente em quanto o fundo de cena entra em flou.

Essa estrutura formal faz de ‘Eles Voltam’ um filme que exige atenção cênica do espectador, que faz necessária a percepção da própria construção dos elementos cinematográficos e de como os dispositivos do fazer cinema implicam na materialidade sensorial do filme. Por meio da elaboração e das escolhas de cena, Lordello oferece ricas possibilidades de compreensão dos dramas. Tudo isso fica ainda mais intenso pela atuação exemplar da jovem Maria Luiza Tavares, que, ao lado de Marcelo Lordello, faz de Cris uma das mais interessantes personagens recentes do cinema brasileiro.

‘A Malvada’ (All About Eve) de Joseph L. Mankiewicz, 1950

Por Fernando Oriente

 Joseph L. Mankiewicz talvez não tenha, nos dias de hoje, o mesmo prestígio de alguns de seus contemporâneos no cinema americano. Embora tenha sido um dos cineastas e roteiristas mais premiados por Hollywood em sua época, além de ter dirigido grandes projetos dos principais estúdios e inúmeros sucessos de público e crítica, ele é lembrado apenas como alguém importante dentro dos últimos anos da época dourada de Hollywood. Mas filmes como ‘O Fantasma Apaixonado (1947), ‘Quem É o Infiel’ (1949), ‘A Malvada’ (1950) e ‘De Repente no Último Verão’ (1959), além da megaprodução ‘Cleópatra’ (1963) e seu cultuado último longa como diretor, ‘Jogo Mortal’ (1972), provam o quanto Mankiewicz é um encenador talentoso, um roteirista sofisticado e um realizador com alto teor de complexidade na aproximação e nos comentários que impunha ao seu cinema.

‘A Malvada’, clássico dentro de todos os quesitos necessários para a alcunha, é um exemplo de como um diretor pode construir a solidez e as texturas de um filme se baseando em um roteiro milimetricamente escrutinado e potencializado na encenação precisa desse texto. ‘A Malvada’ é um filme de texto. Vem do texto, se constrói nesse texto e desse texto retira o máximo. Esse texto-roteiro se transforma em texto-filme, texto-imagem. Se um grande cineasta consegue elevar um simples roteiro a um grande filme, quando o cineasta domina esse roteiro intrinsecamente e constrói toda a mise en scène em cima dele, o filme ganha um valor literário agregado aos dispositivos da encenação cinematográfica e, dentro do mesmo processo, confere um valor cinematográfico a essa estrutura literária.

Poucos filmes tiveram um resultado melhor na história do cinema em termos da somatória de forças entre roteiro, imagem, evolução narrativa e encenação como ‘A Malvada’. Aqui temos um filme inteiro construído para e por meio de seus significados. O cinema clássico, cinema de texto, onde o significado era o objetivo, usa a força de cada sequência como elemento de uma peça fílmico-literária que irá se somar à seguinte para a construção de significados, o grande interesse buscado nesse tipo de filme.

Esse cinema é diferente do cinema moderno europeu surgido a partir do final da década de cinqüenta (e que daria o tom que seria seguido por todos os cinemas novos ao redor do mundo), onde o que caracterizava os filmes eram os significantes, “um cinema de significantes” como bem lembra Jacques Aumont em seu livro ‘Moderno?’. Essa forma cinematográfica dava autonomia às sequências, que ganhavam força isolada, transformando cada uma delas em significantes (em uma complexa construção dialética de sucessão de cenas independentes).

Essa comparação fica mais bem posta nos termos de Deleuze. A construção do cinema clássico, do cinema do significado, usa texto, encenação e imagens dentro do conceito deleuziano de imagem-ação (que caminha em função de uma evolução narrativa de cenas dependentes umas das outras em direção aos significados do filme) enquanto o cinema moderno, de significantes, abre as múltiplas camadas de interpretação de sequências quase autônomas dentro de um mesmo filme e nelas produzem o outro conceito deleuziano, a imagem-tempo. Imagem que por si só, independente de evoluções narrativas, já se estabelece como significante, que nesse cinema, são a meta e a matéria dos filmes.

Então situemos ‘A Malvada’ dentro das estruturas do cinema clássico, de texto, da imagem-ação, do filme de significados e de construção na evolução narrativa. É aqui que o roteiro e sua crescente construção em evolução da narrativa permite que Mankiewicz encaixe sua encenação para tirar do texto todos os comentários e significados que imprime ao filme.

E, antes de tudo, ‘A Malvada’ é erigido sobre duas características em paralelo: a sobriedade da decupagem e a precisão milimétrica do trabalho de enquadramento e movimentação de câmera em função dos significados e a oposição desse processo a uma construção de personagens que atuam em um registro over, em atuações encenadas de forma exagerada, empostada, intencionalmente acima do tom e anti-naturalistas.

Todos os personagens de ‘A Malvada’ vivem no e em função do teatro. Não conseguem abandonar esse jeito de ser dos palcos em suas vidas privadas e em suas relações interpessoais. Teatro no filme é uma representação do universo das estrelas, dos escritores como vedetes intelectuais, de críticos com aspirações cruéis de manipulação desse meio e de diretores geniosos em sua função de transformar textos em espetáculos. É uma representação da vida na sociedade do espetáculo, dos mecanismos do star system e dos efeitos de uma indústria cultural.

O teatro em ‘A Malvada’ é, ao mesmo tempo, o inferno e o paraíso, local para a glória e para condenação, meio para se chegar ao olímpio das estrelas e para se arruinar em decadências estéticas e da vaidade. Ascensão e queda, rainha morta, rainha posta.

O cinismo é o grande trunfo na mise en scène de Mankiewicz. Esse sarcasmo dá o tom no registro dos diálogos empostados e compostos de frases rebuscadas de múltiplos sentidos (o anti-naturalismo mais uma vez). Ele dá munição para o cruel jogo de usurpação e humilhação entre as estrelas do teatro, para as ambiguidades morais dos tipos e dita as regras para uma competição feroz em que para subir no meio é preciso sugar tudo de seus adversários e lhes roubar (literalmente) o lugar no palco, se apropriar de suas personas.

É a oposição entre a sobriedade elegante da encenação com o registro floreado e flamboyant de agir, falar, se auto-determinar como indivíduos e se inserir no mundo dos personagens, que permite a Mankiewicz destilar sua corrosiva visão do showbiz, da natureza das estrelas midiáticas. Falando de teatro ele discursa sobre o próprio meio do cinema, as artes de massa e sobre a realidade de uma sociedade de culto às celebridades que tornaram-se seres alienados do cotidiano para viverem em uma constante encenações da vida, em um eterno palco, em um filme que nunca tem fim.

O meio teatral no filme é um microcosmos da sociedade competitiva do mundo ocidental, os Estados Unidos como paradigma. Um mundo em que milhões de aspirantes ao sucesso vivem a espreita de estrelas já estabelecidas para substituí-las na marra, roubar-lhes a fama, o sucesso, o amor do publico e da crítica e ficar com a fortuna emocional e material que é oferecida aos vencedores desse embate.

Eve, a talentosa carreirista que se aproxima e enreda a diva teatral Margo Channing (Bette Davis em seu melhor papel) em uma relação de submissão calculada para estudar cada detalhe de sua personalidade, seu jeito de ser e atuar para depois arrancar dela sua condição de estrela e tomar seu lugar, é uma entre inúmeras jovens sonhadoras que são capazes de tudo para estarem sob os holofotes dos palcos, para atingirem o status de estrela, em suma, para serem as vencedoras.

A relação entre Margo e Eve é construída por Mankiewicz com um distanciamento crítico acentuado pela tensão entre as ações em si e as narrações em off de vários personagens que, em flashback, vão se somando em um mosaico fragmentado que levam a junção dos fatos dentro do processo de evolução narrativa do texto transformado em filme.

É no artifício de transformação do texto do roteiro em cinema que Mankiewicz acrescenta, como um artesão detalhista, seus comentários sobre o mundo que recria. É no desenrolar dos atos e em todas as consequências dos fatos que o diretor vai compondo o discurso paralelo e os subtextos do filme. Esses recursos de composição dramática conferem sofisticação ao efeito intricado dos significados do filme. “A Malvada’ pode ser visto e lido com requintadas possibilidades de interpretação.

A impressionante cena final traz uma jovem admiradora de Eve em seu quarto, vestindo suas roupas e segurando seu prêmio, sendo reproduzida infinitamente pelo efeito de um espelho. Essa imagem fragmenta a jovem em inúmera outras, que como ela e como Eve (e, possivelmente, como Margo também foi), representam um batalhão silencioso de aspirantes ao jogo, de sonhadoras do pertencimento ao mundo encantado e devastador do sucesso sob as luzes da ribalta do estrelato fugaz do showbiz. Quem é ‘A Malvada’? É só sobre Eve que sabemos tudo?

‘2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela’ (2 ou 3 Choses Que Je Sais D’Elle) de Jean-Luc Godard, 1967

2 ou 3 coisas que eu sei delaPor Fernando Oriente

 Como diz o próprio Jean-Luc Godard, “2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela” é uma obra que procura registrar os movimentos de um espaço (a cidade, a terra) em reviravolta. É um ambiente controlado pelo capitalismo e a inação e movido pelos questionamentos e o consumo; um lugar onde as pessoas se arrastam como autômatos em meio ao desenvolvimento irrefreável da paisagem como recipiente para os produtos do mercado, as dúvidas de identidade e as sensações alienantes criadas por esse meio.  As imagens de Godard, dialéticas em sua materialidade e na maneira como são transpostas para a tela como uma cadeia de significantes, usam a palavra, o texto, como tradução fílmica dos recursos visuais dessas imagens.

Esses recursos aprofundam a dialética de “2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela”, com conflitos constantes entre formas, conteúdos e possibilidades que o choque entre todos esses elementos propõe. A narração em off, feita pelo próprio Godard, os discursos e pensamentos dos personagens e os ruídos (diegéticos ou não) convergem com as imagens ao mesmo tempo em que promovem digressões em relação a elas. As possibilidades de síntese são amplas e o filme assume o caráter de ensaio sobre um mundo saturado de signos e com um grande vazio de sentido, sem nenhuma verdade absoluta, recheado de desilusão e contaminado pela impossibilidade da ação política e da autodeterminação dos tipos.

Existe em “2 ou 3 coisas que Eu Sei Dela” uma superficialização do mundo, um esvaziamento das possibilidades da ação política e um sentimento de derrota do ser humano comum diante de um sistema opressor que usa seu poder absoluto de transformar tudo em sensações rasas e imagens saturadas e ocas; em produtos de consumo. Um habitat que promove um apelo visual do qual não se pode escapar e induz a um consumo sem questionamento. É um mundo capitalista em sua raiz, um universo onde o indivíduo é mera peça de engrenagem do sistema de marcas e do mercado desenfreado que rege a vida. Era essa a realidade que Godard queria mostrar no ano de lançamento do filme, em 1967 e que ainda existe, de forma ainda mais radical, nos dias de hoje.

A luz na fotografia destaca as cores fortes, a claridade em contraste com o vazio escuro da personalidade dos tipos. Godard usa o recurso de colocar seus personagens em primeiro plano na penumbra, confrontados por uma luz exterior chapada, que vem de janelas, vitrines e frestas e ofusca suas existências deslocadas e aumenta suas angústias. A câmera, ora se posiciona em diferentes ângulos, enquadrando planos estáticos, registrando pedaços de corpos, rostos em primeiro plano e cenários carregados de signos em confronto, ora se move lentamente para revelar e acompanhar o espaço onde as ações se desenrolam, sem nunca deixar de dar grande relevância ao que se passa fora do quadro. A edição costura de forma inquieta, com quebras bem definidas, o cotidiano dos personagens, a banalidade e a melancolia de suas ações e o oceano de dúvidas e perguntas sem respostas em que estão mergulhados. É um registro com a típica virulência intelectual com que Godard discute a inércia, a inquietude, a impossibilidade da ação política real e o amortecimento da alma do ser humano contemporâneo.

Realizado na segunda metade dos anos 60, “2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela” projeta luz na realidade ainda mais desconcertante da alienação em que vivemos nossos dias atuais, com a velocidade incrível das inter-relações entre formas, desejos e pensamentos e em que a falácia da falência ideológica e o individualismo do hiperconsumo sofisticado e personalizado levam o cidadão ao mais completo egoísmo, insensibilidade e desrespeito para com tudo e todos que o cerca.

As impossibilidades de junção e congruência entre a linguagem e a imagem são destacadas por Godard, seja por meio da contraposição de grandes fluxos visuais com diferentes tipos de texto (frases narradas, pensamentos emitidos em voz alta, narração, anúncios e cartelas fixas com dizeres impressos) ou pelo contraste entre o que se vê na tela com que está sendo representado ou mesmo com tudo aquilo que se encontra fora do quadro.

Os corpos cansados, mas ainda jovens, dos personagens se chocam com a juventude de suas mentes, com o desejo de agir, mudar, entender ou ao menos se encontrar em meio ao caos da metrópole abarrotada de produtos, concreto, veículos e movimento perpétuo de corpos que se deslocam sem destino certo. É nesse meio que Godard insere sua câmera, enquadra esse mundo e revela o movimento interno dos personagens em meio ao pulsar ininterrupto da cidade claustrofóbica.

A mediocridade planejada por forças maiores a que foram condenados os tipos oferece apenas opções ligeiras para prazeres fugazes, consumo e diversões alienantes que impelem os personagens a exercerem o papel de coadjuvantes impotentes no ambiente ao qual estão inseridos, preocupados em conferir inutilmente sentido às palavras e aos objetos que os cercam, bem como tentar definir aquilo que sentem, que no mais, não passa de melancolia e desencanto.

Em meio às tentativas frustradas dos personagens em associar sentimentos e sensações a motivos e objetos concretos, a câmera de Godard registra frontalmente esses conflitos sem solução, oferecendo eco ao paradoxo e às dissonâncias das almas. Para sobreviverem, as pessoas trabalham nas mais diversas e estúpidas ocupações, vendem suas forças de trabalho e seus corpos de forma robótica ao consumo dos outros. Resta apenas a necessidade inconsciente de se manter vivo e seguir adiante. No longa, Godard reafirma a frase de Cioran de que tanto gosta: “Somos todos farsantes, sobrevivemos aos nossos problemas”.

“Uma paisagem é como um rosto”. Essa frase repetida no filme é explorada e ampliada pela lente de Godard, que registra paisagens em planos estáticos e longas panorâmicas ao mesmo tempo em que fecha o ângulo em closes que captam as expressões dos tipos e as incertezas que essas faces exprimem, fazendo com que a oposição entre esses planos se torne mais um comentário visual para refratar o texto do discurso godardiano.

Godard constrói imagens diretas, mas cheias de texturas e múltiplas camadas, que mostram de maneira frontal suas idéias e sua visão de mundo. Ele não oculta do espectador nem o que vê, nem o que pensa. A constante narração em off reflete, analisa, questiona e comenta o mundo que Godard põe na tela. São imagens que compõe o discurso do cineasta, que aliadas ao texto e aos ruídos, transformam-se em discurso fílmico próprio, que trazem o espectador para dentro das discussões e questionamentos propostos por ele.

“2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela” se registra como aquele cinema definido por Alexandre Astruc como um “cinema escrito com a câmera’, autoral em sua totalidade. Godard filma a cidade em uma série de planos em que são mostrados prédios em construção, pessoas em movimento, carros circulando, anúncios e outdoors com uma infinidade de produtos e serviços sendo oferecidos. Diálogos digressivos e pensamentos organizados em palavras se contrapõe e interagem constantemente com a paisagem. Essas imagens são intercaladas com as ações, os gestos e as conversas dos personagens centrais, situando-os em meio a uma realidade que transcende a tela e que se encontra em qualquer parte das cidades onde vivemos.

É uma relação direta com os signos e significantes que compõe o mundo real do espectador, bem como com a tentativa de se formular uma lógica subjetiva em meio à necessidade de uma objetividade inalcançável. É uma ficção que documenta o mundo em que vivemos, questionando e criticando, levantando perguntas e apontando caminhos. Em nenhum momento nos confrontamos com verdades absolutas, apenas nos vemos diante das possibilidades da sofisticadíssima dialética com que Godard traduz o mundo com sua subjetividade construída por meio de imagens e sons.

 

‘Trapaça’

Por Fernando Oriente

David O. Russell ganha força a cada ano em Hollywood. Seus filmes, desde ‘O Vencedor’, vem recebendo indicações e troféus nos principais eventos de premiação do mercado americano. Em um momento em que o cinema dos Estados Unidos se infantiliza a cada ano, com um público alvo de faixa etária cada vez menor, um diretor que seria um bom contador de histórias para adultos passa a valer ouro para os estúdios, principalmente na época das premiações anuais.

O problema é que Russell está longe de ser esse salvador. O pouco que vimos nos razoável ‘O Vencedor’ nunca mais foi atingido pelo diretor. O fraco ‘O Lado Bom da Vida’ e agora esse ‘Trapaça’ deixam claro as limitações de David Russell e expõem como o diretor é incapaz de desenvolver seus filmes com intensidade. Falta, para dizer objetivamente, “pegada” em seu cinema.

‘Trapaça’ foi bem vendido ao público antes de sua estreia. Os elementos de sedução foram todos muito bem divulgados. O visual retrô dos anos 70, as insinuações de golpes, contravenções e ações emocionantes, o erotismo sugerido em cartazes e trailers, o elenco de estrelas e as músicas cults foram cuidadosamente embaladas no pacote em que o filme foi oferecido. Junte-se a isso as indicações ao Oscar, os prêmios no Globo de Ouro e nos sindicatos da indústria e você tem um produto de sucesso comercial garantido, maquiado de prestigio e qualidade.

Mas ao se assistir ‘Trapaça’ o que vemos é um longa capenga. O filme é marcado por oscilações na dramaturgia, em que os momentos de tensão e os conflitos entre personagens e eventos não passam de situações rasas e mal exploradas. Temos um uso excessivo de muletas cênicas que Russell utiliza para esconder a carência de substância de seu filme. É um verdadeiro festival de movimentos de câmera, aproximações e recuos acentuados ao estilo anos 70, cenários descolados, fotografia desbotada com ar vintage, reviravoltas de trama inconvincentes, canções pop de grande apelo afetivo, closes em caras e bocas sensuais e surpresas narrativas bobas. Nenhum desses recursos e apelos salvam o filme do tédio.

Os situações dramáticas do filme, a composição dos tipos, os conflitos e as ações em si são frouxas. Não existe uma motivação realmente consistente nessas ações, muito menos uma construção sólida para dar suporte a elas. Tudo o que vemos na tela são joguinhos entre adultos com grandes pretensões narcísicas, mas que no fundo não fazem nada além de brincar de ganhar dinheiro fácil, sofrer por motivos tolos e, pior ainda no caso dos agentes do FBI, tentar construir reputações de sucesso motivadas por devaneios adolescentes de grandeza. ‘Trapaça’ explora mal o tão emblemático processo americano de se tentar ser um vencedor em uma sociedade ultra capitalista e de aparências. Para piorar, o filme é pudico, nega todas as possibilidades de erotismo e explora de forma careta e reprimida as tensões sexuais sugeridas.

Russell tenta fazer a lição de casa. Usa temas, elementos e copia situações do cinema americano dos anos 70 e do cinema noir da primeira metade do século 20. Mas nas mãos de David O. Russel tudo isso se torna pastiche. Falta vigor na narração, uma encenação forte das relações e dos conflitos entre os tipos, um cinismo que se assuma como matéria do filme e não um como uma série de gracejos tolos. Falta talento na direção. Um filme como ‘Trapaça’ seria outra coisa nas mãos de um Michael Cimino, de um Brian De Palma ou Robert Aldrich.

O elenco de estrelas reflete os problemas do filme. Entre todos os atores, temos apenas duas grandes atuações, de Christian Bale e de Jennifer Lawrence. Jennifer é uma força em cena, tem tudo para se tornar uma estrela no melhor sentido que isso pode ter em Hollywood. Mas o resto do elenco não passa de um grupo de atores competentes, mas incapazes de oferecer uma interpretação além da correta. São esforçados e esse esforço transparece em cena e prejudica o filme. Bradley Cooper é quem mais destoa negativamente. Ele é engolido em cena por Bale. Cooper é um ator carismático, que funciona bem em comédias, mas se mostra muito aquém do que o papel em ‘Trapaça’ exige dele.

Desde cenas mal compostas e desnecessárias como a em que Jennifer Lawrence canta ‘Live and Let Die’ (sequência apressada e mal articulada em montagem paralela com os eventos entre o personagem de Bale e os mafiosos) ao final equivocado, em que acomodações frágeis forçam a barra para um final feliz moralista, ‘Trapaça’ se mostra um filme limitadíssimo, mas que é vendido em embalagem pra lá de descolada.

‘O Garoto’ (Le Garçu) de Maurice Pialat, 1995

garcuPor Fernando Oriente

Último filme de um dos maiores cineastas da história, ‘O Garoto’ (Le Garçu) encerra a obra de Maurice Pialat no mesmo grau de excelência que marcou toda sua carreira. Filme pouco conhecido do diretor, ‘Le Garçu’ contém os elementos chaves do cinema de Pialat e ainda propõe uma reflexão sobre o estado do mundo e o estado da arte ainda mais melancólica do que em seus longas anteriores, principalmente devido ao caráter de adeus que está impregnado em ‘O Garoto’. Os filmes de Pialat são cruéis, melancólicos e isentos de esperança. São um registro da dor de viver, da incapacidade de se relacionar com o outro e de como a desilusão e a amargura são o denominador comum do homem em um mundo que perdeu o encantamento. É cinema pós maio de 68, em que mudar alguma coisa já parecia impossível.

Esse seu longa final tem todos esses elementos potencializados por a uma melancolia e uma tristeza capazes de evocar o sublime. Não é exagero afirmar que todo o cinema de Pialat transpira sentimentos e sensações incapazes de serem colocados em palavras. A beleza bruta que o diretor extrai de seus longas atinge um patamar mais alto, atinge exatamente o sublime da vida e da arte, por mais cruel que o mundo e da existência sejam vistos pelo diretor.

Em ‘O Garoto’ temos momentos isolados da vida de um casal em separação. Um filme construído em elipses poderosas que dão independência dramática para cada sequência e simultaneamente solidificam a coesão do filme como um todo. Gerard (Gérard Depardieu) e Sophie (a linda Géraldine Pailhas) não podem ficar juntos, ao mesmo tempo em que não conseguem romper totalmente seus laços. A angústia, a melancolia e a impossibilidade de se relacionarem fazem com que o desprezo, a resignação e a crueldade sejam os refúgios para suas almas atormentadas.  É na dor, muita dor, que são condenados a viver.

Esse desprezo, sentimento tão caro ao cinema francês pós anos 60, contamina as ações do casal, principalmente de Gerard. A densidade dramática assume uma complexidade extrema porque esse desprezo também é direcionado, de maneira não intencional, mas inevitável, ao filho do casal, um garoto com menos de cinco anos e elemento chave na dramaturgia. A grandeza de Pialat é construir um drama com altíssimo teor de amargura sem em nenhum momento cair em sentimentalismos e afetações. Esse controle extremo sobre a matéria de seus filmes é uma das maiores características do diretor. É no rigor absoluto da encenação, no controle completo sobre os gestos, que está a força central do cinema de Pialat.

A mise en scène de Maurice Pialat é uma das maiores maravilhas que o cinema já viu. ‘O Garoto’ é um exemplo claro disso. Essa encenação é perfeita, o diretor faz o que quer com cada plano e todas as sequências são fruto de um controle total dos elementos cinematográficos. Mas muitas vezes a diegese dos filmes de Pialat nos apresenta suas cenas com uma ferocidade crua, uma explosão bruta do real, que por meio dos artifícios da construção cênica levam essa realidade encenada para o terreno do naturalismo. Isso é uma pista falsa, faz parte da sofisticação da sua obra. Pialat não é um naturalista, as potências desse real recriado por dentro da própria matéria de cinema elevam seus longas a impactos de uma beleza impossível de ser restrita apenas ao naturalismo.

O cinema de Maurice Pialat é uma elevação, uma ascese. Como escreveu Victor Guimarães na Cinética, em Pialat a encenação tem “a capacidade de ser um diamante meticulosamente lapidado e conservar, ao final da ourivesaria, sua brutalidade primeira”.

Em ‘O Garoto’, embora recheado de diálogos poderosos, temos uma maior presença do silêncio em cena. São nesses momentos em que os personagens não falam que sentimos suas dores e a melancolia os domina de forma mais intensa. Isso é traduzido por Pialat por meio das expressões dos rostos, nos olhares e nos gestos. O próprio deslocamento dos atores em cena e seus movimentos transpiram essa amargura de suas existências.

Pialat sempre estendeu a duração dos planos até o limite, para tirar mais intensidade deles. Em ‘O Garoto’ vemos uma série de planos longos, em que a câmera se move pelos os ambientes ou se fixa em determinadas ações e espaços da cena. O corte é adiado ao máximo. Ao alongar seus planos, Pialat amplia as sensações dos dramas. É esse um dos recursos que conferem a beleza aguda do desencanto que compõe o filme. É um respeito quase religioso pelo tempo de cada sequência, por todas as ações, pelos segundos que levam para a execução de um gesto , a construção de uma fala, ou a temporalidade sensorial de um silêncio.

Em seu último longa, Pialat nos remete a outros de seus filmes. Temos alusões ao cotidiano e as crueldades do casal central de ‘Não Envelheceremos Juntos’ (1972), o garoto condenado a uma existência incerta como em ‘Infância Nua’ (1968), a presença da morte na vida de um casal em crise na figura de um parente próximo como em ‘La Gueule Ouverte’ (1974) e a fraqueza de um homem impossibilitado de demonstrar afeto sem agredir o objeto de desejo como em ‘Loulou’ (1980). Essas referências que ‘O Garoto’ fazem à obra de Pialat são elementos que engrandecem o filme. Criam uma dialética com o interior de sua obra e elevam ‘O Garoto’ a novas possibilidades dentro dos temas centrais do diretor.

Pialat nunca mais filmou depois de ‘Le Garçu’, lançado na França em 1995. Morreu quase oito anos após seu lançamento e deixou um buraco no mundo da arte. Só ele era capaz de compor de maneira tão intensa com a dor e o desencanto. A cena final de seu último filme deixa registrada para a eternidade a enormidade do diretor. Os dois planos que fecham o filme, divididos por um corte de aproximação, estão entre os maiores momentos da história do cinema. Um adeus típico de Pialat, com direito a toda a dor do mundo.

‘O Lobo de Wall Street’

Por Fernando Oriente

 Muito já foi dito sobre o novo filme de Martin Scorsese, críticas negativas em maior número, mas leituras positivas também. ‘O Lobo de Wall Street’ é um longa típico da atual fase do diretor. Trabalhos “afetados”, bem inferiores ao que ele realizou nos anos 70, 80 e início da década de 90, mas que conseguem grandes bilheterias. Nunca um filme de Scorsese é uma obra nula, mesmo em seus piores momentos. ‘O Lobo de Wall Street’ é um filme regular, fraco mesmo em seu todo. Mas alguns (poucos) momentos e umas raras sacadas fazem com que o espectador assista sem grandes traumas e com breves momentos de satisfação.

‘O Lobo de Wall Street’ segue a estrutura de construção (evolução de personagens, decupagem de sequências, desenvolvimento e variação das intensidades dramáticas) de alguns dos melhores filmes de Scorsese, como ‘Cassino’ (1995) e ‘Os Bons Companheiros’ (1990), esse último sendo, talvez, a grande obra-prima do diretor. Mas o ‘Lobo’ fica longe do resultado poderoso desses longas.

O que Scorsese oferece nesse seu novo trabalho é uma exposição de impasses que vem tornando sua carreira apenas uma sombra do que foi. O diretor parece, desde a segunda metade dos anos 90, ter cedido a pirotecnias cênicas, explicações óbvias e soluções fáceis que visam agradar um público maior. A ousadia, o risco e a invenção de seus filmes antigos deram lugar a cacoetes de estilo sempre calculados para oferecer uma posição confortável de visão para o público de hoje, sem deixar de transmitir a potência artística de seu realizador. Scorsese não ousa, usa de maneira calculada o vigor e a energia que sempre foram marcas de sua encenação e que hoje ele transformou em um selo de qualidade. Mas Martim Scorsese é muito maior que isso.

A partir de ‘Kundun’ (1997), o que em Scorsese era um tour de force de encenação, sempre a serviço do filme, virou afetação e um estilo over que obstrui a mise en scéne. Os virtuosos movimentos de câmera e a intensidade, muitas vezes frenética, da carga dramática das sequências, que funcionavam como elementos constituintes da força narrativa de seus melhores filmes, passaram, em seus trabalhos recentes (como nesse “O Lobo de Wall Street’) a serem usados como marcas de estilo que tentam esconder o vazio da evolução e da própria matéria de seus dramas.

E ‘O Lobo de Wall Street’ ainda sofre de um problema mais grave. Nele, Scorsese se mostra preso, vítima da indefinição de rumos que tenta empregar no filme. O aspecto cômico que marca a maior parte do filme soa artificial e forçado, com apenas alguns momentos realmente engraçados. O drama que domina o filme em sua parte final é o pior de ‘O Lobo de Wall Street’. Esse drama não evolui para além de um conto moral frouxo. O cinismo que Scorsese imprime às três horas de duração do longa não é explorado em suas possibilidades e se torna uma referência caricata de um diretor que apenas ecoa um discurso crítico a um universo do alto escalão capitalista que seu filme não consegue penetrar os nuances e possibilidades. Mas o pior das sequências dramáticas mais intensas do filme é o registro equivocado das cenas. Sequências inteiras aparecem em de maneira histérica, as situações são encenadas em estilo afetado e todo o filme entra em colapso.

O que temos em ‘O Lobo de Wall Street’ é o oposto do que Brian De Palma fez com seu subestimado ‘A Fogueira das Vaidades’ (1990). Onde De Palma encena, de dentro e de maneira sarcástica, o universo do dinheiro, das tentações e das aparências de um meio nova-iorquino, Scorsese derrapa em discursos morais concebidos de maneira afetada. A sutileza e os comentários ácidos que De Palma imprime por meio da própria construção de seu filme passam longe do que vemos no ‘Lobo’, em que as afetações de estilo e a mão pesada de Scorsese imperam.

As músicas não estão na mesma sintonia do filme. Em ‘O Lobo de Wall Street’ as canções funcionam como muletas para tentar maquiar os aspectos frouxos da evolução dramática, servem de solução impactante para elevar os sentidos do espectador, mas não escondem os problemas de encenação e de dramaturgia e, em muitos casos, expõem ainda mais as deficiências do longa.. Scorsese já mostrou em filmes da sua melhor fase ser um ótimo editor de músicas e imagens, longas em que uma trabalhava a favor da outra para o todo da obra. Aqui isso fica longe de acontecer.

Dois momentos de ‘O Lobo de Wall Street’ (que poderiam ser ótimos) ilustram bem a afetação e o aspecto over que contaminam o filme. A sequência em que uma reunião da empresa, onde supostamente o personagem de DiCaprio iria comunicar sua saída da firma, se transforma em uma espécie de culto evangélico impulsionado pelo poder do dinheiro, pela possibilidade e predestinação de se ganhar e se fazer dinheiro. O que vemos na tela é uma sequência over e acima do tom, em que a ótima idéia se transforma em afetação cênica que conduz a um arremedo bufão desprovido de texturas. O outro momento é na sequência em uma quase overdose de quaalude de DiCaprio é montada paralelamente com um desenho do Popeye que passa em uma televisão da casa. A comparação entre os efeitos do espinafre para o marinheiro Popeye e um frasco de cocaína para o protagonista é uma ótima sacada que se perde numa cena transformada em caricatura de comédia pastelão.

Dito isto, vale destacar que ‘O Lobo de Wall Street’ possui alguns bons momentos, como cenas em que o talento de Scorsese ainda oferece vigor cinematográfico e nas boas atuações de DiCaprio e de quase todo o elenco, com destaque para uma participação curta mas genial de Matthew McConaughey. Mas isso é muito pouco perto de tudo o que Scorsese é capaz de oferecer.

‘Quando Eu Era Vivo’

Por Fernando Oriente

‘Quando Eu Era Vivo’ é cinema de gênero de primeira, mas é muito mais. O longa de Marco Dutra é, antes de tudo, um sofisticado drama psicológico, que se faz muito mais potente na construção como filme de horror. O filme, dentro de suas várias chaves de leitura, pode ser visto como um drama sobre o movimento inevitável que acontece dentro de cada família para se fechar cada vez mais em torno de laços afetivos paranóicos e patológicos, em que seus membros seguem, por meio de ações incontroláveis, uma força maior para se condensarem e anularem emocionalmente dentro um núcleo coeso e claustrofóbico.

É exatamente essa chave que aproxima o filme de Nelson Rodrigues. É essa matéria do estrangulamento incontrolável da família em direção a um núcleo mínimo que vemos em ‘Senhora dos Afogados’, encenada pela primeira vez em 1947. Tanto na peça de Nelson como no filme de Marco, temos as ações de uma mãe, representada por uma mulher dotada de uma força matriarcal incapaz de ser controlada, que conduz todas as ações e suas consequências. Se na peça a personagem é central, em ‘Quando Eu Era Vivo’, essa mãe está ausente fisicamente, mas sua presença é a mais forte de todas. Ela é e está no sentimento de perda que corrói os três personagens masculinos e ganha materialidade para agir fisicamente de novo por meio da identificação com a nova e jovem personagem feminina.

O trabalho de imprimir ao que está fora do quadro o papel propulsor na dramaturgia é um dispositivo que amplia e serve de força maior para a atmosfera construída por Marco Dutra. Esse fora de quadro (as ausências, o passado) é o grande e onipresente contracampo do filme. Porque ‘Quando Eu Era Vivo’ é um filme de atmosfera, de clima. E nisso temos poucos exemplos mais competentes do que o novo longa de Marco.

A grandeza de ‘Quando Eu Era Vivo’ é toda construída no notável talento da direção. A encenação do filme, confinada basicamente ao apartamento onde quase todas as ações acontecem, ecoa a mise en scène que Fassbinder imprimia às sequências em ambientes fechados de seus longas, em que o cineasta alemão fixava na matéria do filme as angústias claustrofóbicas da psicologia dramática de seus personagens. É exatamente esse efeito que Marco imprime em seu longa.

Marco Dutra tem total controle sobre cada plano, sobre a evolução precisa do filme. A decupagem não poderia alcançar resultado melhor. Cada sequência transpira a atmosfera que o cineasta meticulosamente imprime a elas. O rigor dos planos se faz notar na complexa geometria do quadro, em que os enquadramentos procuram tirar o espectador de uma posição confortável de apreensão simples das imagens.

Essa geometria de quadro visa o desconforto, procura destacar o ambiente de angústia e estranhamento criado para cada plano, seja por meio da disposição dos atores e objetos em cena, seja no movimento calculado desses personagens em conflito com os deslocamentos, aproximações e recuos da câmera (que constantemente criam efeitos potentes de reorganização do quadro) ou mesmo na composição de todos os elementos dentro dos planos estáticos.

Outro ponto fundamental na distinção de “Quando Eu Era Vivo” é a fotografia de Ivo Lopes Araújo. Os efeitos que essa fotografia atinge seguem o rigor com que o filme é construído em seu todo. A luz, que se altera suavemente (mas de maneira intensa e marcante) ao longo do filme, entra como fator diegético na evolução dramática. O uso do som impressiona e os ruídos e a música também são matéria fundamental dessa diegese.

Dois elementos ganham peso marcante na construção dramática do filme. A fita de VHS gravada pela família nos anos 80 e a partitura da música composta pela mãe para seus filhos.

O vídeo, com suas imagens de baixa resolução que são inseridas no filme, traz a carga visual, a materialização em imagens de fragmentos do passado. São as texturas dessas imagens de VHS, com seu registro de som e luz esmaecidos que colocam o simbolismo e o mistério do passado como material físico dentro da narrativa presente do filme e potencializam a atmosfera de tensão e mistério. As relações que se instalam, o conflito entre esses fragmentos imagéticos do que foi vivido em relação ao desconforto do presente encenado dão um impacto ainda maior a evolução climática da dramaturgia.

A partitura deixada pela mãe e todo o mistério que ela encerra é desenvolvido como fator essencial à narrativa. A música vai, ao longo do filme, se tornando uma realidade simbólica, uma das maiores forças dentro do longa. Ela passa do papel e torna-se som, cantoralada e sussurrada em um primeiro momento para depois ganhar corpo e peso para desencadear ações e consequências.

Muito da força de encenação de Marco Dutra vem, também, da direção de atores e da composição dos tipos. Marat Descartes e Antonio Fagundes estão excelentes, pra dizer o mínimo, e todos os demais atores e atrizes funcionam de forma correta no filme.

“Quando Eu Era Vivo” é mais um passo que consolida a bela carreira que Marco Dutra constrói no cinema. Desde a força de seus curtas, tanto os que assina sozinho como ‘Concerto Número Três’ e ‘Rede de Dormir’, quanto os que co-dirige com Juliana Rojas como “Um Ramo’, ‘Lençol Branco’ e ‘As Sombras’ e no ótimo primeiro longa, assinado em parceria com Juliana, ‘Trabalhar Cansa’, Marco e seu coletivo Filmes do Caixote fazem um cinema muito particular, que no uso do gênero e no valor dado as potenciais da encenação e do rigor cênico trazem uma garantia de bom cinema.

Esse aspecto, já muito discutido, da qualidade dos coletivos de cinema é assunto para outros textos. O importante aqui, nessa breve análise, é tentar se debruçar e enaltecer esse belíssimo ‘Quando Eu Era Vivo’, filme que pede constantes revisões, muitas apreciações e se oferece como combustível para ótimas discussões. Ou seja, cinema como ele pode e dever ser feito e encarado.