‘O Garoto’ (Le Garçu) de Maurice Pialat, 1995

garcuPor Fernando Oriente

Último filme de um dos maiores cineastas da história, ‘O Garoto’ (Le Garçu) encerra a obra de Maurice Pialat no mesmo grau de excelência que marcou toda sua carreira. Filme pouco conhecido do diretor, ‘Le Garçu’ contém os elementos chaves do cinema de Pialat e ainda propõe uma reflexão sobre o estado do mundo e o estado da arte ainda mais melancólica do que em seus longas anteriores, principalmente devido ao caráter de adeus que está impregnado em ‘O Garoto’. Os filmes de Pialat são cruéis, melancólicos e isentos de esperança. São um registro da dor de viver, da incapacidade de se relacionar com o outro e de como a desilusão e a amargura são o denominador comum do homem em um mundo que perdeu o encantamento. É cinema pós maio de 68, em que mudar alguma coisa já parecia impossível.

Esse seu longa final tem todos esses elementos potencializados por a uma melancolia e uma tristeza capazes de evocar o sublime. Não é exagero afirmar que todo o cinema de Pialat transpira sentimentos e sensações incapazes de serem colocados em palavras. A beleza bruta que o diretor extrai de seus longas atinge um patamar mais alto, atinge exatamente o sublime da vida e da arte, por mais cruel que o mundo e da existência sejam vistos pelo diretor.

Em ‘O Garoto’ temos momentos isolados da vida de um casal em separação. Um filme construído em elipses poderosas que dão independência dramática para cada sequência e simultaneamente solidificam a coesão do filme como um todo. Gerard (Gérard Depardieu) e Sophie (a linda Géraldine Pailhas) não podem ficar juntos, ao mesmo tempo em que não conseguem romper totalmente seus laços. A angústia, a melancolia e a impossibilidade de se relacionarem fazem com que o desprezo, a resignação e a crueldade sejam os refúgios para suas almas atormentadas.  É na dor, muita dor, que são condenados a viver.

Esse desprezo, sentimento tão caro ao cinema francês pós anos 60, contamina as ações do casal, principalmente de Gerard. A densidade dramática assume uma complexidade extrema porque esse desprezo também é direcionado, de maneira não intencional, mas inevitável, ao filho do casal, um garoto com menos de cinco anos e elemento chave na dramaturgia. A grandeza de Pialat é construir um drama com altíssimo teor de amargura sem em nenhum momento cair em sentimentalismos e afetações. Esse controle extremo sobre a matéria de seus filmes é uma das maiores características do diretor. É no rigor absoluto da encenação, no controle completo sobre os gestos, que está a força central do cinema de Pialat.

A mise en scène de Maurice Pialat é uma das maiores maravilhas que o cinema já viu. ‘O Garoto’ é um exemplo claro disso. Essa encenação é perfeita, o diretor faz o que quer com cada plano e todas as sequências são fruto de um controle total dos elementos cinematográficos. Mas muitas vezes a diegese dos filmes de Pialat nos apresenta suas cenas com uma ferocidade crua, uma explosão bruta do real, que por meio dos artifícios da construção cênica levam essa realidade encenada para o terreno do naturalismo. Isso é uma pista falsa, faz parte da sofisticação da sua obra. Pialat não é um naturalista, as potências desse real recriado por dentro da própria matéria de cinema elevam seus longas a impactos de uma beleza impossível de ser restrita apenas ao naturalismo.

O cinema de Maurice Pialat é uma elevação, uma ascese. Como escreveu Victor Guimarães na Cinética, em Pialat a encenação tem “a capacidade de ser um diamante meticulosamente lapidado e conservar, ao final da ourivesaria, sua brutalidade primeira”.

Em ‘O Garoto’, embora recheado de diálogos poderosos, temos uma maior presença do silêncio em cena. São nesses momentos em que os personagens não falam que sentimos suas dores e a melancolia os domina de forma mais intensa. Isso é traduzido por Pialat por meio das expressões dos rostos, nos olhares e nos gestos. O próprio deslocamento dos atores em cena e seus movimentos transpiram essa amargura de suas existências.

Pialat sempre estendeu a duração dos planos até o limite, para tirar mais intensidade deles. Em ‘O Garoto’ vemos uma série de planos longos, em que a câmera se move pelos os ambientes ou se fixa em determinadas ações e espaços da cena. O corte é adiado ao máximo. Ao alongar seus planos, Pialat amplia as sensações dos dramas. É esse um dos recursos que conferem a beleza aguda do desencanto que compõe o filme. É um respeito quase religioso pelo tempo de cada sequência, por todas as ações, pelos segundos que levam para a execução de um gesto , a construção de uma fala, ou a temporalidade sensorial de um silêncio.

Em seu último longa, Pialat nos remete a outros de seus filmes. Temos alusões ao cotidiano e as crueldades do casal central de ‘Não Envelheceremos Juntos’ (1972), o garoto condenado a uma existência incerta como em ‘Infância Nua’ (1968), a presença da morte na vida de um casal em crise na figura de um parente próximo como em ‘La Gueule Ouverte’ (1974) e a fraqueza de um homem impossibilitado de demonstrar afeto sem agredir o objeto de desejo como em ‘Loulou’ (1980). Essas referências que ‘O Garoto’ fazem à obra de Pialat são elementos que engrandecem o filme. Criam uma dialética com o interior de sua obra e elevam ‘O Garoto’ a novas possibilidades dentro dos temas centrais do diretor.

Pialat nunca mais filmou depois de ‘Le Garçu’, lançado na França em 1995. Morreu quase oito anos após seu lançamento e deixou um buraco no mundo da arte. Só ele era capaz de compor de maneira tão intensa com a dor e o desencanto. A cena final de seu último filme deixa registrada para a eternidade a enormidade do diretor. Os dois planos que fecham o filme, divididos por um corte de aproximação, estão entre os maiores momentos da história do cinema. Um adeus típico de Pialat, com direito a toda a dor do mundo.

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