‘O Lobo de Wall Street’

Por Fernando Oriente

 Muito já foi dito sobre o novo filme de Martin Scorsese, críticas negativas em maior número, mas leituras positivas também. ‘O Lobo de Wall Street’ é um longa típico da atual fase do diretor. Trabalhos “afetados”, bem inferiores ao que ele realizou nos anos 70, 80 e início da década de 90, mas que conseguem grandes bilheterias. Nunca um filme de Scorsese é uma obra nula, mesmo em seus piores momentos. ‘O Lobo de Wall Street’ é um filme regular, fraco mesmo em seu todo. Mas alguns (poucos) momentos e umas raras sacadas fazem com que o espectador assista sem grandes traumas e com breves momentos de satisfação.

‘O Lobo de Wall Street’ segue a estrutura de construção (evolução de personagens, decupagem de sequências, desenvolvimento e variação das intensidades dramáticas) de alguns dos melhores filmes de Scorsese, como ‘Cassino’ (1995) e ‘Os Bons Companheiros’ (1990), esse último sendo, talvez, a grande obra-prima do diretor. Mas o ‘Lobo’ fica longe do resultado poderoso desses longas.

O que Scorsese oferece nesse seu novo trabalho é uma exposição de impasses que vem tornando sua carreira apenas uma sombra do que foi. O diretor parece, desde a segunda metade dos anos 90, ter cedido a pirotecnias cênicas, explicações óbvias e soluções fáceis que visam agradar um público maior. A ousadia, o risco e a invenção de seus filmes antigos deram lugar a cacoetes de estilo sempre calculados para oferecer uma posição confortável de visão para o público de hoje, sem deixar de transmitir a potência artística de seu realizador. Scorsese não ousa, usa de maneira calculada o vigor e a energia que sempre foram marcas de sua encenação e que hoje ele transformou em um selo de qualidade. Mas Martim Scorsese é muito maior que isso.

A partir de ‘Kundun’ (1997), o que em Scorsese era um tour de force de encenação, sempre a serviço do filme, virou afetação e um estilo over que obstrui a mise en scéne. Os virtuosos movimentos de câmera e a intensidade, muitas vezes frenética, da carga dramática das sequências, que funcionavam como elementos constituintes da força narrativa de seus melhores filmes, passaram, em seus trabalhos recentes (como nesse “O Lobo de Wall Street’) a serem usados como marcas de estilo que tentam esconder o vazio da evolução e da própria matéria de seus dramas.

E ‘O Lobo de Wall Street’ ainda sofre de um problema mais grave. Nele, Scorsese se mostra preso, vítima da indefinição de rumos que tenta empregar no filme. O aspecto cômico que marca a maior parte do filme soa artificial e forçado, com apenas alguns momentos realmente engraçados. O drama que domina o filme em sua parte final é o pior de ‘O Lobo de Wall Street’. Esse drama não evolui para além de um conto moral frouxo. O cinismo que Scorsese imprime às três horas de duração do longa não é explorado em suas possibilidades e se torna uma referência caricata de um diretor que apenas ecoa um discurso crítico a um universo do alto escalão capitalista que seu filme não consegue penetrar os nuances e possibilidades. Mas o pior das sequências dramáticas mais intensas do filme é o registro equivocado das cenas. Sequências inteiras aparecem em de maneira histérica, as situações são encenadas em estilo afetado e todo o filme entra em colapso.

O que temos em ‘O Lobo de Wall Street’ é o oposto do que Brian De Palma fez com seu subestimado ‘A Fogueira das Vaidades’ (1990). Onde De Palma encena, de dentro e de maneira sarcástica, o universo do dinheiro, das tentações e das aparências de um meio nova-iorquino, Scorsese derrapa em discursos morais concebidos de maneira afetada. A sutileza e os comentários ácidos que De Palma imprime por meio da própria construção de seu filme passam longe do que vemos no ‘Lobo’, em que as afetações de estilo e a mão pesada de Scorsese imperam.

As músicas não estão na mesma sintonia do filme. Em ‘O Lobo de Wall Street’ as canções funcionam como muletas para tentar maquiar os aspectos frouxos da evolução dramática, servem de solução impactante para elevar os sentidos do espectador, mas não escondem os problemas de encenação e de dramaturgia e, em muitos casos, expõem ainda mais as deficiências do longa.. Scorsese já mostrou em filmes da sua melhor fase ser um ótimo editor de músicas e imagens, longas em que uma trabalhava a favor da outra para o todo da obra. Aqui isso fica longe de acontecer.

Dois momentos de ‘O Lobo de Wall Street’ (que poderiam ser ótimos) ilustram bem a afetação e o aspecto over que contaminam o filme. A sequência em que uma reunião da empresa, onde supostamente o personagem de DiCaprio iria comunicar sua saída da firma, se transforma em uma espécie de culto evangélico impulsionado pelo poder do dinheiro, pela possibilidade e predestinação de se ganhar e se fazer dinheiro. O que vemos na tela é uma sequência over e acima do tom, em que a ótima idéia se transforma em afetação cênica que conduz a um arremedo bufão desprovido de texturas. O outro momento é na sequência em uma quase overdose de quaalude de DiCaprio é montada paralelamente com um desenho do Popeye que passa em uma televisão da casa. A comparação entre os efeitos do espinafre para o marinheiro Popeye e um frasco de cocaína para o protagonista é uma ótima sacada que se perde numa cena transformada em caricatura de comédia pastelão.

Dito isto, vale destacar que ‘O Lobo de Wall Street’ possui alguns bons momentos, como cenas em que o talento de Scorsese ainda oferece vigor cinematográfico e nas boas atuações de DiCaprio e de quase todo o elenco, com destaque para uma participação curta mas genial de Matthew McConaughey. Mas isso é muito pouco perto de tudo o que Scorsese é capaz de oferecer.

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