‘Amar, Beber e Cantar’, de Alain Resnais

Aimer, boire et chanterPor Fernando Oriente

Exatamente por Alain Resnais ser um dos maiores e mais fundamentais cineastas de todos os tempos, seu cinema já recebeu diversas análises e estudos. Já foram definidos elementos comuns a sua obra, características marcantes em seu estilo, da mesma forma como foram apontados temas recorrentes e enunciados e discursos comuns aos filmes do diretor. Tudo isso serve bem para abordarmos seu cinema. São colocações precisas, observações perspicazes e análises profundas e abertas a novas visões e leituras. Mas por mais correto que seja o vasto repertório crítico usado para definir Resnais, é impossível apreender a obra desse artista de forma total. É como se seus filmes permanecessem sempre como discursos em aberto; abertos ao cinema como arte total, aquela que implica em sua matéria todas as outras e ainda assim tem em sua linguagem particular os códigos mais complexos para se debruçar sobre o mundo e suas representações. Complexidade é um termo muitas vezes usado em análises críticas, em Resnais essa noção de complexidade chega próxima da definição mais completa do termo.

Resnais é sem dúvida, um cineasta da memória, do peso significante do que ocorreu em tempos passados. Ele trabalha na sobreposição e recolocação entre passado e presente, entre vários possíveis passados e as relações que esses têm com os desdobramentos do tempo, culminando sempre num tempo presente de incertezas. São fendas no tempo, dobraduras de épocas e experiências vividas que impulsionam a angústias e impossibilidades que seus personagens se encontram presos em um presente etéreo.

A fragmentação do tempo no cinema de Resnais reflete na estrutura labiríntica dos espaços em que seus filmes se desenvolvem. Tanto os espaços físicos, quanto os espaços temporais. Seus planos são fluxos de incertezas, carregam narrativas de muitas possibilidades, de constantes re-significações. A imagem em Resnais é impregnada pelas muitas texturas do tempo e da memória. Nunca são elementos de uma linearidade, a evolução da narrativa é sempre questionada, certezas não fazem parte de seu cinema.

‘Amar, Beber e Cantar’, último longa do diretor está inserido em todas essas análises. Por mais leve que seja a encenação, por mais que o humor e o tom farsesco imperem no filme, os questionamentos e elementos centrais da obra de Resnais estão presentes em todo o filme. Como sempre foi um artista inquieto, que buscou continuamente novos meios e linguagens para construir seu cinema, ‘Amar, Beber e Cantar’ pode ser colocado ao lado de alguns de seus mais recentes trabalhos, como ‘Melô’ (1986) ‘Smoking/No Smoking’ (1993), ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ (2006) e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’ (2012). Não só por se basearem em peças teatrais, mas também pelo uso do artificialismo nos cenários, o tom carregado das cores na fotografia, o cinismo na construção dramática e tom farsesco na encenação e no trabalho gestual e na presença cênica dos atores.

Em ‘Amar, Beber e Cantar’ temos seis personagens em cena, três casais. Mas o principal personagem nunca aparece. Ele é George, um conhecido comum aos seis, cada um com um grau de envolvimento diferente com ele ao longo de suas vidas. George, mais que um tipo dramático, é um agente desencadeador de conflitos. É ele quem traz toda a carga do tempo passado, das memórias de cada um dos seis. O peso do fora de quadro é elevado à força motora e matéria central do filme. Tanto que a maioria das cenas se passam em cenários artificiais que representam ambientes externos, jardins, fachadas de casas e estradas. O que está dentro das casas é mantido oculto, fora do quadro, assim como George e assim como as reais pulsões existências e desejos dos personagens. Mas sofisticação na encenação e na evolução do filme abrem brechas para o espectador penetre em frestas do interior dos personagens e componha um retrato do que esses tipos carregam dentro de si.

George representa o que foi vivido e, por contingências da vida, deixado de lado na existência de cada um dos personagens que vemos em cena. Ele é, para o seu melhor amigo, o exemplo do homem que não se vendeu, ele representa a possibilidade de felicidade sexual e a alegria de viver na irresponsabilidade para antiga namorada. Para sua ex-mulher, George personifica o elemento que traz de volta tudo o que de errado foi vivido no relacionamento, toda a frustração que foi uma vida conjunta que seguiu por caminhos imprevistos, mas que não encerram novas possibilidades de um recomeço. Para os que não o conheceram tão bem, ele representa uma força existencial que esses perderam com o tempo, ou mesmo nunca chegaram a pôr em prática.

George é o passado, é o tempo que foi e nele estão as imagens refletidas de cada um dos seis tipos que vemos em cena. Ele é a memória real, fantasiada ou imaginada do que eram suas vidas e, principalmente, do que eles mesmos poderiam ter sido. É a memória novamente como força avassaladora que guia o caminho e os dramas de Resnais. São as dobras de tempos passados que implicam o que o presente reflete nas inquietações dos personagens.

O fato de sabermos, logo no início do filme, que George tem apenas seis meses de vida é o fato que introduz seu personagem como agente central da dramaturgia do filme. A presença da morte, a ameaça da finitude retira o torpor e a aparente serenidade na vida dos três casais. Resnais usa uma mise-en-scéne carregada no duplo sentido que os gestos e as falas de seus atores implicam. É um falso tom de leveza na encenação (acentuado pelos movimentos e posicionamentos de câmera), um sarcasmo impregnado pelo diretor na construção das cenas que multiplica as camadas de absorção das tensões aparentemente leves e frugais que as imagens sugerem. No artificialismo e na desconstrução anti-naturalista Resnais tece camadas de interpretação e abre espaços para o espectador penetrar na relação dos personagens consigo mesmos e na carga memorial e temporal que trazem para as sequências.

Gilles Deleuze diz que Resnais cria “um cinema de filosofia, um cinema do pensamento”. Deleuze lembra que “Resnais sempre disse que o que lhe interessava era o mecanismo cerebral, o funcionamento mental, o processo de pensamento, e que era isso o verdadeiro elemento do cinema… o processo cerebral enquanto objeto e motor do cinema”.

Essa definição surge precisa em relação à construção fílmica de ‘Amar, Beber e Cantar’. Se a mise-en-scène de Resnais é calcada nos já mencionados tons de farsa, comédia sarcástica e anti-naturalismo cênico e gestual, esses recursos são capacitações de um pensamento cinematográfico cerebral, em que as implicações da encenação desvendam, enfatizam e potencializam os discursos e os comentários do cineasta diante da história e das emoções que compõem seu filme.

Um pequeno detalhe, quase ao final do filme, pode iluminar a relação que Resnais manteve durante décadas com seu trabalho como cineasta. Trata-se da cena em que o personagem de André Dussollier (um simples agricultor que casou com a ex-mulher de George) diz, após assistir a peça em que os personagens do filme encenam. “Eu prefiro cinema”.

Sim Resnais pode usar elementos de várias artes, como fez com o teatro em alguns de seus filmes, mas usa-os para enaltecer a força do cinema, a capacidade da encenação cinematográfica, aliada à decupagem e a evolução rítmica de um filme, bem como elementos básicos de enquadramento, movimentos e posicionamentos de câmera, fotografia, cenário e montagem.

Alain Resnais deixou uma obra cheia de filmes seminais, desde ‘Guernica’ (1950), ‘Noite e Neblina’ (1955), ‘O Ano Passado em Marienbad’ (1961), ‘Muriel’ (1963) e ‘Eu Te Amo, Eu te Amo’ (1968), passando por ‘Providence’ (1977), “A Vida É Um Romance’ (1983) e ‘Melô’, até ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’. Esteve sempre a frente de seu tempo como artista inovador e complexo, um cineasta-pensador, um intelectual que fazia da arte de construir filmes uma expressão complexa do estar no mundo. Fazia tudo isso com uma naturalidade proporcional a sofisticação de seus filmes.

Ou, nas palavras do próprio Resnais: “Se eu pudesse definir o cinema em duas palavras, eu diria reunião e frescor. Frescor porque o privilégio do cinema é se prestar à improvisação – mas para isso, é preciso ter tudo cuidadosamente preparado. Reunião, porque a invenção verdadeira está nas seqüências. Os detalhes não contam, a combinação é tudo”. Sem mais.

 

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