Por Fernando Oriente
‘Fome’, de Cristiano Burlan
É notável nos filme de ficção de Cristiano Burlan como o diretor, a cada novo longa, se aproxima mais da coesão entre seu forte trabalho formal, suas concepções estéticas e a funcionalidade e a eficiência dramática. ‘Fome’ é seu melhor filme até agora, inferior apenas ao documentário ‘Mataram Meu Irmão’ – um dos grandes documentários recentes do cinema brasileiro. Em ‘Fome’, Burlan desenvolve uma dramaturgia totalmente baseada na força das imagens, na potência dos movimentos e na presença física do personagem de Jean-Claude Bernardet. Um longa que se fortalece nas pulsões internas do quadro, nos movimentos sempre precisos de câmera, numa decupagem fluída na presença do protagonista e suas relações com os espaços e deslocamentos. Um filme em que quase tudo é dito por meio das imagens e a palavra surge raramente para comentar e ampliar a força do que essas imagens já carregam isoladamente.
Acompanhamos durante todo o filme os deslocamentos do personagem de Bernardet pela região central da cidade de São Paulo. Ele é um intelectual e ex-professor que abandona tudo para viver na rua, apenas empurrando um carrinho de supermercado com poucos pertences, se deslocando anônimo por uma cidade enorme, que se faz sentir gigantesca e desordenada por meio das imagens de Burlan. Uma cidade personagem, um espaço de prolongamento existencial do protagonista. Ruas, praças, becos, esquinas, avenidas, túneis e pontes que o acolhem e o oprimem. A solidão do personagem só não é completa porque a força orgânica da cidade lhe serve de companhia. Burlan não busca o naturalismo nas cenas, tanto personagens como ambientes são retratados pela subjetividade do protagonista e suas pulsões internas. Isso ganha força pela escolha do preto e branco. A poesia visual que Burlan tira das imagens por meio da paleta em branco e preto na fotografia são uma forma de desconstruir a aspereza inerente aos espaços por onde seu personagem circula, conferem uma beleza reflexiva aos ambientes por onde ele anda e destacam o interior do personagem e seus conflitos existenciais em meio ao fluxo violento da cidade.
É como se a força e a beleza das imagens destacassem Bernardet do meio, recortassem sua existência invisível dos espaços por onde ele se desloca e o colocassem numa posição onde sua presença se torna maior que a cidade gigante e seus milhões de habitantes. São seus movimentos e fluxos interiores que estão sempre em primeiro plano. Seus gestos, suas expressões, suas poucas falas são muito maiores que tudo aquilo que o cerca. Essa construção dramática é potencializada e tornada possível pela encenação fluída, por planos compostos com rigor tanto nos enquadramentos e movimentos de câmera, como nas composições de quadro. A câmera de Burlan acompanha Bernardet constantemente, é uma extensão de sua presença em cena, cola nele, o filma de costas, de frente, de lado, segue seus movimentos em travellings harmoniosos, sempre compondo o quadro na relação física do protagonista – seja em primeiro plano, seja no meio da cena ou entrando e saindo de quadro – e a cidade ao fundo, se desdobrando. Os espaços entram no quadro sempre numa extensão dos deslocamentos de Bernardet. Toda a dramaturgia é muito bem resolvida, sempre calcada no formalismo funcional da mise-en-scéne.
As poucas cenas em o protagonista interage e conversa com outros personagens reforçam aquilo que as imagens já nos dizem sobre ele, ao mesmo tempo em que servem para ampliar suas texturas e tornar mais rica sua subjetividade. Jean-Claude Bernardet é mais do que ator no filme. Em uma interpretação notável, é o próprio Bernardet intelectual, crítico, escritor, professor e pesquisador de cinema, um dos maiores pensadores de cinema do país que se desdobra em personagem de ficção. Sabemos que Jean-Claude abandonou o meio acadêmico e as críticas para se tornar ator, mas ele deixou um legado imenso que é referência para qualquer um que queira entender e pensar o cinema no Brasil e no mundo. Seu personagem em ‘Fome’ é ele mesmo na vida real desdobrado em uma persona ficcional. A sequência em que ele encontra, durante uma noite na Praça da República, um ex-aluno que reconhece no mendigo seu antigo professor é um dos pontos altos do filme. Não por acaso quem interpreta o aluno é o crítico, pesquisador, curador, roteirista e agora ator Francis Vogner dos Reis. Na cena, os dois discutem e o ex-aluno detona o antigo professor. Existe um choque entre eles, tanto geracional, quanto intelectual. Suas visões sobre o cinema, sobre o papel do intelectual diante do estudo e interpretação da arte refletem a angústia do próprio pensar cinema no Brasil hoje, as tensões presentes entre o fazer e o pensar os filmes. Cristiano Burlan, o cineasta, entra como o terceiro personagem na cena e coloca seu cinema, seu papel de realizador como parte extracampo da discussão entre Bernardet e Francis.
‘Fome’ é um filme de uma urgência pulsante, uma reflexão aguda sobre o país nos dias de hoje. A jornada existencial do velho professor que se torna morador de rua reflete as tensões, as impotências e angústias do homem diante da sociedade atual, do ritmo insano da vida, dos códigos de consumo onipresentes e da pressão alienante sobre todos para se adequarem a um modo de vida que esmaga desejos e subjetividades. A negação do protagonista pela vida pré-estabelecida e sua busca por encontra-se na rua, no movimento constante e sem destino pelos espaços da metrópole é um ato de resistência, um gesto extremo para tentar extrair e sentir o que de mais verdadeiro alguém pode ter dentro de si e que só pode ser percebido nessa jornada de negação, nessa busca em meio ao caos. Numa precariedade extrema que se torna pulsão de liberdade. ‘Fome’ não dá respostas, não traz nenhuma reconciliação, não dá a seu protagonista aquilo que ele deseja. Burlan mostra apenas o processo, os meios pelo qual pode se tentar algo maior. A sequência final, as expressões no rosto de Bernardet filmadas em close são a exclamação precisa do discurso construído com precisão ao longo de todo o filme. O que essa cena nos deixa é a sensação de impotência, a imensidão de incertezas em que estamos todos mergulhados diante da vida, da dor da existência. O filme não tem uma conclusão, ele é interrompido num momento agudo, que deixa em aberto a jornada do protagonista e faz com que suas inquietações se projetem em nós.
‘A Loucura Entre Nós’, de Fernanda Fontes Vareille
Um documentário que retrata a doença mental, pessoas que dela sofrem e suas lutas para não só se recuperarem ou atenuarem suas enfermidades, mas principalmente em sua busca por inserção no mundo. Inserção como indivíduos, afirmação de suas subjetividades sem o fantasma da dor emocional, dos distúrbios que alijam suas existências e do preconceito que esse tipo de doença tem na sociedade. Fernanda Fontes Vareille constrói seu filme ao acompanhar pacientes de um hospital psiquiátrico em Salvador. Os principais personagens do filme são aqueles que já saíram da internação (ou estão prestes a sair) e frequentam um centro de ressocialização, a ONG Criamundo, baseado em terapias ocupacionais, além de acompanhamento médico e medicamentoso. O início do filme é todo dentro do hospital psiquiátrico, dividido em alas para os internos e também local onde funciona o Criamundo. As imagens do longa retratam diversos espaços, desde as alas dos internos e principalmente as dependências do Criamundo. Entre esses pacientes em processo de ressocialização o filme se debruça sobre duas mulheres: Elisângela – moça pobre, mãe de uma menina de cinco anos e que vive com a mãe em uma favela – e Leonor – uma mulher de classe média, com mais de 50 anos e pintora. As duas serão as condutoras da evolução narrativa e terão desfechos bem distintos.
Antes de procurar apenas um registro distanciado ou uma mera reportagem de doentes mentais em um hospital psiquiátrico e num centro de ressocialização, Fernanda busca dar dignidade, lugar de fala e identidade existencial a esses pacientes. A simples presença da câmera de Fernanda faz com que mulheres e homens confinados e mantidos à margem da sociedade encontrem um meio de expressão. E é pela presença da câmera e o imenso respeito com que a diretora registra tudo, que os pacientes falam, se expressam, retomam uma voz que lhes foi roubada e silenciada pela sociedade e pela doença. Eles verbalizam discursos próprios, que seguem lógicas distintas, se expõem em gestos de ternura, dor, desespero, resignação e esperança. ‘A Loucura Entre Nós’ afirma, de forma não-panfletária, que a loucura é um conceito que busca a exclusão, mais uma forma canalha de higienização (essa ação fascista) de uma sociedade que visa a eliminação de tudo que foge da racionalidade considera ideal. O filme traz em sua superfície o quanto essa dita loucura é portadora de individualidades complexas, experiências questionadoras e sabedorias ricas, que fogem dos padrões normatizantes de uma sociedade que só aceita quem produz, se comporta, aceita, resigna-se e se desloca dentro das regras da normatividade do consumo, da produção e da obediência cega aos preceitos morais e comportamentais de um mundo cada vez mais automatizado e habitado por seres que só sobrevivem ao reprimir tudo o que de mais autêntico ou destoante podem ter dentro de si.
‘A Loucura entre Nós’ coloca a doença mental como apenas mais uma doença, que quem dela sofre merece os mesmos cuidados de qualquer doente. O longa não minimiza a gravidade e o sofrimento que vários distúrbios emocionais têm – Fernanda registra pacientes em estado grave, mas os filma com um distanciamento respeitoso, não esconde nada, mas principalmente não espetaculariza seus sofrimentos. O filme é um gesto forte e urgente, ao mesmo tempo que honesto e natural. Desconstruir o lugar de pária a que são remetidos os doentes mentais e devolver-lhes a cidadania. Fernanda acompanha os pacientes sempre de uma maneira horizontal, não se coloca acima deles. Está entre deles para ouvi-los, dar importância ao que pensam, a suas histórias de vida, ao seus desejos, ao que esperam do futuro, ao mesmo tempo em que expõe seus tormentos. Um filme que devido a uma construção precisa permite com que a presença, a voz e o gesto dos personagens esteja em primeiro lugar e sejam percebidas pelo espectador de maneira natural. Muitos planos são longos, Fernanda estende as cenas de acordo com o personagens e suas necessidades em se expressar para câmera, não corta suas falas, não interrompe seus fluxos de pensamento, nem manipula seus gestos e movimentos. Faz uma construção de cena orgânica, em função das pessoas que registra e dos espaços em que se deslocam.
Na segunda parte de ‘A Loucura Entre Nós’ Fernanda acompanha os pacientes, principalmente Elisângela e Leonor, pela cidade de Salvador, em suas casas, em suas visitas ao médico. Vemos Elisângela falando sobre sua doença no sofá de casa, ao lado da filha e da mãe. Acompanhamos Leonor mostrando seus quadros, fotos e negociando seus trabalhos com um possível comprador. É a vida que volta aos poucos. Um dos grandes méritos do filme é inserir seus personagens no meio da paisagem urbana, no habitat das pessoas “normais”. Nesse processo de desconstrução do preconceito, concebido todo pelo registro humano e sincero dos personagens, Fernanda cria um filme necessário, simples e direto, que por vezes cai em lugares comuns que poderiam ser evitados ou em um ou outro excesso de sentimentalismo – mas nada que tire a força do filme como um todo. Seu discurso é claríssimo e objetivo. E dentro dessa simplicidade documental o que fica no espectador é o quanto de vida esses pacientes carregam, o quanto são cruéis as doenças emocionais – e como elas são difíceis de serem vistas sem preconceitos – e o quanto é difícil superá-las, ao mesmo tempo em que, por pior que sejam, elas jamais podem excluir os que delas sofrem, muito menos roubar-lhes a voz. O que fica são as subjetividades, os personagens, suas complexidades e seus destinos.