O cinema poesia de Jean Rollin

Por Fernando Oriente

Carlos Reichenbach contava a história de uma vez, quando ele estava em uma loja de filmes de arte em Paris, resolveu procurar longas do cineasta francês Jean Rollin. Carlão pegou alguns filmes do diretor, em VHS, e foi ao caixa, sem imaginar qual seria a reação do vendedor em relação a alguém (dentro de uma loja de filmes de “alto valor artístico”) interessado em comprar títulos de um autor considerado um realizador de “filmes vagabundos” e fitas pornográficas. Ao ver os VHSs com os filmes de Rollin, o jovem balconista se virou para Carlão, sorriu e disse, com a voz cheia de orgulho e admiração: “Rollin é um poeta”.

Essa história me parece a síntese do trabalho de Jean Rollin. Um cineasta ímpar, extremamente talentoso e que, apesar de ter realizado dezenas de grandes e belíssimos filmes, é considerado por muitos um diretor de longas vagabundos (apelativos em termos de nudez e excesso de sangue), além te ter rodado vários filmes de sexo explícito.

O cinema de Jean Rollin era feito com baixo orçamento, poucos recursos e seus temas eram quase sempre ligados a situações de erotismo, horror, realidades fantásticas e mitos sobrenaturais. Mas Rollin se apropriava disso com muita convicção e autenticidade e concebia filmes que são verdadeiros poemas, ensaios sensuais com belíssimas imagens e muito simbolismo.

Um dos mais originais e criativos realizadores de filmes de vampiro que já viu, Rollin assinou verdadeiras pérolas dentro desse tema em filmes como ‘A Violação do Vampiro’ (1968), ‘A Vampira Nua’ (1970), ‘Les Frisson des Vampires’ (1971) e ‘Lábios de Sangue’ (1975). No território dos mortos-vivos, o cineasta dirigiu os impressionantes ‘As Uvas da Morte’ (1978), ‘As Demoníacas’ (1974), ‘O Lago dos Zumbis’ (1981) e ‘La Morte Vivante’ (1982). Rollin também realizou dramas com fundo sobrenatural nos excelentes ‘Fascinação’ (1979) e ‘A Noite da Caça’ (1980) ou mesmo dramas sociais complexos, com alta dosagem de elementos macabros, como o genial e sofisticado ‘As Fugitivas’ (1981).

Um filme que merece destaque a parte é a obra-prima ‘A Rosa de Ferro’ (1973). Longa radical, pessoal ao extremo, em que Rollin usa apenas dois personagens e, com um aproveitamento brilhante das oportunidades conferidas por um enorme cemitério do interior francês que serve como cenário de 90% do filme, cria uma alegoria repleta de mitos antigos e oportunidades de interpretação.

Em ‘A Rosa de Ferro’, Rollin cunha uma obra densa em que discute os conflitos materiais e espirituais entre os homens e a vida anódina em uma sociedade repleta de indivíduos apáticos e conformistas (claramente vistos como mortos-vivos pelo diretor). Essa subversão implica possibilidades de transcendência libertária na relação dos protagonistas com simbologias que envolvem a morte e um físico e espiritual e também no poder metafísico do erotismo e da negação do mundo real. ‘A Rosa de Ferro’ é um dos maiores exemplos do cinema poesia de Jean Rollin, um cinema feito sem concessões.

Durante anos o diretor fez filmes de sexo explícito em que assinava com pseudônimos. Esses trabalhos pagavam razoavelmente bem e tinham bom retorno nas bilheterias. Em um gênero cheio de regras como o cinema pornográfico, Rollin realiza obras em que as sequências explícitas de sexo são filmadas com sensibilidade e distanciamento do vulgar, mas sem perder o apelo e a excitação do sexo encenado. Isso acontece em longas como ‘Douces Pénétrations’ (1976) e ‘Vibrations Sexuelles’ (1977), entre outros.

Em um de seus filmes de sexo explícito mais emblemático, o ótimo ‘Disco Sex’ (1978), Rollin reúne seus atores e atrizes em um único cenário e com uma encenação vigorosa e um verdadeiro tour de force no trabalho de câmera e na montagem, realiza uma catarse erótica em que corpos se chocam das mais diferentes maneiras e o sexo é visto de forma intensa poucas vezes retratada no cinema.

Voltando ao cinema mais pessoal de Rollin, vemos que existe em todos seus filmes um cuidado visual apurado, um extremo talento na direção e uma capacidade singular em construir cenas e sequências poéticas, além de extrair poesia de qualquer temática e de todos os ambientes em que filmava.

Jean Rollin é, na realidade, um cineasta de filmes complexos, cheios de ambiguidades e múltiplas texturas. Como já foi dito, seu cinema parte de premissas fantásticas, de situações de horror e de eventos sobrenaturais, mas parte disso para se aprofundar nas complexidades do ser humano, na densidade emocional de seus tipos e em significações que envolvem o lado sombrio da vida e as incertezas em relação à morte, tanto da carne quanto do espírito. A inquietação do homem diante do incerto e do desconhecido, os medos que todos nós carregamos perante o que foge das explicações racionais e da lógica imediata do mundo são matéria no cinema de Rollin.

Os filmes do diretor são compostos por imagens de beleza aguda, em que as cores, as alterações da luz, os usos de sombras, claros e escuros, os enquadramentos, os movimentos de câmera e a disposição dos atores e elementos de cena no quadro produzem um encantamento visual que faz de seus filmes poesias de luz, movimento e sons.

A encenação de Jean Rollin é pensada em termos da complexidade visual que será produzida na organização e recomposição dos efeitos cênicos de tudo que sua câmera capta: atores, atrizes, figurinos, objetos de cena, espaços e cenários. Esse processo de construção dos quadros (essa meticulosa geometria dos quadros) cria sequências em que o que se vê na tela são imagens em que imperam a fantasia, o paradoxal, a alegoria e os simbolismos caros a concepção fílmica do diretor, tudo de forma sensorial e estilizada.

A mise en scène de Rollin é totalmente anti-naturalista, o que ele busca são as potências simbólicas daquilo que filma. Ele cria distâncias afetivas entre o conteúdo fantástico de suas imagens e o conteúdo material dos dramas e premissas encenados. Ele quer o espectador consciente o tempo todo de que está diante de representações visuais de situações dramáticas que tem apenas nas relações simbólicas e no caráter fantástico as suas afinidades com o mundo.

A sofisticação de Jean Rollin é retirada das possibilidades implícitas no lado sombrio de mitos antigos como vampiros e mortos vivos e nas probabilidades de realização da essência etérea do homem após a morte física. É no sobrenatural que ele ergue seus comentários sobre a pequenez de seres humanos presos ao lado pragmático e racional do universo. E na negação do real que ele oferece tratados sobre a imensidão de perspectivas subjetivas que se escondem por trás do que é desconhecido, do que é visto como folclore e mitologia.

Jean Rollin não se preocupava em fazer filmes com ritmos acelerados ou truques narrativos para envolver mais enfaticamente o espectador e aumentar seu público. Ele não queria conquistar, com subterfúgios estéticos e clichês, espectadores acostumados com a velocidade e os lugares comuns dos filmes de horror e fantasia feitos para o público médio desse tipo de gênero. Rollin fez seu cinema em cima de suas crenças e de suas concepções estéticas com profundo respeito pelo peso do tempo em cada um de seus longas. A duração precisa de seus planos, os enquadramentos ousados e incomuns, a variação de posições de câmera escolhidas na decupagem das sequências e a evolução sensorial e lenta de suas narrativas eram assinaturas típicas de um cineasta autoral, que fazia com incrível talento filmes e mais filmes que podem, e devem, ser vistos como poesia.

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