Mikhaël Hers

‘Amanda’, de Mikhaël Hers

Por Fernando Oriente

Enquanto o cinema contemporâneo, em sua maioria, tateia, com acertos e erros, entre questões políticas, identitárias, revisões históricas, exibicionismos formalistas e releituras do cinema de gênero, Mikhaël Hers realiza seus filmes a partir de um elemento simples: o ser humano dentro da vida cotidiana. Sua matéria fílmica é o viver a vida, um dia após o outro. É como mulheres e homens lidam com o existir, desde suas tarefas e impulsos mais corriqueiros até as maneiras com que se adaptam ao acaso e ao que ele provoca; as alegrias, dores, tragédias e superações que surgem das casualidades para desestabilizar suas vivências, suas relações interpessoais e consigo mesmos. Isso é nítido no belo filme anterior do diretor, ‘Aquele Sentimento de Verão’ (2015), e nesse seu novo trabalho, ‘Amanda’ – um filme nada menos que sublime.

Amanda

Em ‘Amanda’, Hers concentra sua narrativa em duas personagens: a pequena Amanda, de sete anos e seu tio David, irmão de sua mãe. A relação entre os dois tem, por trás da aparente singeleza com que somos apresentados a eles na primeira parte do filme, uma complexidade intensa, que se faz perceber nas sutilezas, nos pequenos gestos, nas aproximações e afastamentos, bem como nos conflitos por meio dos quais os dois solidificam seus afetos um em relação ao outro, principalmente após a tragédia que irá mudar radicalmente suas vidas. Se nos primeiros 25 minutos de projeção, o que toma conta da tela é uma alegria sutil de viver e se relacionar com o mundo, após o evento trágico Mikhaël Hers irá se dedicar a construir uma narrativa em que a força dramática está não em apenas lidar com as perdas, mas sim em reconstruir as próprias existências, superar uma dor extrema e seguir adiante. E é na relação de David e Amanda, nos novos papeis que um tem que assumir na vida do outro, nessa nova forma de trocas afetivas que o destino impõe a eles, que o filme irá atingir sua força máxima. Tanto tio quanto sobrinha, independentemente da idade, têm que lidar com o peso de novas responsabilidades que são obrigados a assumir; tanto a infância de Amanda, quanto a juventude descompromissada de David, com seus 24 anos, são postas em xeque e a vida passa a cobrar uma nova postura de ambos, com renúncias e readequações. E a questão da ausência da figura materna, vivida de maneiras distintas por David e Amanda, irá tornar as novas relações postas ainda mais complexas, criando subtextos de representações da maternidade sublimada.

Embora os dois conduzam a dramaturgia, as demais personagens são fundamentais e Hers as compõe de maneira precisa e minuciosa. Com suas possibilidades e limitações, esses coadjuvantes exercem funções dramático-narrativas que refletem na vida de David e sua sobrinha. São esses outros que irão ampliar as maneiras de existir, agenciar sentimentos, se relacionar com o mundo, buscar forças para superar traumas e ainda redefinir as próprias subjetividades e convicções dos protagonistas, bem como a relação entre eles. Essas demais personagens são construídas por meio da força de seus próprios tipos. Cada subjetividade, cada característica dessas pessoas que participam da vida de Amanda e David é tratada com apuro e cuidado por Hers. Não existe nenhuma personagem banal, caricata ou desinteressante no filme. Mikhaël Hers é mestre em compor tipos humanos e dotá-los não só de funções essências à narrativa, mas também nos apresentar personagens complexos e repletos de texturas.

'Amanda'.

Hers trabalha com sentimentos de maneira frontal e com rara delicadeza, não evita as tensões dramáticas, ao contrário, explora ao máximo suas camadas e suas intensidades, bem como as consequências de tudo o que ocorre com suas personagens, buscando sempre potencializar o sentimento, mas sem nunca cair em sentimentalismos ou apelações melodramáticas. Não tem medo de usar, de maneira orgânica dentro da dramaturgia, a dor, a ternura, a cumplicidade, as fraquezas, a força interior e a possibilidade de esperança e recomeço. Não estetiza o sentimento, pelo contrário, abraça-o e faz dessa ternura e do amor algo que nada tem de piegas e sim de força dramático-narrativa. A sequência na partida de tênis, que fecha o filme, é um dos momentos mais sublimes do cinema recente, em que o afeto, o carinho e a fé na vida transbordam e contagiam a dramaturgia. Da simplicidade da metáfora, Hers extraí uma potência dramática imensa e nada menos que brilhante.

Cada situação dada pelo argumento é retomada, posta em movimento. Hers faz com que tudo o que vemos na tela tenha seu peso ontológico reafirmado dentro da evolução narrativa. Relações, personagens, ações, ocorrências, memórias e pendências entre os tipos e os dramas jamais são abandonadas. Tudo volta para fluir, ter sequência, ser deixado de lado ou mesmo ressignificado. A dramaturgia – com suas constantes evoluções de potência e significação, com o peso marcante do acaso e das constantes imprevisibilidades daquilo que vem de fora para abalar os centros motivacionais e existenciais e as convicções das personagens – trabalha invariavelmente com a impossibilidade de certezas. É o imponderável que determina o devir de tudo o que vemos diante de nós; nada passa batido ou é poupado por esse processo.

Toda cena em ‘Amanda’ é marcada pela liberdade de encenação e composição do quadro – sempre intensificando as movimentações internas e, ao mesmo tempo, se abrindo aos movimentos externos aos centros de tensão. É por meio da sensibilidade que imprime à mise-en-scéne que Mikhaël Hers constrói cada modulação dramática, dentro de uma imersão diegética que busca extrair as complexidades, o ordinário, as fissuras e aquilo que transborda ao que é posto pelas contingências da vida representada. Hers busca se ater à representação realista, mas sempre em direção à sensorialidade e aos sentimentos que emanam do real recriado, tanto dos tipos e seus conflitos, bem como da presença fugidia e veloz dessas personagens dentro do mundo em que estão inseridos. É a presença material e existencial desses corpos nos espaços, suas ações, o constante deslocar-se pelas ruas da cidade que caracterizam os modos de viver dos tipos. Vida como movimento, os movimentos externos que refratam os movimentos interiores – pensamentos, dúvidas, desejos e sentimentos.

‘Amanda’ é um filme em que a luz é ferramenta fundamental na determinação da dramaturgia. A luz de primavera/verão, os tons de amarelo, bem como o azulado desvanecido de crepúsculos e auroras, inundam as cenas externas e são filtradas nas sequências de interiores. O mesmo existe nas sequências de noite, com a luz artificial das ruas de Paris ou dos ambientes fechados. Hers usa a luz e suas variações de intensidade e tonalidade para escrever suas imagens na superfície da tela. A luz pauta os dramas – da alegria à dor -, espelha o interior das personagens e aponta caminhos em seus destinos. Sua instabilidade, do intenso ao suave, é o vir a ser imagético do viver.

'Amanda'

Nos planos construídos por Hers temos sempre a sensação imanente do tempo presente impressa nas imagens e sons; seja um tempo que passa na velocidade das ações triviais e no fluir agitado dos sentimentos corriqueiros ou no tempo lento e pesado dos silêncios, dos diálogos interrompidos, daquela incapacidade de verbalizar a angústia, a dor ou a impotência. Entre a euforia e o luto, a esperança tímida e a sensação da perda irreparável são as distintas fruições do tempo nos instantes do presente que marcam a composição de cada take. Um presente vivaz, mas que traz dentro de sua agitação os ecos do passado, das perdas, do que foi (ou não) feito, do que foi abandonado e de como as personagens chegaram até aqui. Nos movimentos rápidos e fluídos de câmera ou nos raros planos estáticos – todos unidos por meio de raccords desconcertantes – o tempo é sempre a constante com que Hers condiciona a mise-en-scéne a cada frame; uma existência temporal – do filme, das personagens – entre o fugidio e o petrificado.

Por trás de uma falsa sensação de simplicidade (no sentido pejorativo ou reducionista do termo) que o longa pode provocar em olhares afobados, Hers apresenta uma obra de refinadíssima complexidade e densidade. Entre tantas palavras, adjetivos e expressões, nada melhor para descrever o longa de Mikhaël Hers do que uma frase curta e simples: ‘Amanda’ é um filme lindo.

 

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