Por Laisa Couto*
(em colaboração especial para o Tudo Vai Bem)
Uma forte sensação que perdura durante o filme desde suas primeiras cenas, a cada minuto, irá se dissolver em uma nuvem de vapor, é uma sensação permanente. O que aparentemente pode ser visto apenas com um drama erótico, se eleva numa grandeza extra-física, com uma câmera estranha, que sorrateira está a perscrutar os personagens à distância, à mercê de não entregar ao espectador os segredos de Sook-Hee e Hideko enrodilhadas numa trama de mentiras sustentada pelo trapaceiro Conde Fujiwara, na Coréia do Sul, nos anos 30. A fotografia colabora com a narrativa mantendo-se no mesmo fluxo, às vezes em diálogo íntimo com a imagem — sustentando close-ups e planos-detalhe — muito embora se mostre primeiro com certo pudor; os olhos que não se sustentam por muito tempo, porém desejam devora-se um ao outro. As passagens dos planos obedecem a uma respiração compassada e cenas se movem em travellings delicados, imitando a ausência da gravidade.
Por vezes é possível fantasiar que não há nenhum maquinário ou força humana captando as imagens, parte disso se deve a bela atuação de Kim Tae-ri como Sook-Hee e Kim Min-hee como Nikedo, que protagonizam duas personagens que se envolvem amorosamente. Dentro de uma disciplina rígida dos costumes orientais, as personagens burlam todo estereótipo acrescentando a isso uma boa dose de sedução. O desejo que cresce em Sook-Hee e Hideko nasce dentro do útero imagético da mise-en-scéne criada por Park Chan-Wook. O erotismo não cai no vulgar e não é meramente cenográfico, é parte essencial da trama e ilustra a libertação de SooK-Hee e Nideko. Um balé de distanciamento e de aproximação, que vai além de uma entrega carnal.
Sook-Hee, uma ladra que se passa por uma criada, deseja conquistar uma parte da herança de Nikedo e esta deseja se livrar de um casamento com seu tio, um colecionador de livros raros. As duas, para obter cada uma seu propósito, escondem suas verdadeiras intenções, mas quando se vêem emocionalmente e amorosamente envolvidas, confessam uma à outra seus planos secretos.
A princípio, Park pode mostrar uma história simplória para um espectador impaciente, porém, com seu domínio narrativo mostra três cartas na mesa e cada uma delas corresponde às três versões das verdades de cada personagem, e ele organiza essas cartas em uma montagem que divide o longa em três partes, onde o espectador enfim, desvendará as reais intenções das protagonistas por meio de flashbacks, incluindo as de Fujiwara.
A subjetividade em ‘A Criada’ está retrata em um jogo de farsas. Uma construção de camadas que sustentam as máscaras infantis e frágeis de Nikedo, a disputada herdeira nipônica, que em certas cenas aparece segurando um objeto cênico simbólico: uma boneca. Como uma marionete, ela foi criada e disciplina pelo tio, Kouzuki desde a infância exclusivamente para uma função: fazer leituras de raros livros eróticos japoneses, e por fim vendê-los ao público que assistia à restrita sessão de leituras de Nikedo: aristocratas locais. Essa faceta também é desenhada na relação entre a criada e a dama, Sook-Hee a princípio enxerga Nikedo como um bebê a quem deve cuidar e vestir. Durante a narrativa, Park esconde as cordas do teatro de marionetes, elas se movem invisíveis, fazendo alegoria à ocupação do Japão sobre a Coréia, na primeira metade do século XX. O velho Kouzuki é o próprio Japão dominando da vida de Nikedo, tolhendo a liberdade e subjugando à força de todos que o cercam, por meio do medo e da violência. A repressão na figura de Kouzuki, seu peso em cena e fala sempre ríspida, porém não anula a aura sutil e por vezes até cômica de como todos esses temas são embutidos na narrativa. Acredito que esta seria uma grandeza de Park, esconder os fios das subtramas e superar a imagem.
A violência no filme encontra seu auge nas cenas finais em uma dominação sadomasoquista, lidar com o perverso, com o sabor da dor e a ilusão do prazer é o ponto mais alto da crítica e reflexão de Park. Submissão, anulação, dominação e violência de um povo sobre o outro, a recorrente alegoria do Japão cruel sobre uma frágil Coréia. Aqui, neste ponto, que seria o alto do orgasmo fílmico, o diretor rompe a corda que guia as marionetes do seu teatro, as cortinas descem, o jogo de sedução acaba, fazendo com que suas protagonistas, Nikedo e Sook-Hee encontrem a tão desejada liberdade que é voluptuosa e quase intocada, porém não impossível.
‘A Criada’ de Park Chan-Wook é uma charada que se veste de drama erótico para tratar de temas pulsantes com o viés político e histórico. Acredito que há muito mais segredos embutidos na obra que não consegui desvendar. A intenção de Park é que o espectador faça parte desse enigma, que encontre suas respostas e, de modo excepcional, ele mostra isso na primeira cena do filme, descortinando todos principais conflitos em pouco mais de um minuto em um fabuloso jogo de esconderijos e revelações.
*Laisa Couto é escritora, fotógrafa e ilustradora.
Aluna da segunda turma da Escola de Cinema do IEMA – Maranhão