Por Fernando Oriente
Quando ‘Phoenix’ surgiu nas telas em 2014, o cinema de Christian Petzold atingiu um outro nível. Após anos realizando filmes interessantes, mas apenas medianos, ‘Phoenix’ nos chegava como uma obra notável. Um filme em que dramaturgia – no sentido das intensidades dos dramas contidos e encenados num desenvolvimento narrativo dentro da relação espaço-tempo – atingia níveis de excelência. Um grande filme, com uma mise-en-scéne primorosa, cheio de texturas, personagens muito bem trabalhados, situações de intensidade extrema e um discurso narrativo coeso e que transbordava as próprias conjunturas propostas; tudo dentro de um registro do Drama construído em suas potências máximas e em imagens portadoras de beleza e significações enormes. Agora Petzold nos apresenta seu novo trabalho; ‘Em Trânsito’, um filme que não só mantém a grandeza de seu longa anterior como ainda o ultrapassa.
‘Em Trânsito’ nos coloca diante da excelência que a dramaturgia pode atingir no cinema. Toda a força e o que de melhor podem oferecer o Drama estão impregnados em cada fotograma do longa. Os conflitos dramáticos não são evitados, eles são encarados de frente e ainda tornados mais fortes pelas ambiguidades, pela opções de encenação, peça decupagem desestabilizadora, pela dialética de não-certezas proposta no interior do processo narrativo-discursivo, pelas escolhas na construção dos planos, pela montagem ágil e pelas relações significantes que as situações em cena estabelecem com toda um conjuntura em que a enunciação tornada discurso fílmico carrega e amplia pra além do que vemos na tela. Se aquilo que podemos definir como a história do filme já é fascinante, tudo o que transcende e se soma à narrativa diegética, como as constantes surpresas, a dubiedade das ações, as redefinições das personagens e das situações propostas, dos destinos que se esboçam e evanescem e as tensões no interior de cada plano fazem de ‘Em Trânsito’ um longa em que elementos clássicos são explorados ao máximo, mas em que as torções desconstrutivas desse classicismo mediante elementos de inovação e ruptura elevam o filme a um discurso que bebe tanto do clássico quanto do moderno e pode ser, sem exagero, considerado o que de melhor o cinema contemporâneo nos oferece.
O filme gira em torno de Georg, um alemão que procura fugir de Paris devido a eminente chegada dos nazistas à cidade. Em seu caminho de fuga ele se depara com um escritor, também alemão, morto em seu apartamento. No desespero para escapar da cidade, Georg rouba os escritos e os documentos do escritor morto e, após uma série de situações (aparentemente) involuntárias, assume a identidade desse; ele passa ser um homem em fuga e a encarnação de um fantasma. Sem nos estendermos aos detalhes, Georg chega a Marselha, local ainda não ocupado pelos nazistas e de onde saem os navios para os países neutros. Lá ele encontra Marie, mulher do escritor morto que busca reencontrar o marido para juntos fugirem da França.
Só que Marie havia abandonado o marido antes de fugir de Paris e se juntado a Richard, um médico alemão, também em fuga. Essas instabilidades nos laços afetivos, em que pessoas que se amam se veem constantemente abandonando o objeto amado para se manterem em movimento é um dos centros dramáticos mais fortes no filme. Abandonar e ser abandonado, se arrepender, querer partir, mas desistir para recuperar o sujeito amado – ou a ideia desse objeto da devoção amorosa. Mas busca-se um sujeito que não mais está lá, existe apenas como memória, vulto, espectro, ausência ou como uma projeção no corpo de um outro.
A grandeza de Petzold está em como ele vai estabelecer a relação entre Georg e Marie – e desses com os demais personagens. Os desencontros entre eles nos consulados são proporcionais as vezes em que se cruzam pelas ruas de Marselha – Marie constantemente interpela Georg nas ruas, pensando ver nele uma outra pessoa – seu marido abandonado, a projeção ou o espectro deste? Algo atrai um ao outro, embora a questão das identidades seja mantida oculta. Tanto Georg quanto Marie olham frequentemente em direção ao extracampo, estão sempre esperando a chegada de um outro. Eles se veem para logo se perderem de vista, caminham a esmo a procura um do outro, mesmo sem se conhecerem, sem saberem quem procuram de fato. E o destino acaba sempre por coloca-los novamente frente a frente. Eles perseguem fantasmas – fantasmas deles mesmos, fantasmas no outro. O passado penetra nesse presente em suspensão. Presente que é mais um desejo, desejo do que foi, desejo de estender-se no instante e desejo incerto pelo que está por vir. Vontade de recuperar o já vivido, de recuperar um sentimento transitório que existe apenas como fantasmagoria num presente que se esfacela diante deles.
Marselha é uma cidade definida pela morte eminente daqueles que de lá querem fugir ou lá se escondem, bem como pelas ausências com que os que ficaram têm de conviver após perderem aqueles que amam. É uma cidade habitada por mortos-vivos, por viventes que se apegam à memória do que foram ou poderiam vir a ser, por desiludidos, por suicidas e, principalmente, por fantasmas. A fantasmagoria das personagens não é apenas aquela de Georg, que vive entre sua desbotada identidade real e a materialização do fantasma do escritor morto, mas também a de tipos que se tornaram espectros daquilo que eram, fantasmas de suas antigas subjetividades. Todos e todas com quem Georg se relaciona trazem esse fantasmático, são seres espectrais – do menino de origem árabe que acaba de perder o pai (e projeta em Georg essa paternidade ausente) e sua mãe viúva, passando pela arquiteta judia que também aguarda embarcar para longe dali, o músico que espera o visto para ir trabalhar no México ao médico Richard – que, apaixonado por Marie, se imobiliza em sua necessidade de abandonar a cidade para se apegar a um amor não correspondido.
A relação de anseio e amor que surge de maneira difusa, porém intensa, entre Georg e Marie está mais calcada no desejo e em deslocamentos de projeções do que na conjuntura imanente. Marie oscila entre reviver em Georg o fantasma de seu marido morto e a ilusão idealizada de reencontrar o médico que abandonou em Paris. Georg aceita ser esse espectro do outro para poder amar e ser amado por Marie. Eles amam projeções e ausências daquilo que não são e daqueles que não mais estão, eles carregam sentimentos fantasmáticos, etéreos. Trazem o vulto evanescente do outro para suas essências estilhaçadas para seguir adiante, sem promessa nem esperança, apenas pulsão de sobrevivência e desejo de afeto e continuidade.
‘Em Trânsito’ trabalha com um tempo fraturado e em suspensão, da espera, do medo, do desejo, da dúvida e da incerteza. Temporalidade essa em que os anseios deslocados são preenchidos por fantasmagorias e suas projeções – temporalidade impressa por Petzold na construção das texturas de cada plano, em todas as transições de cena e na expectativa que promove em relação a cada nova imagem que surge. Subjetividades fantasmáticas que esse desejo visa – em vão – transformar em presenças materiais. Alguém que não mais existe é revivido no corpo materializado de outro. Fantasmas que entram em cena para suprir a carência de uma ausência. As personagens desejam que esses fantasmas se encarnem em outros corpos, em outros sujeitos que aceitam esse fantasmático na reconfiguração de suas identidades, nas flutuações de pulsões de amor e sobrevivência, num devir constante de si mesmos. Eles são preenchidos por esses vultos para se manterem vivos, para se permitirem (desejar) amar e existir.
Um filme de fantasmas, de vidas redefinidas pelo fantasmático – o fantasma, como afirma Deleuze, como uma testemunha dos acontecimentos, mas agente deslocador de identidades e que carrega nesse processo a perda do nome próprio, da subjetividade carnal e existencial. Espectros, mas encarnados na materialidade da imagem de cinema – nessa projeção de sombras que se materializam em uma tela em branco. Vidas precárias e incompletas sempre em deslocamento, em trânsito dentro de uma representação que funde o imaginário desejante à materialidade instável de um mundo em frangalhos. Um filme de ausências que constantemente procuram ser restabelecidas, resgatadas – ausências que não permitem o estabelecimento do luto. E “Em Trânsito’ é, também, um filme de amor. “Toda história de amor é uma história de fantasmas”, como escreveu David Foster Wallace em sua célebre frase.
A encenação de Petzold é condicionada e composta em função da tensão diegética que ele imprime às incertezas que determinam a dramaturgia. Existe uma construção de cena que visa o limítrofe do emocional das personagens, bem como o precário, o insuficiente e a incompletude perturbadora das situações dramáticas. A câmera compõe o quadro em função dos deslizamentos dessa tensão, presentes no interior do plano, mas sempre em diálogo com a presença de um fora de quadro que ameaça irromper pelas fissuras abertas pela dramaturgia e que estão fragilmente impostas na imagem, naquilo que o plano contém em seu interior.
‘Em Trânsito’ apresenta posicionamentos da câmera e angulações da perspectiva em que personagens se posicionam no espaço de forma tênue – em uma espécie de suspensão – em relação ao que se vê. Mas essas presenças dos tipos estão mais na função de expectativa, em uma constante angústia pelo que os espreita do lado de fora da cena; fora dos espaços físicos que mal os contém, fora dessa materialidade precária das imagens que Petzold emoldura no quadro.
São planos que buscam o incompleto das imagens dadas (e que refratam a angústia interior dos tipos em cena), em que algo sempre virá a perturbar de fora para dentro o interior do plano. Espera-se sempre – tanto as personagens quanto nós espectadores – que alguém vá entrar em cena. Constantemente se olha para as bordas laterais da tela, existe uma onipresente sensação provocada pelo desejo das personagens de que uma presença – fantasmática, idealizada ou material – virá preencher a incompletude da imagem, a incompletude e as ausências daqueles corpos em cena.
Sentado no bar que frequenta em Marselha, Georg olha sempre para trás, por cima do ombro, esperando a entrada de Marie no local – sua entrada pelas bordas do quadro para o interior do plano, para, dentro do quadro, se juntarem, trocarem olhares, se tocarem. Georg – esse vulto fantasmagórico já fraturado em sua existência material e subjetiva – irá sempre olhar para trás. Marie irá sempre chegar. Mas até quando? O acaso de Marie é tornar-se fantasma, evanescer-se e passar a habitar a vida de Georg apenas no campo espectral, da lembrança. Ela será apenas uma ausência, um vulto que existiu incerto em sua vida por muito pouco tempo e agora se esvaece no fantasmático da memória e do desejo de um amor que, desde o início, estava condenado a jamais se consumar.
Um ponto não menos significativo é o fato de Petzold realizar esse que seria um drama de época, da Segunda Guerra, na Europa dos dias de hoje. Aqui temos comentários sobre as tensões políticas do mundo de hoje, em que além de invasões territoriais e violência bélica, toda uma brutalidade econômica de países ricos ameaça invadir outros países. E o fato da Alemanha, maior potência econômica da Europa ser o agente invasor, mesmo da França – seu principal parceiro e potência coadjuvante na União Europeia – não é gratuito. As forças agressoras na geopolítica contemporânea também carregam dentro de si os fantasmas das antigas formas de agressão, tanto militar, mas muito mais econômica, de antigos conflitos. Uma Europa em crise vive com novas ameaças de fascismos e imperialismos; os fantasmas do passado mexem os pauzinhos no jogo de dominação neoliberal do presente.