Por Fernando Oriente
Uma das possibilidades mais fascinantes do cinema, dos códigos permitidos pela escrita cinematográfica, é se trabalhar dentro de registros que mimetizam a realidade, constroem universos ficcionais cuja transparência em relação ao real são o centro e o fio condutor de um filme e, no interior dessa aparente realidade recriada, inserir elementos absurdos, surpresas inesperadas, situações anti-naturalistas. Esse processo, muito presente no cinema narrativo clássico – das comédias de Howard Hawks e Ernst Lubitsch aos suspenses de Hitchcock e os longas de horror de Jacques Tourneur – funciona como chave para o realizador incorporar ao discurso de sua obra comentários, reflexões e críticas ao mundo e à sociedade em que estão inseridos. São procedimentos que desestabilizam o espectador, expõem os mecanismos internos de funcionamento dessa sociedade que insiste em vender sua aparente normalidade e racionalidade. ‘Corra!’, de Jordan Peele, se utiliza desse procedimento para se consolidar como um dos mais originais e vigorosos retratos de um mundo falacioso em que a abjeção se esconde por trás da aparente cordialidade e das boas intenções. Um filme que desconstrói não só seus personagens, mas principalmente a imagem que eles manufaturam para si mesmos.
‘Corra!’ opera dentro do cinema de gênero, do terror psicológico ao horror catártico, mas mantém sempre um pé na comédia – ou melhor, numa comédia que se anuncia, que aparece em personagens isolados e situações ligeiras, mas jamais se efetiva no centro da matéria dramática. O que Peele faz é iludir o espectador com uma promessa de comicidade para daí deslocar seus personagens e ações para a estranheza do horror, mais especificamente o horror do racismo, da eterna dominação e opressão dos brancos sobre os negros. O grande mérito desse primeiro longa de Jordan Peele é construir uma das mais potentes críticas ao racismo incrustado na sociedade sem nunca ser panfletário, sentimentalista ou óbvio. Trata-se de um filme que expõe as vísceras de um mundo racista de dentro dele mesmo, de dentro do próprio modus operandi das relações sociais e, de maneira enfática, do interior da própria indústria do cinema e do entretenimento. É uma dupla exposição que arranca as máscaras tanto da sociedade como do próprio fazer cinema nos Estados Unidos.
O cinema de gênero se anuncia desde cedo em ‘Corra!’. É pela composição de climas, pelas sugestões de tensões que vão além da aparente normalidade das ações em cena, que Peele começa a tecer a estranheza que irá dominar toda a primeira metade do filme. Numa encenação direta, com câmera discreta e evolução narrativa fluída acompanhamos a viagem do jovem fotógrafo negro Chris (Daniel Kaluuya) e de sua namorada branca Rose (Allison Williams) para um fim de semana na casa dos pais da moça; oportunidade em que a família da garota irá conhecer seu novo namorado. Chris se preocupa em saber qual será a reação de uma família branca ao saber que sua filha namora um negro. As promessas de Rose de que seus pais não são racistas se confirmam com a chegada deles a casa. Tanto o pai quanto a mãe da jovem são gentis, simpáticos e agem com total naturalidade diante de Chris. Mas Peele deixa claro, pela maneira como compõe a dramaturgia das sequências que algo está fora do lugar. Sejam os termos “descolados” que o pai dela usa ao conversar com Chris, a serenidade arrogante da mãe da garota e principalmente a apatia dos dois empregados negros da casa – que se portam como estranha cordialidade, se dizendo felizes e “parte da família”. Mas é nos olhares, nos gestos, no que os rostos escondem e o que algumas poucas falam deixam escapar que o espectador percebe que o universo daquela casa é artificial e algo muito maior se esconde por trás das aparências.
O momento que marca a primeira grande ruptura na evolução narrativa é a festa que acontece no dia seguinte a chegada de Chris e Rose a casa. Um grupo de casais brancos, quase todos velhos, alinhados e sorridentes, exalando bom gosto e simpatia toma conta do ambiente. Todos querem falar com Chris, sorrirem, serem agradáveis. Vemos um desfile de máscaras, de cinismos, da arrogância elitista dos brancos bem sucedidos da América. Uma mulher elogia o fisco de Chris, um velho diz que Tiger Woods (o multi-campeão golfista negro é o melhor jogador de todos os tempos), outro convidado diz que no mundo de hoje “o negro está na moda”. São novamente os olhares, os gestos e as expressões que, ao lado da crescente tensão que Peele vai inserindo na construção cênica, vão levando o filme cada vez mais para o terreno do suspense e do terror psicológico. O único convidado negro da festa, um jovem em roupas ridículas que nada tem a ver com sua aparência e casado com uma mulher bem mais velha, detona a virada do filme, ao ter uma atitude totalmente inesperada e violenta ao receber o flash da câmera de Chris em seus olhos.
A partir desse ponto, o horror e o absurdo tomam conta de ‘Corra!’ e todas as máscaras caem, toda a aparência de tranquilidade e tolerância racial derretem. Essa transição, já assinalada desde o início do filme, é muito bem conduzida por Peele, que domina a as evoluções e variações dramáticas de sua composição narrativa. O filme se transforma num misto de fantasia e terror, mas tudo dentro do mesmo ambiente de normatividade realista. O horror e o absurdo estão no centro da normalidade do mundo, no núcleo das aparências. É aí que está escondido o racismo, a opressão do branco sobre o negro. O normal é o racismo, a regra é a opressão de raça. A sociedade é racista e um país que teve séculos de escravidão não se livrou dela, apenas mudou as formas de escravizar. Corpos e mentes de negros continuam servindo para serem objetos de uso dos brancos, que se apropriam dos negros para tudo. As situações de ficção científica típica dos filmes dos anos 50 que Peele usa em ‘Corra!’ nada mais são do que formas do diretor inserir em seu discurso a capacidade ilimitada de opressão e aniquilação dos negros pelos brancos e o absurdo das ações, o anti-naturalismo das soluções, são potentíssimos elementos que escancaram a violência e as manifestações do racismo.
Jordan Peele opta por um final clássico de salvação do herói. Chris consegue fugir dos planos terríveis da família e sua fuga é marcada por explosões de brutalidade, em que ele mata seus algozes com fúria em cenas de forte violência gráfica muito bem construídas pelo diretor. A escolha pelo happy end – quando Rod, o amigo negro de Chris (personagem cômico fundamental no filme) surge para resgatá-lo – é um comentário preciso de Peele, que se utiliza do clássico final feliz (branco) hollywoodiano para desconstruir ainda mais os mecanismos da indústria cinematográfica, usando de seus próprios lugares comuns para fortalecer o discurso do filme que detona o racismo e suas múltiplas estruturas de funcionamento e manutenção.
‘Corra!’ é um filme recheado de subtextos, um universo de leituras está contido dentro de sua aparente simplicidade narrativa de gênero. Cada sequência indica muitas possibilidades de decodificação de estruturas de opressão racial, desde a falácia da cordialidade até a falsa ideia de que os negros nos EUA estão em condições muito melhores, seja por causa do sucesso de artistas e esportistas negros, seja pelo fato de um presidente negro ter sido eleito e reeleito para o cargo mais importante do mundo. Não a toa que por mais de uma vez se comenta no filme que o pai de Rose votou em Obama e votaria de novo, já que ele acha que esse foi o melhor presidente da história do país. Jordan Peele deixa claro que para os brancos o negro pode “estar na moda”, pode ter representantes em altos cargos, pode levar milhões de jovens brancos a os considerarem ídolos, mas a questão do racismo, da ideia atávica da superioridade racial está tão presente quanto sempre.
É interessante ressaltar que Jordan Peele, um comediante talentoso, influenciado por toda uma escola de humoristas negros brilhantes – de Richard Pryor a Eddie Murphy, de Cris Rock a Dave Chappelle – se utiliza em seu longa de estreia como diretor de enunciados clássicos de alguns dos principais esquetes desses comediantes (e dele mesmo) para desenvolver um filme em que o humor ácido serve de fio condutor ao terror psicológico, à ação e ao horror. Até na fusão e no contrabando de gêneros, Peele se sai bem demais. ‘Corra!’ é um filmaço.