‘Cópia Fiel’, de Abbas Kiarostami (2010)

Por Fernando Oriente

Cópia FielUm autor como Abbas Kiarostami é alguém capaz de apropriar-se do material que compõe sua arte, o seu fazer, e a partir daí confeccionar obras que dialogam entre si, afirmando e contrariando um trabalho após o outro. Ser um cineasta de primeiro escalão, artista ímpar em meio a diretores que vão de bons a medíocres, é saber se sobressair, é ir além do que se espera dele e dar rumos distintos a obra em aberto que realiza com o passar dos anos. Após depurar o máximo de seu cinema por meio de uma complexa e falsa simplicidade em experiências fantásticas como “Dez”, “Five” e “Shirin”, Kiarostami realiza ‘Cópia Fiel’, um longa falsamente convencional, mas que em suas múltiplas texturas, ambiguidades e inúmeras possibilidades de apreensão elevam seu cinema a um patamar ainda mais rico.

Só que agora são mecanismos mais diretos que ele utiliza para discutir realidade e ficção, (re)criação e representação, cópia e original, sentimentos, frustrações e anseios. Tudo isso é posto em cena no filme, mas por trás daquilo que vemos e também daquilo que Kiarostami nos induz a questionar, estão os sentimentos, estão os conflitos entre o que se deseja com o que se pode realmente obter; os mistérios e impossibilidades do real. Desejo, expectativas, o peso do passado e as incertezas sobre a possibilidade de re-apropriar da própria existência para nela imprimir novos códigos, novos rumos e até mesmo uma nova realidade, uma outra verdade.

Kiarostami constrói ‘Copia Fiel’ utilizando a perfeição os recursos que compõem o que de melhor um cineasta pode tirar da misé-en-scene, passando pela elaboração do quadro e o posicionamento das figuras dramáticas dentro desse quadro e de suas oscilações, os movimentos de câmera, a decupagem, a profundidade de campo, a sucessão temporal/espacial e a duração dos takes. Longos planos em travelling que contextualizam o movimento dos personagens no cenário, desvendando ambientes, situações e relacionando os tipos e as ações com o fora de quadro se intercalam com sequências em campo e contra-campo, em que o que está ausente da tela participa de forma sofisticada da diegese.

A duração do longa, uma manhã, uma tarde e um anoitecer reduzem o espaço às exigências de uma temporalidade pré-determinada. Os personagens encontram-se limitados a agir e a representar, imaginar e relembrar, a contrapor criação/invenção com as sombras daquilo que realmente existe dentro deles e no exterior a que estão inseridos. Tudo isso é emoldurado e amplificado por um registro de luz que comenta tudo o que vemos e guia as sensações que o filme provoca.

Um escritor e uma dona de um antiquário encontram-se na Toscana, parte da Itália que é muito bem descrita no longa como um museu a céu aberto, e esse encontro leva os protagonistas a partirem para uma discussão sobre a validade das cópias em relação ao original, a importância dessa cópias como afirmação real do valor do original. A parir daí, Kiarostami começa a penetrar as camadas que compõe seus tipos, desvela suas texturas dramáticas e começa a revelar os sentimentos e contradições, as expectativas e frustrações que compõem o interior de seus tipos.

A discussão entre o casal passa a abortar questões filosóficas e cotidianas, histórias corriqueiras da rotina de ambos, entram em cena comentários sobre trabalho, filhos, irmãs e cunhados. Ela tenta formular um discurso em que busca encontrar boas ações e nobres sentimentos que possam caracterizar um bom casamento, questiona a dificuldade de entender-se com o filho de oito anos. O que vemos nas falas da personagem de Juliette Binoche é uma tentativa de tornar o mundo e a relação entre os tipos algo próximo do que ela considera normal. É nesse momento que o escritor vivido por William Shimell passa a exercer o papel opositor/confrontador, aquele que potencializa o caráter dialético da discussão dos protagonistas.

Os conflitos estabelecidos pelas idéias e pelo discurso do escritor não levam o filme a um mero embate entre opiniões e desconfortos de gênero. Kiarostami passa a introduzir elementos que potencializam os questionamentos de seus personagens utilizando-se de um dos recursos mais básicos do cinema; a criação de uma ficção (farsa), que em ‘Cópia Fiel’ assume o papel do jogo entre os protagonistas em criar para eles uma cópia, uma simulação de uma relação entre um casal em crise após 15 anos de casamento.

Ambos assumem o papel do casal que após anos de união passam a trazer a tona seus descontentamentos, suas desilusões em relação ao outro. O ambiente em que se desenrola o filme e a impressionante capacidade de Kiarostami em contextualizar o espaço cênico, ampliando o que está sendo literalmente encenado pelos protagonistas em contraponto com aquilo que os cerca inunda o filme de sutilezas e aumenta o valor da relação entre real e encenado, enche seu filme de significantes e abre um leque de significados para o espectador.

Ao redor deles vemos obras de arte originais, cópias, locais históricos, turistas e um grupo de noivos e noivas que acabam por representar (paro os protagonistas) a esperança e a ingenuidade que ambos poderiam ter vivido anos atrás, se realmente (?) tivessem se casado. O que é real? O que é copia ou encenado? O ambiente? As obras e suas cópias? As sensações daqueles que entram e saem de quadro? A ficção encenada pelos protagonistas? Kiarostami lida com sentimentos e dúvidas reais, desilusões e esperanças primitivas, que existem desde os primórdios e que são reproduzidos com o passar dos anos, dos séculos. O que fazem os seres humanos a não ser copiar sensações e desejos antigos? O sonho de se relacionar bem como os desgostos com a realidade vivida não são sempre os mesmos? Mudam apenas de cenário, adaptam-se às circunstâncias e tentam se inscrever em diferentes modas e momentos ideológico-históricos.

O que Kiarostami faz é utilizar-se do poder ambíguo e sarcástico do cinema como recriador e amplificador da realidade. Não do real, mas de uma realidade inventada e desejada pelo autor, absorvida e projetada pelas múltiplas possibilidades da imagem, que como bem disse Godard: “Uma imagem nunca é inocente”. Para Kiarostami, os dispositivos do cinema são uma ótima maneira de se recriar o mundo como cópia, como simulacro, mesmo sendo essa cópia autenticada e cheia de possibilidades. Grande cinema.

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